domingo, 1 de outubro de 2017

O Capital: cento e cinquenta anos de equívocos e de erros transformados pelos marxistas em embuste intelectual (III)


Um leitor dos meus textos (um dos poucos que faziam comentários, entretanto desaparecido daqui como alguns outros, certamente porque a temática não suscita grande interesse e a forma de abordá-la é monótona e às tantas se torna enfadonha, já que não tenho competência nem apetência para abordar outros assuntos e os dotes estilísticos são escassos) colocou-me um conjunto de questões interessantes, correspondentes a dúvidas suas, em comentários ao meu texto “A famosa conversão dos valores em preços de produção”, publicado aqui em 02 de Fevereiro de 2009.

Relendo agora, a oito anos de distância, as respostas que então lhe dei em jeito telegráfico achei-as engraçadas, pela simplicidade com que tratei o assunto da génese do valor apropriado que possibilita o lucro, e muito adequadas para colocá-las aqui com o destaque que me parece merecerem inseridas na temática da efeméride dos cento e cinquenta anos da passagem da publicação do Livro primeiro de O Capital.

Não houve muito que corrigir. Transformei o texto de entradas múltiplas em texto corrido e introduzi entre parênteses rectos um ou outro acrescento esclarecedor.


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O lucro é gerado na compra do trabalho presente e na sua venda como trabalho passado pelo capitalista ao trabalhador assalariado; é gerado, portanto, na esfera da circulação das mercadorias, ou, melhor, na circulação do trabalho enquanto mercadoria universal. Como é fácil de constatar, a troca que aí ocorre é uma troca desigual, pois X horas de trabalho presente são vendidas [pelo trabalhador] pelo preço Y (o salário), ao qual correspondem X - (X.l') horas de trabalho [contido nas mercadorias compradas com o salário], [e são revendidas pelo capitalista como novo trabalho passado consumido na produção das novas mercadorias pelo] preço Y + (Y.l'), em que l' é a taxa de lucro.

A génese do lucro, a determinação da sua taxa e a forma pela qual se processa a sua apropriação pelos diversos capitalistas são questões diversas. As trocas entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados não são [apenas] trocas directas; os capitalistas que produzem meios de produção, por exemplo, compram trabalho aos trabalhadores, mas não lhes vendem nada; enquanto os capitalistas que produzem meios de subsistência são quem realiza trocas completas com os trabalhadores assalariados, comprando-lhes trabalho presente e vendendo-lhes trabalho passado. Porque são quem vende trabalho passado aos trabalhadores, os capitalistas do ramo dos meios de subsistência vendem [como trabalho passado] maior quantidade de trabalho presente [do que a] que compraram, porque o vendem aos trabalhadores empregados nos dois ramos da produção social (meios de produção e meios de subsistência).

Aparentemente, no ramo dos meios de subsistência seria realizado um lucro extra, correspondente ao lucro que os capitalistas do ramo dos meios de produção não teriam oportunidade de realizar. Acontece que os meios de subsistência são produzidos com trabalho presente comprado directamente e com meios de produção, os quais, por sua vez, também são produzidos com trabalho presente. Deste modo, ao comprarem meios de produção, os produtores de meios de subsistência estão comprando, indirectamente, o trabalho presente empregado naquele ramo da produção, e com essa compra realizam o lucro dos capitalistas daquele ramo.

O lucro extra que aparentemente seria realizado no ramo dos meios de subsistência, porque venderia [como trabalho passado] maior quantidade de trabalho presente do que aquela que comprara, é afinal distribuído ao ramo dos meios de produção. Como se vê, a apropriação individual do lucro é efectuada por distribuição do lucro total por entre os capitalistas dos dois ramos da produção social [e equitativamente, na exacta medida em que cada um contribuiu para a sua formação].

Para além da forma como se processa a distribuição do lucro, falta determinar em que proporção cada um dos capitalistas o recebe, se proporcionalmente ao trabalho presente que compra (representado pelo capital empregado em salários) ou se proporcionalmente à totalidade do capital empregado. Se todo o capital é empregado na compra de trabalho, seja directamente como trabalho presente, seja indirectamente como trabalho passado, e se todo ele reaparece acrescido pela sua venda [como novo trabalho passado] aos trabalhadores assalariados, é lógico que a repartição do lucro se efectiva através da aplicação de taxas de lucro similares à totalidade do capital empregado.

A concepção do Marx de que o lucro seria determinado pela taxa de mais-valia [a relação do lucro com o capital empregado em salários], e não pela taxa de lucro [a relação do lucro com a totalidade do capital empregado], não tem qualquer consistência, porque deriva duma concepção errada da sua génese como trabalho suplementar gratuito fornecido pela força de trabalho. Desta concepção resultava a apropriação individual directa e na proporção da parte do capital empregado em salários, o que entrava em contradição com a realidade e com os fundamentos do capitalismo.


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A concepção da génese do lucro pela troca desigual entre o capitalista e o trabalhador assalariado e a explicação da distribuição do lucro por entre os distintos capitalistas que apresento nestes textos são de minha autoria. Tanto quanto julgo saber, são originais [tenham o valor que tiverem, que eventualmente poderá não ser muito]. A designação “troca desigual” não é original, pois foi utilizada anteriormente por Arghiri Emmanuel, no seu caso, para designar a desigualdade que ocorre nas trocas internacionais e não a das trocas entre os capitalistas e os trabalhadores.

É bondade sua designar estas minhas concepções por teoria, visto que se referem a aspectos parcelares, ainda que fundamentais, da economia política. Julgo serem plausíveis e explicarem a realidade sem discrepâncias, mas só a passagem pelo crivo da crítica poderá conferir-lhes qualquer credibilidade. Apesar dos erros da sua teoria, reconheço mérito à tentativa do Marx, e as minhas concepções, de facto, mantêm-se no âmbito da teoria do valor-trabalho, que não encontra muitos adeptos fora do marxismo. De qualquer modo, isso não faz de mim adepto marxista. [As minhas concepções, aliás, constituem uma alternativa, pois defino o valor do custo de produção das mercadorias como valor do custo de produção do trabalho].

É como diz, a famosa conversão dos valores em preços de produção foi uma tentativa de corrigir a contradição da concepção marxista de taxas de lucro inversamente proporcionais à composição orgânica dos capitais, como [também] acontecia com a teoria do Ricardo. Em meu entender, eventualmente, é da autoria do Engels, que com ela tentou salvar, infrutiferamente, a credibilidade da obra do Marx. Os preços nominais das mercadorias sempre foram formados pela aplicação da taxa de lucro esperada; aliás, sendo os capitalistas compradores e vendedores de mercadorias, não se compreende porque apenas obteriam lucro da compra da mercadoria trabalho [presente] e não das outras mercadorias necessárias ao processo produtivo.

Esta famosa conversão apenas era necessária para corrigir o modelo original de formação dos preços nominais do Marx, decorrente da concepção da troca equitativa e da mais-valia como trabalho suplementar fornecido gratuitamente pela força de trabalho. Uns ideólogos esforçaram-se a demonstrar que estava errada, embora o que lhes interessasse fosse a refutação da teoria clássica do valor-trabalho e da origem do lucro como trabalho apropriado; enquanto outros, os marxistas, se esforçaram e continuam empenhados a tentar salvar e a justificar a conversão, aparentemente sem se aperceberem [de] que esse é um esforço inglório, porque o erro reside no modelo original do Marx.

A refutação da conversão é proporcionada pela própria explicação defendida para a formação dos chamados preços de produção. Baseando-se na concepção de que as mercadorias produzidas com maior composição orgânica dos capitais (e, logo, com maior produtividade) seriam vendidas acima do valor e as produzidas com menor composição orgânica seriam vendidas abaixo do valor, [essa explicação] refuta que as mercadorias teriam sido alguma vez vendidas pelo valor, como era defendido pelos economistas clássicos e pelo Marx.

O que surpreende é os marxistas, ainda hoje, defenderem a concepção absurda de que a força de trabalho é a mercadoria vendida pelo trabalhador e que o lucro tem origem na faculdade extraordinária desta mercadoria mágica para fornecer mais valor do que o seu [suposto] próprio valor; isto é que me parece deveras extraordinário, coisa de conto de fadas para mentes infantis. [Mas os marxistas, como os crentes no sagrado, mesmo adultos feitos e com idade para terem juízo são propensos à crendice nos milagres mais inverosímeis, bastando-lhes as aparências do prodígio].

Os capitais não migram para os ramos em que a composição orgânica dos capitais é menor, mas para aqueles em que ela é maior, [o que permite] não só aumentar o ritmo da produção como a produtividade do trabalho e o lucro. A mecanização e a automatização, iniciadas com a revolução industrial, e prosseguidas hoje com as tecnologias da informatização, aí estão para comprová-lo de forma exuberante (e mesmo em pleno século XIX, no tempo do Marx, a automatização da produção têxtil do seu amigo Engels, por exemplo, evidenciava a tendência que se acentuaria para o aumento constante da composição orgânica dos capitais).


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Comungo de muitas das apreciações que faz acerca do marxismo. Se o comunismo se tem quedado por ser um movimento político e não por ter sido uma experiência política com as consequências positivas e negativas conhecidas, é muito provável que o marxismo não chegasse a conhecer a divulgação que teve. [Duvido] de que as experiências comunistas devam ao Marx mais do que a inspiração na profecia classista redentora da proclamação panfletária de 1848 [do] Manifesto do Partido Comunista e na Crítica do Programa de Gotha. Em meu entender, o essencial do comunismo, desde a possibilidade da sua eclosão até às formas concretas de que se revestiu, deve muito mais ao leninismo-estalinismo (baptizado de marxismo-leninismo) do que ao marxismo.

A sua melhor relação com o marxismo acaba por ser a demonstração de que a tese da revolução socialista proletária é um idealismo pegado, que não corresponde a qualquer necessidade de revolução social. Daí o carácter de desenvolvimento do capitalismo em sociedades menos desenvolvidas e o cunho nacionalista que o comunismo assumiu por todo o lado, com o estado a desempenhar o papel que caberia às burguesias nacionais, e o proletariado a produzir a mata-cavalos a acumulação necessária para a rápida transformação de sociedades atrasadas em modernas sociedades desenvolvidas.

Concordo que as teorias do valor e da génese do lucro para além da dita teoria do valor-trabalho, pretendendo explicar o lucro pela psicologia de produtores e de consumidores, de facto, nada explicam e não passam de discursos legitimadores do lucro. Ora, a melhor legitimação do lucro é a sua já longa existência, demonstrando a sua importância social. O problema que a humanidade tem de resolver não é tanto a existência ou a legitimação do lucro, mas de quem dele [usufrui ou] se apropria.

Almada, 9-17 de Junho de 2009.


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