terça-feira, 18 de novembro de 2008

Os erros de Marx acerca da exploração (4)


A obra do Marx tem sido atacada desde há muito e por muitos ideólogos burgueses. A componente política dessa obra é facilmente contestada, pelo falhanço dos regimes políticos comunistas que se inspiraram na profecia idealista messiânica que ela anunciava. A componente apelidada de científica, nomeadamente, a crítica da economia política e um esboço de teoria da revolução social, tem igualmente sido objecto de críticas. Desta componente da obra do Marx ressalta a sua teoria do valor das mercadorias, derivada da teoria clássica do valor, e a concepção da génese do lucro e da exploração dos trabalhadores assalariados que o possibilita. Até hoje, a teoria marxista do valor e a sua concepção da génese do lucro não tinham sido cabalmente refutadas, e os críticos não conseguiam demonstrar a sua falsidade. Foi este trabalho que empreendi com o texto O trabalho, o valor e a mais-valia no modo de produção capitalista e com os da série Os erros de Marx acerca da exploração (1, 2 e 3), de que este é o quarto e último.

Nos textos anteriores, julgo ter procedido a uma refutação cabal da concepção marxista do valor das mercadorias e da génese do lucro, e também penso ter apresentado uma concepção inovadora, original, para essas questões. A metodologia que segui foi aplicar às concepções do Marx o método crítico por ele adoptado na sua crítica das concepções dos economistas políticos clássicos. Constatei, deste modo, que usando as premissas adoptadas pelo Marx a sua argumentação se mostrava inválida, porque as conclusões contrariavam as premissas, devido a erros lógicos grosseiros; e verifiquei, além disso, que várias daquelas premissas, umas originais, outras oriundas da economia política clássica, tidas por verdadeiras, não se mostravam plausíveis, de onde resultavam conclusões falsas. Concluí, por isso, que a concepção marxista do valor das mercadorias e da génese do lucro e da exploração que o possibilita está destituída de qualquer consistência e é falsa.

As concepções do Marx não terem encontrado críticos à altura não deixa de causar alguma perplexidade. Encarado como profeta duma sociedade nova apostada em substituir o modo de produção capitalista, compreende-se que tenha sido tomado como inimigo por muitos ideólogos burgueses e que a sua obra tenha sido relegada para o índex das leituras não recomendadas. Banida dos cursos universitários de economia, o que é de lamentar, a sua crítica da economia política não foi alvo de estudo aturado. Fixando-se em questões menores — como a famosa e indemonstrável conversão dos valores em preços de produção, que pode ser considerada uma tentativa tardia e infrutífera de corrigir o modelo original de formação dos preços nominais das mercadorias pela aplicação da taxa de mais-valia ao capital empregado como salários, de que resultava uma inversa proporcionalidade entre a taxa de lucro e a composição orgânica dos capitais, substituindo-o por outro muito diferente, e que provavelmente é da lavra do Engels — nem mesmo os críticos mais sagazes abordaram o que de fundamental constituía a inovação marxista: a identificação da “força de trabalho” como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado e a concepção da génese do lucro como mais-valia criada no processo de trabalho, com a qual o Marx julgava ter ultrapassado os obstáculos em que o David Ricardo havia esbarrado.

Tolhidos pela ilusória representação da realidade de que a troca das mercadorias era uma troca equitativa, proclamada pela ideologia dominante como lei geral — apesar dela ser facilmente refutada, quer pela existência do lucro, quer pela diversidade das taxas de lucro obtidas pelos distintos capitais particulares, originando a concorrência e a mobilidade desses capitais, que ao procurarem constantemente anulá-la geram novas desigualdades — os críticos não puseram em causa a veracidade duma tal premissa, também adoptada pelo Marx. E, afinal, são estas duas concepções — a troca equitativa e a “força de trabalho” como mercadoria — juntamente com os desenvolvimentos que acarretaram, nomeadamente, a concepção do valor das mercadorias como sendo criado pelo trabalho vivo, que estão na origem dos erros cometidos pelo Marx e da falsidade das suas concepções no que se refere à teoria do valor das mercadorias e à génese do lucro.

Decorreu recentemente em Lisboa um Congresso Internacional dedicado ao Karl Marx, organizado por um departamento duma universidade estatal conjuntamente com uma cooperativa cultural. Apresentar uma comunicação a esse Congresso não foi coisa que não me tivesse ocorrido, e alguém próximo chegou mesmo a alvitrar a oportunidade para divulgar ali as minhas críticas à obra do Marx. Indisciplinado, duvido que conseguisse alinhavar coisa de jeito para cumprir os prazos estabelecidos; defendendo concepções que refutam as do Marx e demonstram a sua falsidade, suspeito que uma comunicação minha não seria aceite. Verificando os diferentes painéis em que estava estruturado, depressa me apercebi de que aquele não era o tipo de evento adequado para o efeito. O elenco dos temas mostrava que os organizadores não procuravam a discussão da obra do Marx, mas pretendiam o desenvolvimento do chamado marxismo, a divulgação e discussão de ideias de adeptos sobre os mais variados temas políticos. A publicação do programa com a identificação das comunicações confirmou esses objectivos. Curiosamente, apenas uma das muitas comunicações versava sobre um tema importante, a teoria do valor, e do título depreendia-se facilmente o seu carácter apologético. O referido Congresso acabou por ser um exemplo de como algumas universidades se envolvem na promoção e na difusão de ideias políticas em vez de incentivarem e fomentarem a investigação e a produção de conhecimento.

Aproveito a ocasião de proximidade em relação àquele evento para fazer um resumo da minha crítica às concepções do Marx acerca da teoria do valor das mercadorias e da génese do lucro e da exploração que o possibilita.



*

Os erros do Marx nascem da concepção de que as mercadorias eram trocadas pelos seus valores e, em conformidade, de que a sua troca era equitativa. Tal concepção correspondia à representação que os ideólogos burgueses faziam da troca, mas não encontrava correspondência na realidade. Aceitando acriticamente esta errada concepção, o Marx cometeu depois outros erros inteiramente da sua lavra. O primeiro desses erros foi não ter definido e usado a grandeza “custo de produção” para caracterizar as mercadorias, restringindo as suas qualidades às grandezas “utilidade” e “relação de troca”, ainda que tenha reconhecido implicitamente que o seu valor era o que custava produzi-las, o valor do custo da sua produção. Outro dos seus erros foi ter identificado a “força de trabalho”, a capacidade para produzir trabalho humano, como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado. E outro, ainda, foi ter atribuído a criação do valor das mercadorias ao trabalho presente ou vivo, identificado como utilidade da "força de trabalho", durante o processo imediato de produção. Toda a argumentação com que fundamentou a sua teoria do valor das mercadorias e a sua concepção da génese do lucro decorre destes erros. Para que a minha crítica seja facilmente compreensível, esclareço que elimino a ambiguidade daquilo que o Marx designa por valor das mercadorias; defino o conceito de valor como a dimensão ou resultado da medida de uma característica, e quando me refiro ao valor das mercadorias identifico-o com o valor do custo da sua produção.

Começo pela famosa premissa de que as mercadorias seriam trocadas pelos seus valores, isto é, por valores de troca e por preços representativos dos seus valores de custo, oriunda da economia política clássica e adoptada pelo Marx como verdadeira. Na realidade, nada permite comprovar a veracidade de tal premissa. Antes pelo contrário. A existência do lucro é um forte indício de que a equidade da troca não ocorre na realidade; e a diversidade das taxas de lucro obtidas pelos distintos capitais particulares, que origina a concorrência nos ramos e a mobilidade dos capitais entre eles na tentativa incessante da obtenção da melhor taxa, mostra que a troca equitativa nem ocorre entre os diversos produtores capitalistas. Mesmo que estes movimentos possam eventualmente gerar equilíbrios transitórios, temporários e precários na distribuição equitativa do valor apropriado por entre os capitalistas de uma mesma formação social, logo destruídos por inovações que melhoram a produtividade e motivam a concorrência e a mobilidade dos diversos capitais particulares, a troca entre os capitalistas de diversas formações sociais, contribuindo para o seu desenvolvimento desigual, aí está para comprovar que até entre eles a troca não é equitativa, mas troca desigual.

Pela sua própria natureza, a troca é uma relação social que não oferece qualquer garantia de equidade, podendo gerar desigualdade nos valores trocados, quer pelo desconhecimento do valor da mercadoria alheia, quer pela sua depreciação intencional. Entre os produtores capitalistas podem ocorrer trocas desiguais, devido a desvios da produtividade média com que são produzidos os diversos tipos de mercadorias, diferenciando os seus valores, e que se exprimem também nas distintas taxas de lucro que obtêm, mas a troca entre capitalistas e trabalhadores assalariados, através da depreciação do trabalho presente pela aplicação duma taxa de lucro ao trabalho passado, é a principal das trocas desiguais. É na troca desigual entre intervenientes aparentemente livres e iguais que reside a essência do modo de produção capitalista, pois é ela que origina a apropriação duma parte do valor criado na produção, o lucro ou a mais-valia (se bem que o termo mais-valia seja totalmente inadequado para designar a parte do valor apropriada pelos capitalistas, o valor a menos que o trabalhador recebe em troca do valor que fornece), assim como é também ela que gera o desenvolvimento desigual do modo de produção capitalista em relação ao modo de produção tributário e que acentua o que ocorre entre as diferentes formações sociais capitalistas.

Se os diversos produtores desconhecerem o valor do custo de produção da mercadoria alheia, a troca tanto pode ser equitativa como desigual; e se dispuserem de condições para conhecê-lo e de capacidade para depreciá-lo, a troca é seguramente desigual. Quando os produtores colocam uma mercadoria em relação quantitativa com outra, o valor de custo que lhe é atribuído na troca, que determina o seu valor de troca e o seu preço, corresponde ao valor do custo de produção da mercadoria pela qual é trocada e não ao seu próprio valor. Nada garante, portanto, que o valor de troca expresse fielmente o valor do custo de produção, que as mercadorias sejam trocadas na proporção dos seus valores de custo e que a relação de troca seja equitativa. No que respeita à mercadoria trabalho presente, porém, os seus compradores conhecem o valor do custo da sua produção, que é simultaneamente o valor do custo de produção das mercadorias que obtêm com o seu emprego; enquanto os seus vendedores desconhecem o valor do custo de produção das mercadorias pelas quais a trocam. Estão, assim, criadas as condições para a troca desigual de valor entre os compradores e os vendedores de trabalho presente.

Parecendo uma relação entre coisas, entre mercadorias, a troca é uma relação social estabelecida entre pessoas, e o estado de necessidade em que cada um dos intervenientes se encontra em relação à mercadoria alheia, e a oportunidade com que a pode obter, ou seja, a pertinência que lhe atribui, influencia a quantidade da sua mercadoria que está disposto a ceder em troca da que necessita. Mesmo numa situação ideal de equilíbrio entre a oferta e a procura, a troca é influenciada por avaliações subjectivas da pertinência, que determinam as preferências e as decisões dos produtores enquanto consumidores, as quais acabam reflectindo-se no valor de troca das mercadorias. Para os trabalhadores assalariados, as mercadorias alheias que obtêm por troca do trabalho que vendem constituem uma necessidade vital; se não venderem a mercadoria de que são produtores não poderão obter as mercadorias com que assegurem a existência, e as alternativas que lhes restarão serão estenderem a mão à caridade ou perecerem. Não admira, portanto, que aceitem vender a sua mercadoria numa relação de troca desigual, apesar da desumanidade que atribuam ao facto.

Ao contrário do que acontece com a utilidade e a relação de troca, e com o preço, o custo de produção é uma grandeza objectiva, cuja dimensão ou valor pode ser determinado com fiabilidade e não é influenciado pelas vicissitudes que ocorrem na troca. No acto da troca, que conclui o processo de produção das mercadorias, consumando a transformação dos produtos em coisas que se compram e vendem, elas têm determinado o custo da sua produção, que não mais varia e é independente da relação quantitativa que os produtores estabeleçam entre as mercadorias que trocam. Porque não está dependente de qualquer dos factores que podem influenciar a relação quantitativa das mercadorias na troca, o custo de produção, portanto, é a grandeza que permite comparar objectivamente o que cada um dos intervenientes cede em troca do que recebe dos outros. Não só as mercadorias têm custo de produção como este é a grandeza que constitui a variável independente na troca. Sem a determinação do valor ou dimensão da grandeza custo de produção não seria possível conhecer o que não é visível na relação quantitativa entre as mercadorias na troca. O custo de produção é de tal modo importante na produção das mercadorias que desde sempre os produtores se têm afadigado a reduzir-lhe a dimensão ou valor.

Partindo do princípio de que a troca era equitativa, que o valor de troca expressava necessariamente o valor de custo, e caracterizando economicamente as mercadorias apenas pelas grandezas utilidade e relação de troca, decorrente do valor do custo que lhes era atribuído na troca, não seria possível ao Marx, como não fora aos ideólogos burgueses, desvendar o segredo do “trabalho passado comandar mais trabalho presente”, que o Adam Smith já apontara, o segredo do valor apropriado. Perante a dificuldade, o Marx tinha como alternativas refutar o princípio de que a troca era equitativa ou arranjar uma mercadoria dotada duma faculdade muito especial: o “dom” de fornecer mais valor do que o seu próprio valor. Ora, um tal fenómeno não ocorre na realidade; nada fornece mais do que contém, seja do que for que contenha, e, portanto, nenhuma mercadoria pode fornecer mais valor do que o seu próprio valor. Foi este, contudo, o caminho seguido pelo Marx ao inventar uma mercadoria especial dotada duma capacidade tão paradoxal: a “força de trabalho”.

A “força de trabalho”, a mercadoria que teria a faculdade de fornecer mais valor do que o seu próprio valor, é o que designo por mercadoria mágica. Ainda que esta imaginária mercadoria parecesse ter a faculdade de fornecer mais trabalho do que aquele que o trabalhador recebera em troca, nada permitia afirmar que o valor do custo da sua produção correspondia ao valor do custo de produção das mercadorias pelas quais era trocada. Aliás, a diferenciação salarial comprovava que a “força de trabalho” não era trocada pelo valor do custo da sua produção, porque o mesmo tipo de mercadoria não poderia ter custos de produção tão diferenciados quanto eram os salários, nem a mesma mercadoria produzida pelo mesmo trabalhador em alturas distintas da sua vida poderia ter custos de produção tão diversos. O Marx tomou a aparência do fenómeno como representativa da sua essência, e considerou o valor a menos que o trabalhador realmente recebia na troca daquela sua suposta mercadoria como se fosse um suposto valor a mais que ela teria a faculdade de fornecer. Pode-se imaginar quanta dificuldade terá tido o Marx para engendrar esta solução, porque sem refutar a concepção que a ideologia dominante decretara para caracterizar a troca, erigindo a troca equitativa como lei geral, não era fácil sair do impasse a que tinham chegado os ideólogos burgueses.

Mesmo arranjando uma mercadoria com um tal “dom” o problema da génese do lucro não ficava cabalmente resolvido. O próprio Marx tinha consciência de que o valor das mercadorias resultava do valor daquelas que entravam na sua produção, e afirmara-o. Se esta mercadoria entrasse na produção com o seu valor, o valor resultante do processo produtivo seria idêntico ao que nele entrara, não havendo lugar à criação de qualquer valor suplementar. Faltava explicar como esta mercadoria especial forneceria mais valor do que o seu próprio valor. Para isso, o Marx teve de complementar a sua concepção da génese do lucro com mais uma originalidade: o valor das mercadorias não resultava dos valores daquelas que participavam no processo da sua produção, o inverso do que afirmara, e era criado nesse processo pelo trabalho presente, identificado como sendo a utilidade da mercadoria “força de trabalho”. O valor aparecia não como resultado de valores anteriores, mas como sendo criado por uma suposta utilidade daquela mercadoria especial. Através da sua acção sobre os objectos de trabalho, o trabalho presente criava não só a nova utilidade daqueles objectos, mas também o seu novo valor de custo, transformando-o num valor superior ao do somatório do seu valor anterior com o da “força de trabalho”. O valor era assim concebido como sendo criado pela utilidade, uma grandeza de natureza distinta, de uma mercadoria especial.

O fenómeno da génese do lucro parecia enfim ficar suficientemente explicado: o trabalhador venderia a sua mercadoria pelo seu valor, ficando quite, e, ainda que em troca recebesse mercadorias com menos valor, ninguém enganava ninguém. Tudo se passaria no respeito pela sacrossanta lei da troca equitativa, porque ao capitalista coubera em sorte comprar uma mercadoria que fornecia mais valor do que o seu próprio valor. Desta concepção, porém, resultava um problema maior, que o Marx eventualmente não se apercebeu. Se o trabalho presente era o criador do valor das mercadorias, não era o criador do valor dessa mercadoria especial que ele inventara, a “força de trabalho”, em cuja produção não participava, visto ser o seu produto, e a produção daquela resultar apenas do trabalho passado. Não participando na criação do valor da “força de trabalho”, o trabalho presente não poderia ser o criador do valor de todas as mercadorias; ou, então, a “força de trabalho” não seria mercadoria, ou, sendo, não teria valor, visto não ser produto do trabalho presente, mas a sua produtora. Afirmando o Marx que a “força de trabalho” era mercadoria e, além do mais, que tinha valor, a sua argumentação que faz do trabalho presente o criador do valor das mercadorias não é válida, porque viola as regras da inferência.

O trabalho presente seria o produtor das restantes mercadorias, menos da mercadoria especial “força de trabalho”, da qual é apenas o produto. Impõe-se questionar, por isso, se esta tão especial mercadoria será uma mercadoria real ou um mero artifício arranjado para encontrar uma explicação cabal para a ocorrência do lucro. Se analisarmos bem, a “força de trabalho”, a capacidade para produzir trabalho humano, não é coisa que se possa fornecer a terceiros, para que eles produzam trabalho; é apenas a capacidade produtiva do trabalhador, aquilo que faz dele um produtor de mercadorias. Como se constata, o trabalhador não entrega ao capitalista “força de trabalho” para este produzir trabalho. Diversamente do que sucede com as fábricas, por exemplo, que devido à sua capacidade produtiva constituem mercadoria e, por isso, podem ser vendidas, no modo de produção capitalista o trabalhador assalariado, a fábrica que detém a capacidade de produzir trabalho humano, não é vendido, não constitui mercadoria, ao contrário do que acontecia com os produtores de trabalho na escravidão. Assim sendo, a “força de trabalho”, a capacidade de produzir trabalho humano, não pode constituir a mercadoria que o trabalhador assalariado vende, porque não é uma mercadoria real.

O trabalhador assalariado, contudo, vende alguma mercadoria. Se não vende "força de trabalho", capacidade para produzir trabalho, o que vende só pode ser o trabalho que produz com ela. Trabalho com utilidade concreta, de facto, é o que os diversos trabalhadores concretos fornecem para ser usado na transformação da utilidade de objectos de trabalho que sejam pertença dos compradores da sua mercadoria. Se após o contrato de compra e venda o trabalhador se apresentasse ao capitalista com a sua “força de trabalho” e não produzisse trabalho da utilidade, na quantidade e com a qualidade previstas para entregar-lhe seria acusado de fraude e teria o contrato rescindido. É o que acontece desde os primórdios do capitalismo, e ainda hoje continua sendo motivo para rescisão do contrato de compra de trabalho. Então, se o trabalho é mercadoria e o produtor das restantes mercadorias, que mais não são do que produtos da sua acção e trabalho sob a forma de trabalho passado, o trabalho constitui a mercadoria universal a que podem ser reduzidas todas as mercadorias. Ao trocarem alguma coisa, os intervenientes mais não fazem do que trocarem trabalho: trabalho vivo, presente, a produzir ou em produção, por trabalho morto, passado, já produzido. Deste modo, enquanto mercadoria, o trabalho tem valor, o valor do custo da sua produção; e, enquanto mercadoria universal, o valor das mercadorias é o valor do custo de produção do trabalho.

O valor do custo de produção do trabalho não é medível em trabalho, mas num padrão da substância que o origina. Essa substância criadora do trabalho é a energia humana, que poderá ser designada de forma aligeirada por “força de trabalho”. Uma certa quantidade de trabalho terá como custo de produção uma certa quantidade de energia humana, qualquer que seja a unidade de medida que arranjemos como adequada. Se homogeneizarmos o trabalho concreto de diversas utilidades — reduzindo-o a um trabalho geral ou abstracto representativo das diversas utilidades, produzido com esforço e ritmo, ou potência, médios, em condições ambientais similares — o valor do trabalho, de qualquer trabalho, ou quantidade de energia humana consumida, é função apenas do tempo da sua produção. Por isto, em termos práticos, o tempo de produção do trabalho pode ser tomado como unidade expedita adequada para a medição do seu valor; tanto a quantidade do trabalho como o seu valor podem ser expressos pelo tempo da sua produção; e é este tempo de produção, representando a quantidade de trabalho e o valor do custo da sua produção, que é vendido e comprado. O valor das mercadorias, portanto, é criado pela energia humana ou “força de trabalho”, e não pelo trabalho, e este tem valor, o valor do custo da sua produção. Sendo assim, a concepção do Marx constitui uma completa inversão da realidade.

Comparando as quantidades de trabalho que são trocadas, facilmente se constata que o vendedor do trabalho presente recebe como pagamento pelo trabalho que vende menor quantidade de trabalho passado. É pois nesta troca desigual entre vendedores e compradores de trabalho presente que reside a génese do lucro e da exploração que o possibilita. A exploração é produto duma relação social, a troca, e o lucro em que ela se traduz não é mais do que o valor a menos que o trabalhador recebe ao trocar o seu trabalho presente por trabalho passado. O lucro não é qualquer mais-valia ou valor suplementar fornecido no processo de produção por uma qualquer mercadoria mágica, como é apontado pela concepção marxista. A sua origem é a exploração do trabalhador assalariado pela troca desigual do seu trabalho presente por menor quantidade de trabalho passado. Para justificar de forma consistente, porque válida e plausível, a génese do lucro e da exploração que o possibilita não é necessário recorrer à existência de mercadorias mágicas que produzam mais valor do que o seu próprio valor, violando as leis da física, nem cometer invalidades argumentativas, contrariando as leis da lógica. Esta realidade acontece porque o trabalhador assalariado se encontra num estado de necessidade que não lhe permite obter uma troca equitativa.

Da errada concepção do valor das mercadorias decorrem outros erros do Marx acerca da explicação do funcionamento do modo de produção capitalista. Desde logo, a sua concepção do lucro como mais-valia, como sendo um valor a mais fornecido gratuitamente no processo imediato de produção, e não um valor a menos pago ao trabalhador no processo de circulação. Depois, a concepção do trabalho produtivo restrito ao trabalho empregado no processo imediato de produção, não extensivo ao trabalho empregado no processo global de produção, da concepção à circulação das mercadorias, já que apenas o trabalho empregado no processo imediato de produção criaria a mais-valia. Depois, ainda, a concepção da formação do valor de troca e do preço dos restantes tipos de mercadorias pela aplicação duma taxa de mais-valia, a relação do lucro com o capital empregado em salários. Em condições de exploração similares existiria uma taxa de mais-valia similar, e o valor de troca resultaria do somatório dos preços de compra dos factores produtivos com a mais-valia proveniente da aplicação daquela taxa ao capital empregado em salários.

Deste modo, cada capitalista apropriar-se-ia da mais-valia correspondente à fornecida pelos trabalhadores que empregava, donde resultava que quanto maior fosse a composição orgânica do seu capital, a relação entre a parte empregada em meios de produção com a parte empregada em salários, menor seria a taxa de lucro que obteria; e, para capitais de igual montante, que quanto maior fosse a composição orgânica menor seria o lucro obtido. Uma tal concepção entrava em contradição com a realidade e com os fundamentos do modo de produção capitalista. Com esta mesma contradição, porém, já o Ricardo se vira confrontado anteriormente, e é também ela que está patente na concepção do Marx da ocorrência duma suposta tendência para a baixa da taxa de lucro, da qual decorreria a decadência do modo de produção capitalista. Uma tentativa tardia de corrigir estas erradas concepções, através de um outro modelo de formação dos preços das mercadorias — a famosa conversão dos valores em preços de produção — mostrar-se-ia infrutífera, acabando por acrescentar novas contradições à teoria marxista, como veremos noutros textos.

O acto da troca, concluindo o processo de produção, determina os valores do custo de produção das mercadorias, os tempos de trabalho consumidos na sua produção; esses são os seus valores, independentemente dos supostos valores do custo que lhes venham a ser atribuídos na troca e que se reflectirão na sua relação quantitativa e nos seus preços. Os valores de troca, e os preços, pelos quais as mercadorias acabam sendo trocadas são influenciados por variadíssimos factores, que se manifestam no mercado; os valores dos seus custos de produção, porém, estão determinados no acto da troca e não são influenciados por quaisquer desses factores. Por isso, a relação quantitativa em que são trocadas as mercadorias, directamente ou através da intermediação duma mercadoria equivalente geral facilitadora das trocas contendo o seu próprio valor ou representando um valor meramente simbólico, não garante a equidade da troca, nem permite conhecer a desigualdade com que são trocadas. Somente o valor do custo de produção, constituindo a variável independente na troca, permite conhecer com fiabilidade a real proporção em que os diversos produtores trocam as suas mercadorias. É possível assim determinar em que medida o produtor de trabalho presente recebe em troca menor quantidade de trabalho do que aquela que forneceu.

A existência do lucro impede os valores de troca das mercadorias, e, logo, os seus preços, de expressarem os seus valores de custo, porque a aplicação duma taxa de lucro ao trabalho passado deprecia o trabalho presente e faz com que o seu valor de troca, reflectido na relação que o expressa, não represente o seu real valor de custo. As mercadorias são trocadas por valores de custo que lhes são atribuídos para a troca, e estes são distintos dos seus reais valores de custo, e é através dos valores de troca, e dos preços, que se efectiva a troca desigual entre os trabalhadores assalariados e os capitalistas, proporcionando a estes a apropriação duma parte do valor criado na produção; assim como é também através deles que se realiza a distribuição desigual daquele valor apropriado por entre os diversos capitalistas, na proporção das taxas de lucro que obtêm. O valor atribuído ao trabalho presente na troca, e o seu preço, é depreciado pela aplicação duma taxa de lucro ou de apropriação na formação do valor de troca e do preço do trabalho passado com que aquele trabalho é pago; um mesmo preço, o salário, representa menor quantidade de trabalho passado do que aquela que o trabalhador por ele vendeu como trabalho presente.

Enleado numa teia de premissas falsas e de erros argumentativos, o Marx produziu uma concepção fantasiosa para a génese do lucro e da exploração dos trabalhadores assalariados: transformou-a em coisa natural, ainda que derivada de capacidades paradoxais duma mercadoria mágica, e assim a legitimou. Como afirmou o Engels, a grande inovação do Marx na sua crítica da economia política teria sido a identificação da “força de trabalho” como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado. De facto, foi com o recurso a essa mágica mercadoria imaginária, cujas características violavam as leis da física, e com a aceitação da falácia da troca equitativa, e pelo uso de inferências inválidas, violando as leis da lógica, que o Marx pretendeu ter desvendado o segredo da génese do lucro e da exploração que o possibilita. Tantos erros só poderiam conduzir a uma concepção falsa. É o que acontece com a concepção marxista do valor das mercadorias e da génese do lucro e da exploração dos trabalhadores assalariados.

José Manuel Correia

2 Comentários:

Às 1:20 da tarde, junho 19, 2009 , Blogger CL disse...

Caro JMC.

Li e reli, nem sei quantas vezes, este seu texto. Quero testemunhar-lhe a surpresa e a satisfação que me causou, pela clareza da exposição e pela simplicidade da explicação. A sua teoria da troca desigual resolve as contradições das versões clássica e marxista da teoria do valor-trabalho, e atinge esse objectivo de uma forma simples e elegante.

Estou convencido que constitui um avanço teórico importante, que acaba por conferir à teoria do valor-trabalho a solidez que desde sempre lhe faltou. Para quem lê parece o ovo de Colombo, tudo se apresenta simples. Se, como disse, é uma concepção original, deixo-lhe as minhas felicitações pelo contributo que acaba de dar para a resolução dum problema ainda actual da economia política.

CL.

 
Às 10:52 da tarde, junho 19, 2009 , Blogger JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Viva CL.

Obrigado pelas suas referências positivas e até elogiosas às minhas concepções sobre o valor das mercadorias e sobre a génese do lucro. Neste texto de síntese, tentei ser o mais claro possível, mas verifico que a exposição contém algumas repetições desnecessárias.

Embora os elogios dêem alento para continuar e, por isso, sejam bem-vindos, como deverá calcular interessam-me mais as críticas apontando eventuais erros e inconsistências, que eu próprio, pela rotina do pensamento, não consiga descortinar.

Várias cabeças pensam melhor do que uma só e poderão aperceber-se de pormenores e de implicações que ao autor possam ter passado despercebidos. Submeter os textos à crítica é uma das razões da existência deste blog. Se detectar qualquer erro ou implicação não considerada, ou qualquer aspecto menos bem explicado, agradeço que os aponte, para que a explicação possa ser exaustivamente consistente.

Cumprimentos.

JMC.

 

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