sábado, 9 de dezembro de 2006

A memória e o mito do comunista herói antifascista


A MEMÓRIA E O MITO
DO COMUNISTA HERÓI ANTIFASCISTA


José Manuel Correia


Os comunistas não são parcos no auto elogio acerca do heroísmo de que se teria revestido a sua luta contra o fascismo salazarista. Ao longo dos anos, têm colaborado nessa versão antigos companheiros de jornada, esperando colher parte dos louros; excomungados por múltiplas fraquezas, almejando granjear um resto de compaixão ou o definitivo perdão; e outros cujo preito de homenagem não é mais do que a justa medida do arrependimento serôdio da sua distanciada, mas cómoda e tolerante, convivência com o regime. O tempo, na sua marcha inexorável, tem da lei da vida libertado alguns verdadeiros heróis, uns comunistas, outros não, e a ingratidão da memória tem esquecido outros, apenas republicanos, liberais ou humanistas anticomunistas, mas firmes democratas. Resta esperar que a História a todos faça a lembrança dos seus nomes, para que não caiam num injusto esquecimento.

A tão cantada heroicidade dos comunistas na luta antifascista, reclamada como exclusivo, é mais um dos mitos que eles são pródigos em inventar, na ânsia de engrossarem o pecúlio do mérito que os credenciaria como lídimos lutadores pelas liberdades e insignes defensores dos interesses dos trabalhadores. A História tarda na reposição da verdade factual, e o que tem sido divulgado para as gerações mais novas não ultrapassa o panegírico. Quando o longo período da ditadura fascista for analisado com a isenção que só a distância do tempo permite, alguns dos mitos desfazer-se-ão e ficar-se-á a conhecer a verdadeira dimensão da luta travada pelos comunistas e os motivos profundos que a orientavam. Pode-se dizer, entretanto, que essa luta teve no regime ditatorial um reduzido impacto, que nunca o abalou minimamente, e que pouco ou nada contribuiu para a melhoria das condições de vida dos operários e dos restantes trabalhadores assalariados.

A heroicidade reclamada pelos comunistas não provém da sua abnegação na luta pela liberdade e pela defesa dos interesses dos trabalhadores, ainda que infrutífera, mas da pertença a um grupo organizado de revolucionários sonhando com o derrube do salazarismo e aspirando à conquista do poder, da sua persistente existência, ao invés de outros que apareciam e rapidamente desapareciam, e da perseguição e repressão a que foram sujeitos de forma continuada. Mais do que pelo perigo real que representavam, os comunistas tornaram-se num alvo para a ditadura pelas características da sua organização como seita conspirativa revolucionária, existindo na clandestinidade, pelo credo que abraçavam com fanatismo alguns dos membros, pela suposição das suas ligações orgânicas ao comunismo soviético e pelo receio de que os seus ideais subversivos contagiassem o operariado, o que os distinguia da restante oposição.

A perseguição policial e a repressão penal sofrida pelos comunistas, portanto, resultou da sua condição de membros duma pequena seita conspirativa revolucionária — cuja actividade principal, por longos períodos, se restringia à edição e distribuição de propaganda, ao estabelecimento de contactos entre os seus membros, necessários para uma mínima doutrinação, para a manutenção da coesão e para a difusão da propaganda, e à angariação de aderentes — e do perigo potencial, eventualmente desmesurado, que um regime reaccionário e totalitário, isolado internacionalmente, via nela e nos seus alardeados apoios internacionais, tomando-a, por isso, como um dos seus alvos preferenciais. A sua ideologia e a sua prática demonstram que os comunistas, ao contrário dos democratas, não lutavam para restituir a liberdade ao povo, para este decidir democraticamente os seus destinos; por isso, não foram apenas resistentes antifascistas, como pretendem fazer crer, mas revolucionários comunistas que afirmavam visar a substituição da ditadura fascista pela ditadura comunista.

A partir dos anos trinta, umas largas centenas de membros do partido comunista e de meros simpatizantes do comunismo foram vítimas da repressão, sofredoras de maus-tratos, de anos de enclausuramento e de desterro; outros tantos foram alvo de perseguições insidiosas que lhes negaram o emprego ou desfizeram as carreiras promissoras, obrigando alguns, de entre a intelectualidade, ao exílio; e uns poucos foram assassinados. Tal, porém, não resultou das suas insignificantes actividades de agitação, de organização e de direcção dos trabalhadores nas oficinas, nas fábricas, nos estaleiros ou nos campos — ainda que a polícia a todos os agitadores e protestantes tratasse de apelidar de comunistas, para mais facilmente atemorizar o povo — mas ficou a dever-se, essencialmente, ao facto de o partido comunista preencher os requisitos necessários para ser identificado como o inimigo interno justificador da cruzada anti-comunista em que também se fundamentava o corporativismo fascista. Essa a coroa de glória dos comunistas, que nem por tão parcos motivos deveremos esquecer ou deixar de respeitar.

Um outro mito meticulosamente construído pelos comunistas é o de terem constituído a vanguarda na organização e na direcção das lutas operárias por melhores condições de vida e de trabalho. O regime destruíra o movimento sindical autónomo, reorganizando-o e controlando-o ferreamente como parte da estrutura corporativa, quebrando por muitos anos a fraca capacidade reivindicativa dos trabalhadores portugueses. Os comunistas mantinham-se prudentemente afastados dos sindicatos corporativos, e a sua penetração nos meios operários, que sempre fora fraca devido à tradição hegemónica do anarco-sindicalismo, foi pouco mais do que insignificante. As lutas operárias contra a carestia da vida, contra o racionamento, por melhores salários ou por emprego, que irrompiam espontaneamente na sua maioria, só esporadicamente tinham o envolvimento ou a direcção dos comunistas, tal era o medo de serem descobertos e de porem em perigo a pequena seita a que pertenciam. Com a sua tendência intrínseca para a falsificação da realidade, frequentemente os comunistas noticiavam-nas na propaganda escrita como fruto do seu labor e empenhamento.

Os comunistas viviam do mito da sua organização clandestina, e alguma simpatia que colhiam não reflectia a sua acção na defesa dos interesses dos trabalhadores, antes resultava duma mistura da admiração pela coragem de serem o único partido político oposicionista do salazarismo e dos ecos dos feitos propagandeados do comunismo soviético. As grandes massas do povo e dos trabalhadores não eram receptivas à sua propaganda, por vezes por maus exemplos de vida de um ou outro conotado com o comunismo, mas em geral porque eram permeáveis à permanente propaganda insidiosa diabolizando o comunismo e os comunistas, porque o pequeno partido estava ausente, organizado em pequenas células, em número restrito e muito dispersas, nas grandes cidades e nos poucos centros industriais existentes, e porque o contexto social, onde grassava o receio, o medo, a miséria e a dependência da caridade pública ou particular, criava uma rede de subserviências pouco propícia para que tal acontecesse.

Daí que o partido comunista não fosse constituído esmagadoramente por operários esclarecidos, ainda que durante um tempo se esforçasse para que na direcção constassem maioritariamente membros de origem operária ou trabalhadores assalariados; não admira, portanto, que os seus principais quadros e dirigentes, durante a maior parte da existência do partido, tenham sido intelectuais de origem burguesa. Embora a sua propaganda se dirigisse prioritariamente aos operários, colhia o grosso da simpatia e da adesão entre os empregados no comércio e nos escritórios, assim como entre os artesãos e os pequenos patrões, entre a intelectualidade e a juventude estudantil pertencentes à pequena burguesia ou oriundos da média burguesia liberal e esclarecida, de cuja rede de amigos e de simpatizantes proveio grande parte do apoio logístico e do suporte financeiro indispensáveis para a manutenção de uma organização clandestina de revolucionários profissionais (que durante muitos anos não foi financiada nem subsidiada pela União Soviética ou por outros países comunistas, ao contrário do que o regime fascista supunha e difundia).

O medo que o regime fascista incutia nas massas para que não ousassem sequer “falar mal da situação”; a ancestral cobardia, ampliada pela miséria gerada pelo desemprego endémico e mantida por uma industrialização incipiente; a ignorância devida às elevadas taxas de analfabetismo; o conformismo, o respeito pela autoridade e o temor a Deus difundidos pela religião; a ausência de liberdade e o controlo da cultura e da informação pela censura; a existência duma polícia política e de uma vasta rede de informadores enquadrados e de “bufos” anónimos; e uma permanente propaganda glorificando o chefe, o salvador da pátria e zelador para que os portugueses fossem tendo algo com que enganar a fome eram alguns dos ingredientes decisivos que tornavam difícil o sucesso da propaganda e da acção dos comunistas entre as massas, os quais se transformaram em barreiras quase intransponíveis que só timidamente foram sendo ultrapassadas com a industrialização da década de sessenta e com a concomitante flexibilização do regime efectuada pelo Marcelo Caetano.

Nem a vitória aliada na guerra de 39-45 nem o drama da mobilização para uma longa guerra colonial conseguiram fazer sublevar este povo, que habituado a caudilho só despertava quando um outro candidato a chefe ousava afrontar o poder pessoal do Salazar. Aconteceu assim, um pouco, com o Norton de Matos, um velho general conservador e temente do controlo dos seus acólitos e aliados, e desabrochou inesperadamente com a frontalidade e a coragem pessoal do Delgado, um outro general, arrivista com carisma e ambição para novo caudilho (dissidente do regime, concorrente às eleições presidenciais de 1958 contra o candidato oficial Contra-Almirante Américo Tomás, perseguido e exilado, mais tarde atraído a uma armadilha e assassinado pela polícia política). Por isso, todas as revoltas não passaram de conspiratas palacianas congeminadas nos escritórios do reviralho, ou de tentativas de acções espectaculares de pequenos grupos isolados de aventureiros, sem a mínima organização e sem qualquer possibilidade de sucesso. Não foi necessária muita perspicácia para que o Cunhal se apercebesse de que o derrube do regime apenas seria possível com a sublevação da tropa.

Numa altura em que se assiste a despudoradas tentativas de branqueamento das malfeitorias de um regime político iníquo, que este povo tristemente suportou por tempo demasiado, e surgem sub-reptícios depoimentos humanizando os seus responsáveis máximos — o Salazar e o Caetano — insinuando que afinal não foram os ditadores cínicos e hipócritas retratados pelos antifascistas, é necessário guardar a memória do que foi o regime fascista. Evidenciar a similitude dos fundamentos ideológicos, das concepções políticas e institucionais e das práticas totalitárias, ilustrar o arcaísmo dos valores e a amplitude e diversidade dos instrumentos de controlo social, de vigilância e perseguição policial e de repressão física e penal será suficiente para que os mais jovens fiquem sabendo que a ditadura fascista existiu de facto e aprendam a amar e a cuidar da liberdade, agora que ela está passando por aqui.

É desajustado e contraproducente, neste movimento de cidadania, fazer dos comunistas os heróis da luta antifascista pela liberdade e pela melhoria das condições de vida do povo. Ainda que alguns deles estivessem imbuídos de genuíno idealismo, acreditando sinceramente numa profecia humanista, muitos outros não passavam de aventureiros, de oportunistas aspirando a um lugar à mesa do novo poder que sonhavam instaurar, que se diferenciava do fascismo pelo engano e ilusão das massas. Eles são vítimas, como todo este povo, mas o seu maior sofrimento foi o custo do risco assumido da luta pelo poder levada a cabo pela seita revolucionária de cariz totalitário a que pertenciam, apologista de um regime político ainda mais repressivo do que o regime fascista que combatiam. Como vítimas merecem respeito, como comunistas não são credores de consideração especial, como heróis mingua-lhes o crédito.

Os verdadeiros heróis anti-regime são as suas vítimas anónimas, aqueles que sofreram por ousarem gritar a sua genuína indignação contra a opressão e a miséria; os que pagaram apenas por desabafarem as durezas da vida a que os condenava um regime oligárquico; e os que lutaram pela liberdade sem mais nada esperarem em troca. Não serão muitos, esses heróis anónimos, mas são certamente os melhores deste povo subserviente que por tempo inusitado suportou a opressão, a mordaça, a ignorância e a pobreza.

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