domingo, 22 de outubro de 2006

O “marxismo” e a crítica da sociedade contemporânea


O "MARXISMO" E A CRÍTICA DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


José Manuel Correia


Dizia o administrador de um fórum existente na Internet, a propósito das mudanças que se estão operando na sociedade contemporânea e das dificuldades da sua análise, que “o Marx não serve, aviso já”; e um conhecido interveniente, notado pela sapiência baseada na dúvida permanente, por seu lado, ripostava: “Marx não, mas o marxismo talvez”. E o “marxismo” a que o interveniente se referia era ao de Lenine, ao de Gramsci, etc. Não deixa de ser interessante que naquelas duas opiniões o Marx seja relegado para plano secundário, por estar ultrapassado pela vida ou pelos contributos dos seguidores. Sem entrar nos pormenores do contributo do Marx para a crítica da economia política ou na análise dos seus erros e equívocos, conviria, no entanto, afirmar que o "marxismo" não lhe chegou aos calcanhares, e muito menos é instrumento dotado de um mínimo de fundamento que lhe confira qualquer utilidade na análise e na crítica dos discursos sobre a sociedade contemporânea. O dito "marxismo" não compreendeu muitas das profícuas abstracções do Marx; por esse facto, não trouxe, nem poderia trazer, qualquer contributo de relevo para a crítica da economia política.

Nem mesmo a Rosa, a mais inteligente e arguta dos discípulos, tendo embora detectado erros e contradições na obra do mestre conseguiu superar as suas lacunas, contradições e erros. E todo o "marxismo" restante é trampa, quanto a produção teórica. Esse “marxismo”, aliás, só ganhou notoriedade porque um golpe de Estado audacioso levou os comunistas ao poder, e a vitória na dura guerra civil que se seguiu e, depois, na guerra de agressão nazi-fascista lhes permitiu a modernização de um velho império. O próprio Lenine tem muitas qualidades como teorizador do partido de revolucionários profissionais e como estratego e táctico perspicaz, mas não legou contributo teórico original de qualquer valia para a análise da sociedade contemporânea ou para a crítica da economia política capitalista. Se ele, que constitui o maior vulto desse “marxismo”, não passa de mero divulgador do Marx, que dizer de todos os outros?

A crítica dos discursos dominantes na sociedade contemporânea sobre a economia política terá de encontrar novos teóricos à altura, como é dito, e muito bem. Mas, ao contrário do que também é dito, esses não partirão do zero, porque os caboucos onde deverão assentar as novas estruturas do pensamento teórico, removidos os frágeis alicerces, foram abertos pelo Marx. O Marx profeta idealista está no caixote do lixo da História, mas o Marx teórico da crítica da economia política, embora ultrapassado, deixou um legado pioneiro, que espera por críticos à altura. Por ter desbravado o vasto mundo das aparências da economia política (ainda que com erros e insuficiências que se traduziram em conclusões falsas), esse legado constitui uma base de valor inestimável, que se estende em maior ou menor grau a todas as chamadas ciências sociais, que de algum modo são hoje devedoras do seu contributo.

O problema é que uns “marxistas” transformaram a obra do Marx em bíblia, usando-a como quaisquer fanáticos usam as sagradas escrituras dos seus credos, e outros andam há cento e cinquenta anos a tentar compreendê-la em vão. Uns e outros apenas repetem os erros e as concepções falsas do Marx, quais ladainhas de que não compreendem o significado. Enquanto isso, a sociedade evoluiu, foi-se transformando, e até o comunismo ruiu estrondosamente por todo o lado, mas os “marxistas” continuam pregando o ódio ao capitalismo, clamando contra a indignidade da pobreza, vociferando contra o imperialismo americano, arrimando-se aos fundamentalistas mais abjectos e aos populistas mais desbragados, usando prédicas moralistas apenas escutadas pelo lumpen, porque o proletariado, esse, faz orelhas moucas ao seu proselitismo de encartados arautos da desgraça e de adivinhadores do futuro por acontecer.

Diz-se também que um novo modo de produção emergirá da nova tecnologia. A revolução tecnológica que estamos vivendo desde há alguns anos — caracterizada pela grande celeridade das transacções e pela maior efemeridade das mercadorias; pela transformação radical dos processos produtivos, com a automação, a robotização e a aplicação das bio e nanotecnologias; pela ascensão do conhecimento, sob a forma de produtos informacionais, como principal factor produtivo; pela produção mais acelerada, em maior quantidade e com menor custo da riqueza material, que está possibilitando retirar da pobreza e da miséria vastas massas de milhões de seres humanos (que passam de camponeses a modernos operários industriais); e pela "terciarização" sem precedentes do trabalho — embora relevante, não é a característica mais importante da realidade social actual nem da sua transformação.

A tecnologia abre um mundo novo de possibilidades de produzir e de fruir os objectos, aumentando a produtividade do trabalho, que por seu lado, ao serem aproveitadas, vão permitindo transformar a própria tecnologia e reduzir o custo da sua produção, abrindo outras novas possibilidades. Mas enquanto produto do conhecimento do Homem sobre a Natureza e sobre as formas de transformar as coisas e de produzir os objectos úteis, a tecnologia não tem a faculdade de ditar as relações que os homens estabelecem entre si nesse processo acerca da organização da produção e da repartição do produto, não as determinando. Cada modo de produção desenvolve a sua própria tecnologia, mas ela está subordinada à forma de repartir o produto resultante da sua aplicação, porque é a forma de repartir o produto, e não qualquer outra coisa, que disponibiliza uma parte para a produção da tecnologia e, deste modo, a vai transformando.

Um novo modo de produção emerge na sociedade ainda na base da tecnologia existente, desempenhando uma função específica, e desenvolve-se aproveitando as oportunidades abertas pelo desperdício persistente de forças produtivas — meios de produção e trabalho — que em determinada altura o modo de produção dominante começa a provocar. Outras formas de organização da produção social e de repartição do produto, assim como a formação das novas classes sociais que as protagonizam, são as características distintivas dum novo modo de produção. À medida que se for expandindo e aperfeiçoando, o novo modo de produção criará a tecnologia que se mostrar possível e necessária para o seu próprio desenvolvimento. Por isso, o que caracteriza cada época histórica não são as coisas transformadas nem os objectos produzidos nem a tecnologia usada na sua transformação e produção: é essencialmente o modo de organização da produção e de repartição do produto social.

Cada vez maior quantidade de mercadorias assume a forma de produtos informacionais ou de serviços, com grande efemeridade. Essas características das mercadorias — apontadas, a meu ver erradamente, como factor de grande debilidade da sociedade actual — são a evidência do dinamismo da evolução económica e social que estamos vivendo. As novas formas não se resumem às mercadorias, estendem-se também às relações estabelecidas na sua produção, e essas revelam a ascensão de novos produtores, autónomos ou associados de formas diversas, formais ou informais, que se vão apropriando de parte cada vez maior da riqueza de que são criadores. A ascensão de novos produtores, já não sujeitos ao salariato, que protagonizam novas formas de organização do trabalho e de repartição do produto, ou novas relações de produção, constituindo embora uma ínfima minoria, é o que de mais importante desponta na sociedade contemporânea.

Estas bolsas de inovação económica, por enquanto, estão restritas a novas actividades ou sectores produtivos que não exigem meios de produção vultuosos e nos quais o trabalho criativo constitui o factor produtivo mais importante, mas são reveladoras de que nenhuma tecnologia ainda ultrapassa a capacidade criativa do trabalho, e que nenhum modo de produção poderá existir desperdiçando o que de mais importante as sociedades humanas dispõem: o trabalho humano. As transformações económicas, por seu lado, vão tendo os seus reflexos na ideologia e na política, valorizando cada vez mais a liberdade, esbatendo as diferenças mais diversas, fortalecendo a iniciativa individual e esboçando a cooperação em novos moldes. O que se está passando na estrutura económica da sociedade, ainda sob forma embrionária, é certo, começa também a emergir ao nível da superstrutura ideológica e política, com embates significativos nalguns aspectos da ideologia e da política dominantes.

A nova globalização do capitalismo, agora alargada do comércio livre à produção livre e à livre circulação dos capitais, não é apenas prenúncio do seu esgotamento: tal como aconteceu no passado, nesta outra globalização misturam-se o velho e o novo, o capitalismo e outras formas de organização da produção e de repartição da riqueza criada que o substituirão. No turbilhão do ritmo frenético com que a realidade passou a existir, não o vemos porque o novo é ainda incipiente e frágil, tacteando à procura das suas oportunidades por entre as brechas abertas pelos limites do capitalismo, confundindo-se com ele até nos valores que por enquanto adopta, e ensaiando as formas que emergirão como as mais profícuas e socialmente mais vantajosas.

Pretender que nestas épocas de transição se vejam com límpida clareza as formas difusas que apenas despontam, e que ao emergirem vão mostrando contornos que escapariam à imaginação mais fértil, é desejo do mesmo tipo do que o capitalismo tivesse produzido um Marx nos seus alvores. O Marx apenas apareceu no início da fase de maturidade do capitalismo, porque somente nessa altura era possível ver, para além das aparências, alguma da essência da realidade que se consolidava pujante. E não apareceu, na sua faceta de cientista, conjecturando o futuro, mas criticando a ideologia do passado com que era interpretado o presente, patente nos discursos da economia política clássica, e tornando mais compreensível a realidade sua contemporânea.

Por estas características da realidade contemporânea, a produção teórica sobre ela, ainda que difícil, só será profícua submetendo ao crivo da crítica as ideias do Marx, o "marxismo" e as suas fantasiosas explicações da realidade e do seu devir. Depois do Marx, e mais do que o próprio Marx, os grandes alvos da crítica teórica serão o "marxismo" e as outras correntes mais eclécticas, que a si próprias se apelidam de “neo-marxistas” ou afins. Não porque de entre os adeptos alguém se aproxime da envergadura teórica do Marx, já que nem sequer o compreenderam, mas porque, como excelentes papagaios palradores de imitação, oferecerão a maior resistência à divulgação e à compreensão da crítica teórica que se faça à crítica da economia política produzida pelo Marx, por mais consistente que possa ser.

Derrubados os ténues faróis que lhes balizavam o rumo, com o terramoto da queda dos regimes políticos comunistas, os “marxistas” vagueiam, sem norte, no mar encapelado da realidade. No plano teórico, apesar de libertos das peias da disciplina partidária, agora mais flexível, estão mergulhados na mais profunda das esterilidades e mostram o que sempre foram, umas autênticas nulidades, entretendo-se a papaguear o Marx ou a divagar sobre as elucubrações filosóficas mais disparatadas; no plano político, empenham-se na defesa da ditadura castrista, não se cansando de lhe tecer as loas mais despropositadas, apoiam os mais diversos líderes populistas latino-americanos, manifestam a sua compreensão para com qualquer fundamentalismo, nomeadamente, religioso, desde que seja anti-americano, e persistem na propaganda da necessidade do derrube do capitalismo, sonhando com uma nova e avassaladora maré auspiciosa capaz de restituir à velha profecia idealista o impulso que lhe conceda uma nova oportunidade.

O “marxismo” está decrépito. Encara a realidade contemporânea como se ela fosse ainda a dos primórdios do capitalismo industrial e analisa-a com base nos errados esquemas e concepções do Marx. Antevê não já apenas o colapso a prazo do capitalismo, mas uma catástrofe iminente, para a qual aquele conduziria a Humanidade. O seu pregão de “socialismo ou barbárie”, porém, é tão ridículo quanto foi o original, proclamado vai para um século. Os comunistas “marxistas”, por seu lado, não perderam a fé e continuam julgando-se os detentores da verdade e do conhecimento. Apesar da água que correu sob as pontes, mantêm a veleidade de aspirarem a conceber, a projectar e a levar a cabo a organização social do futuro, como se a realidade social pudesse ser concebida e construída por mera opção racional. A pretensão de grande arquitecto social — à semelhança de Deus, essa entidade mítica omnipotente que determinaria a natureza como seu supremo arquitecto, conferindo-lhe uma mistificada harmonia que a realidade permanentemente desmente — deu como resultado uma sociedade totalitária, mas nem isso foi bastante para a reconsiderarem, e constitui o grande entrave para que o comunismo “marxista” possa alguma vez deixar de ser o que foi.

Para progredir, o pensamento teórico sobre a realidade social terá de se concentrar em si próprio e no seu objecto, sem preocupações humanitaristas quanto ao futuro. A ciência não se compadece com os desejos, com as aspirações idealistas ou com a imaginação dos cientistas. Muito menos se compadece com tais pretensões dos políticos. Separar os desejos do estudo da realidade é o que se torna necessário tentar, para além do Marx, que os misturou.


Com base numa intervenção no fórum dotecome ( http://www.dotecome.com/Saltos/forum.htm ), em Fevereiro de 2006, revista e ampliada.


2 Comentários:

Às 4:39 da manhã, outubro 23, 2006 , Anonymous Anónimo disse...

Diferente do habitual e com texto(s) muito interessante(s).
Parabéns.

 
Às 12:21 da tarde, outubro 23, 2006 , Blogger TB disse...

Boa Tarde,

obrigado pelo comentário que deixou no meu blog. Tenha pena que não tenha deixado um contacto (e-mail) logo a única forma de responder será através deste meio. Por isso peço desculpa.

Ao contrário do estigma que muitos tentam atribuir a uma pessoa que gosta de falar de Marx, ou que concorda com as suas ideas, estes não são necessariamente dogmáticos, nem concordam com tudo aquilo que ele disse. Dogma é considerar que todos os seus "seguidores" não tem capacidade para avaliar objectivamente o que ele diz.

Por outro lado, quando analisando as palavras de Marx existe a necessidade de as contextualizar tanto na sua obra como na sociedade em que viveu.

Deste modo admiro e muito Marx por tudo aquilo que deu à sociedade. E se hoje vivemos numa sociedade bem melhor daquela em que Marx viveu foi em parte devido ao seu legado.

Não vou publicar o seu comentário porque objectivamente não contém qualquer critica ou apontamento sobre o texto em questão, é apenas um link, e como deve perceber uma zona de comentários não serve obviamente para publicidade.

Se desejar pode enviar uma critica ao artigo ou aos fundamentos do Marxismo e eu com muito gosto publicarei não em comentário mas sim como post.

Obviamente que me reservo ao direito de responder, mas tendo o compromisso que não irei passar apenas excertos da sua criticas mas sim os seus apontamentos completos bem como caso o deseje o link para o artigo que me endereçou.

Provavelmente saberá me indicar outras visões que desconheço, mas será um jovem a fazer-lhe perceber que as generalizações do tipo... marxista = dogmático, gostar da obra de Marx = encara-la como bíblia sagrada... estão erradas?

Com os melhores cumprimentos...
Tiago Brazão

 

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