sábado, 28 de fevereiro de 2009

A famosa conversão dos valores em preços de produção (1)


A FAMOSA CONVERSÃO DOS VALORES
EM PREÇOS DE PRODUÇÃO


José Manuel Correia


Existem em O Capital duas concepções acerca do valor de troca das mercadorias, qualquer delas errada. Na do Livro I, as mercadorias são trocadas pelos seus valores de custo, que os seus valores de troca expressam; os valores do custo de produção são formados pelo somatório dos valores de custo dos factores produtivos com a chamada mais-valia, a designação que o Marx atribui ao valor apropriado que possibilita o lucro, resultante da aplicação duma taxa geral de mais-valia, a relação do lucro com os salários, à parte do capital empregada como salários. Na do Livro III, as mercadorias são trocadas pelos seus preços de produção, que já não correspondem aos seus valores de custo; estes preços de produção são formados pelo somatório dos preços de produção dos factores produtivos com o lucro, resultante da aplicação duma taxa geral de lucro, a relação do lucro com a totalidade do capital empregado. A concepção inicial do Marx, aceitando que as mercadorias eram trocadas pelos seus valores de custo e atribuindo a formação dos seus valores de troca à aplicação duma taxa geral de mais-valia, conduzia à obtenção de lucros não proporcionais aos capitais empregados e de taxas de lucro inversamente proporcionais às suas composições orgânicas, em manifesta contradição com a realidade. A constatação de uma tal discrepância levou à introdução da nova concepção do valor de troca das mercadorias no Livro III de O Capital, objecto do capítulo IX, intentando resolver aquela contradição através da conversão dos valores de custo em preços de produção.

O Marx considera o lucro como a forma transfigurada da mais-valia, o suposto valor suplementar que o trabalhador assalariado forneceria gratuitamente ao capitalista pelo simples facto de lhe vender uma mercadoria mágica, a força de trabalho, a qual teria a faculdade de proporcionar mais valor do que um seu suposto próprio valor. Na realidade, o lucro é a parte do valor criado na produção apropriada pelo capitalista, mas essa apropriação ocorre pela troca desigual entre o capitalista e o trabalhador assalariado, não provém de qualquer faculdade mágica da força de trabalho para proporcionar mais valor do que o seu suposto valor, como afirma a errada concepção marxista. Nem o trabalhador assalariado vende capacidade para trabalhar, força de trabalho, mas trabalho, nem a apropriação de parte do trabalho ocorre na produção; aqui é gerado o valor do que é produzido, do trabalho e, concomitantemente, dos novos produtos diversificados em que são transformados os objectos da acção em que é consumido, mas é na esfera da circulação, quando os produtos são trocados, adquirindo assim a qualidade de mercadorias, o que se compra e vende, que ocorre a apropriação. A apropriação de trabalho alheio, portanto, ocorre na esfera da circulação, através da compra e venda do trabalho, pela troca de uma quantidade de trabalho presente por quantidade menor de trabalho passado; e sob a forma de lucro do capital ela apenas se realiza quando o trabalho presente comprado é vendido, como trabalho passado contido em novas mercadorias, a quem o vende como trabalho presente, através da compra do trabalho presente por preço abaixo do preço do valor e da sua venda como trabalho passado por preço correspondente ao do valor.

O capitalista, por seu lado, atribui a ocorrência do lucro a faculdades mágicas do capital para se transformar em mais capital. A produção exige a participação de meios de produção e de trabalho presente, qualquer deles de sua pertença, porque os adquiriu no mercado; nada mais natural do que considerar a parte do valor de que se apropria, o lucro, como sendo originada pelo seu capital. A utilidade do capital para o processo produtivo, sem a qual, julga, a produção não seria possível, é confundida pelo capitalista com uma sua faculdade para produzir mais valor do que o valor das mercadorias com ele compradas. Um capital suplementar é o que espera obter formando o preço das mercadorias de que é proprietário pela adição ao capital consumido de um lucro resultante da aplicação duma taxa de lucro esperada à totalidade do capital empregado, de modo que o preço de venda da produção seja superior ao preço de compra dos factores produtivos. Uma forma de legitimação do lucro — a remuneração que acha devida pela utilidade do capital para o processo produtivo — é transformada pelo capitalista na génese do próprio lucro e com ela confundida. Seguro de si, fortalecido pela longa tradição do direito que lhe assiste, interpreta o mundo à medida dos seus interesses, não se interrogando acerca dos poderes ocultos que fariam transformar dinheiro em mais dinheiro. Não admira os expeditos mercadores e os industriosos produtores não se preocuparem com tal alquimia, mas surpreende que os seus ideólogos, homens dedicados ao estudo e à descoberta das coisas e das suas razões de serem, ao cabo de tanto tempo não tenham desvendado o mistério produzindo uma concepção consistente — válida e plausível — da génese do lucro.

Na formação dos preços nominais das mercadorias, os capitalistas sempre usaram a aplicação duma taxa de lucro esperada sobre o capital empregado. As vicissitudes do mercado — a adequação da oferta à procura, a concorrência de mercadorias congéneres produzidas com diferente produtividade, podendo, por isso, ter preços nominais diversificados, a preferência dos consumidores, por exemplo — acabam por transformar os preços nominais em preços efectivos ou de mercado e as taxas de lucro esperadas em taxas de lucro obtidas. O lucro obtido, portanto, resulta dos preços de mercado, dos preços diversificados pelos quais as mercadorias são vendidas, e as taxas de lucro obtidas pelos diversos capitalistas acabam sendo diversificadas, motivando a concorrência no interior dos ramos e a mobilidade dos capitais entre eles, na busca incessante da melhor taxa. A concorrência e a mobilidade dos capitais, por isso, constituem características fundamentais do modo de produção capitalista, ainda que alguns capitalistas ou os seus gestores, sempre que possam, se conluiem para subvertê-las. Aceitando como plausível que os preços das mercadorias eram representativos dos seus valores, e considerando serem formados pela aplicação duma taxa geral de mais-valia estimada ao capital empregado como salários, e não pela aplicação duma taxa de lucro estimada à totalidade do capital, o modelo de formação dos preços nominais concebido pelo Marx fazia com que a taxa de lucro esperada por cada capitalista fosse inversamente proporcional à composição orgânica do seu capital. Deste modo, quanto maior fosse a relação entre o capital empregado em meios de produção face ao empregado em salários menor seria o lucro esperado por capitais de idêntico montante.

Em condições de igualdade da jornada e do esforço e do ritmo, ou potência, do trabalho, sendo similares os níveis dos salários e dados os demais preços, ocorreria uma taxa geral de mais-valia. Na situação exemplificada, os trabalhadores seriam igualmente explorados em qualquer processo produtivo particular, porque em todos eles, fornecendo determinada quantidade de trabalho, ou trabalho com determinado valor (na concepção marxista, fornecendo determinada quantidade de força de trabalho, ou trabalho criador de determinado valor, visto que a mercadoria vendida era a força de trabalho e o valor era criado pelo trabalho que ela fornecia), receberiam em troca idêntica quantidade a menos de trabalho, ou trabalho com idêntico menos valor. O conceito de taxa geral de mais-valia assim formulado, contudo, apenas designa a relação do valor que os trabalhadores recebem a menos com aquele que efectivamente recebem, exprimindo o nível da exploração a que se encontrariam sujeitos numa determinada formação social, não tem qualquer validade para designar a apropriação individual dos capitalistas. A utilização do conceito de taxa geral de mais-valia para determinar a parte do valor de que os capitalistas se apropriam individualmente, e assim formar os preços nominais das suas mercadorias, é o reflexo duma concepção errada da génese do lucro e da forma como é determinado o seu montante e se processa a sua apropriação.

Devido à divisão do trabalho e da produção social e à intermediação da moeda, um capitalista particular não efectua vendas directas aos trabalhadores a quem compra trabalho, nem as suas trocas se resumem às que efectua com trabalhadores, englobando as que efectua com outros capitalistas a quem compre meios de produção e a quem venda a sua própria produção. Para que o seu lucro se origine é necessário que o trabalho que compra, passado e presente, seja vendido, sob a forma de novo trabalho passado, apreciado pela taxa de lucro, aos trabalhadores ou a outros capitalistas, consoante o tipo das novas mercadorias em cuja produção for empregado. O valor apropriado, portanto, não provém da utilidade duma mercadoria mágica, a força de trabalho, cujo simples uso tivesse a faculdade de proporcionar directamente aos seus compradores mais valor do que o seu próprio valor, como concebeu o Marx. E a apropriação não ocorre no processo de produção; aqui tem lugar a criação de novo valor, correspondente ao valor do custo de produção do trabalho que transforma em novos produtos as coisas e os objectos sobre os quais incide a sua acção e na qual é consumido. Ela ocorre no processo de circulação, quando os produtos são transformados em mercadorias; e sob a forma de lucro do capital realiza-se através da compra de trabalho passado ao preço do valor e de trabalho presente depreciado, por preço abaixo do valor, e da venda de todo esse trabalho passado e presente como novo trabalho passado apreciado, envolve diversos intervenientes e é efectuada pela intermediação da mercadoria equivalente geral dinheiro.

Os diversos tipos de mercadorias reprodutíveis que não o trabalho presente, para além de produtos da natureza, mais não são do que trabalho passado. A compra de trabalho passado sob a forma de meios de produção realiza os lucros dos capitais empregados na sua produção; e a compra de novo trabalho presente realiza os lucros dos capitais empregados na produção dos meios de subsistência com que é pago. Um capital particular, empregado como capital produtivo, compra o trabalho pelo seu valor, representado pelo preço de compra, mas compra-o — directamente, no caso dos meios de produção, e indirectamente, através dos salários que paga pelo trabalho presente que usa, no caso dos meios de subsistência — a outros capitais, na forma de trabalho passado, e realiza os lucros deles. Aos trabalhadores, porém, este trabalho, como trabalho presente anterior, foi pago e, como trabalho presente actual, é pago abaixo do seu valor, devalorizado pelos lucros distribuídos contidos nos preços das mercadorias que compram com os salários. O capital empregado representa, por um lado, a totalidade do valor do trabalho usado na produção dos meios de produção, porque o seu preço contém os lucros distribuídos aos capitais que os venderam, e, por outro lado, apenas parte do valor do trabalho presente que compra, correspondente ao valor do trabalho anteriormente usado na produção dos meios de subsistência comprados pelos salários com que é pago. O valor de que este capital se apropria, portanto, corresponde à diferença entre o valor do trabalho presente que adquire (correspondente ao produzido na jornada) e o valor com que o paga (correspondente apenas a uma parte do que é produzido na jornada); a transformação do valor apropriado em lucro estimado será determinada pela apreciação, à taxa de lucro esperada, do valor de todo o trabalho comprado, passado e presente, através da formação dos preços nominais das novas mercadorias em cuja produção for empregado; e o lucro que efectivamente obterá será realizado com a venda destas mercadorias aos preços de mercado. Um ciclo de reprodução de um capital particular envolve não só a sua própria reprodução como a de outros, realizando os lucros dos capitais de cujas mercadorias é comprador — directamente, no caso dos meios de produção, e indirectamente, através dos salários que paga, no caso dos meios de subsistência — e tendo o seu lucro realizado por aqueles que compram as suas mercadorias.

No caso da produção social, desde que num ciclo de reprodução do capital social, por exemplo anual, os montantes do capital de entrada e de saída e a relação entre trabalho passado e trabalho presente — ou seja, o montante e a composição orgânica do capital, e, logo, a relação entre lucros referentes a trabalho presente anterior e lucros referentes a trabalho presente actual — se mantivessem constantes face ao ocorrido no ciclo precedente, o valor produzido e o lucro social obtido no ciclo poderiam ser referidos à totalidade do trabalho presente nele comprado. Ainda que uma parte deste trabalho presente apenas viesse a gerar lucro, pela sua venda como trabalho passado, no ciclo seguinte, este lucro seria compensado por aquele gerado pela venda como trabalho passado no ciclo actual de parte correspondente do trabalho presente comprado no ciclo anterior. Nestas condições, correspondentes a uma hipotética situação de manutenção do valor da produção social e em que a acumulação não era de imediato realizada, a totalidade do lucro social, pela compensação assinalada, representaria o que seria gerado pela venda no ciclo actual de todo o trabalho presente nele comprado, e a taxa de margem de lucro e a taxa geral de mais-valia seriam idênticas, reflectindo ambas a taxa de exploração dos trabalhadores, dado que a totalidade do capital social consumido seria usada na compra de trabalho presente. A relação do lucro e da sua taxa com a compra e venda do trabalho presente seria então clara, tornando evidente o carácter supérfluo do conceito de taxa geral de mais-valia. Embora com flutuações no montante e na composição orgânica do capital social, é uma compensação deste tipo que ocorre na produção social, pelo que o preço do valor da produção social anual corresponde grosso modo ao somatório dos salários pagos com os lucros obtidos.

Nos processos produtivos particulares, diversamente do que ocorre na produção social nas hipotéticas condições assinaladas como exemplo, as proporções entre o trabalho passado e o trabalho presente comprados podem ser diversificadas. As composições orgânicas dos diversos capitais particulares podem ser distintas entre si e da composição orgânica do capital social, e os lucros que cada um distribui podem estar desigualmente repartidos pelos capitais aplicados em trabalho passado (meios de produção) e pelos capitais aplicados em trabalho presente (meios de subsistência). A distribuição dos lucros alheios efectuada por cada capital particular, portanto, é feita na proporção da sua composição orgânica, e das composições orgânicas dos diversos capitais particulares resulta a repartição da totalidade do lucro social proporcionalmente à composição orgânica do capital social. Se os preços nominais das novas mercadorias fossem formados pela aplicação da taxa geral de mais-valia à parte correspondente aos salários pagos por cada um dos diversos capitais particulares, o lucro esperado assim determinado poderia não equivaler ao que cada um deles distribuíra e ao que lhe seria devido pela repartição equitativa do lucro social esperado. Os preços nominais das novas mercadorias em cuja produção cada capital particular é empregado, por isso, não podem ser formados pela aplicação da taxa geral de mais-valia à parte desse capital correspondente aos salários pagos. A taxa geral de mais-valia esperada depende do lucro social esperado, e não o contrário, e é o efeito dele ser determinado por preços nominais formados pela aplicação de taxas de lucro esperadas. Mesmo que meramente estimada, o significado e a forma como é determinado o conceito fazem com que a taxa geral de mais-valia não possa ser usada como instrumento de formação dos preços nominais das mercadorias e, por isso, tenha uma utilidade restrita.

Cada um dos diversos capitais particulares espera realizar com o processo produtivo em que é aplicado um lucro equivalente, a taxa similar, ao que distribuiu, por um lado, com a compra de trabalho passado representado pelos meios de produção; por outro lado, com a compra de trabalho presente que ele próprio adquiriu, que embora tenha sido pago com salários implicou igualmente a distribuição dos respectivos lucros aos capitais produtores dos meios de subsistência comprados com os salários. A totalidade do capital empregado, portanto, é constituída pelas partes aplicadas na compra de meios de produção e na compra de trabalho, representando o valor do trabalho empregado nessas mercadorias, tenham elas a forma de meios de produção ou de meios de subsistência. O trabalho presente comprado, contudo, foi pago desvalorizado, pela apreciação dos meios de subsistência, cujos preços incluem os lucros dos respectivos vendedores; o valor das novas mercadorias produzidas com a totalidade do trabalho comprado (passado e presente), portanto, é superior ao valor pago aos trabalhadores que o produziram, quer aos que o produziram como trabalho presente anterior contido nos meios de produção e nos meios de subsistência comprados com os salários, quer aos que o produziram como trabalho presente actual; essa diferença corresponde aos lucros distribuídos antecipadamente aos capitais que o venderam como trabalho passado representado pelos meios de produção e pelos meios de subsistência comprados com os salários e ao lucro que caberá a este capital, os quais lhe serão distribuídos pelos compradores das novas mercadorias. A transformação em novas mercadorias do trabalho comprado, do trabalho passado contido nos meios de produção e do trabalho presente ora adquirido, e a sua apreciação pela aplicação da taxa de lucro esperada originará com a sua venda o novo lucro, desvalorizando o trabalho presente que vier a ser comprado, em cujo pagamento participarão, directa ou indirectamente, estas novas mercadorias. Deste modo, a formação dos preços nominais das novas mercadorias pela aplicação de taxas de lucro esperadas similares à totalidade do capital empregado na sua produção, e não pela aplicação da taxa geral de mais-valia à sua parte empregada directamente como salários, constitui a forma de realizar, simultaneamente, a desvalorização homogénea do trabalho presente comprado por qualquer capital particular, a manutenção dos valores de troca nominais ou dos preços nominais relativos e a determinação do lucro social esperado, assim como a sua repartição equitativa pelos diversos capitais particulares, directamente proporcional à totalidade de cada um deles, independentemente das suas composições orgânicas, e na medida em que cada um contribuiu para a sua formação, por distribuição mútua.

Provindo da troca desigual entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados, o lucro é gerado apenas quando o trabalho presente comprado, independentemente do ramo da produção em que seja empregado, é vendido aos trabalhadores sob a forma de trabalho passado integrado nos meios de subsistência que estes compram com os salários. Como os capitalistas do ramo dos meios de produção não efectuam vendas aos trabalhadores, os lucros de que se apropriam são-lhes distribuídos antecipadamente pelos capitalistas do ramo dos meios de subsistência que adquirem os meios de produção em cuja produção os capitais daquele ramo são empregados. Esta distribuição é efectuada directamente, no caso das trocas entre os dois ramos, ou indirectamente, no caso das trocas no interior do ramo dos meios de produção; neste caso, como os meios de produção são empregados no próprio ramo na produção de meios de produção que acabarão por ser trocados com o ramo dos meios de subsistência, os lucros provenientes desta troca são redistribuídos no interior do ramo. Deste modo, cada capital particular compra e vende trabalho aos seus produtores, ainda que uma parte destas compras e vendas seja efectuada indirectamente, no caso em que as mercadorias são meios de produção, através de compras e vendas mútuas entre capitais; em conformidade, o lucro de que espera apropriar-se será directamente proporcional ao seu montante. O lucro é gerado pela apreciação do trabalho comprado, isto é, pela sua venda por preço superior àquele pelo qual foi comprado; e o montante esperado é determinado pela formação dos preços nominais das mercadorias em cuja produção o trabalho foi empregado, através da adição do lucro esperado ao capital consumido, resultante da aplicação duma taxa de lucro esperada à totalidade do capital empregado. A adequação da oferta à procura, a concorrência de mercadorias congéneres com preços diversificados e a preferência dos consumidores, por exemplo, obrigam ao ajustamento dos preços, efectuado no mercado por transformação dos preços nominais em preços efectivos e das taxas de lucro esperadas em taxas de lucro obtidas. A procura da obtenção da melhor taxa de lucro conduz à modernização tecnológica susceptível de aumentar a produtividade e à eliminação dos processos produtivos obsoletos, assim como à mobilidade dos capitais entre os ramos da produção social.

A adopção pelo Marx de um modelo de formação dos preços nominais pela aplicação da taxa geral de mais-valia provém, antes de mais, da aceitação da premissa de que as mercadorias eram trocadas na proporção dos seus valores, e, depois, da sua concepção de que o lucro era gerado no processo imediato de produção, como mais-valia ou trabalho suplementar fornecido gratuitamente pela força de trabalho, e apropriado directamente pelo seu comprador. A designação de mais-valia que atribuiu ao lucro é suficientemente elucidativa da qualidade de valor suplementar com que o concebia. Não considerando o valor apropriado como sendo proveniente da compra do trabalho presente por preço correspondente a valor inferior ao seu valor, representado pelo preço superior da sua venda como trabalho passado, o Marx não se apercebeu de que o lucro constituía a parte do trabalho subtraída ao trabalhador, representando para ele uma verdadeira menos-valia, e não uma mais-valia proporcionada pela força de trabalho. O facto de definir a mais-valia também como trabalho não pago é revelador das dificuldades com que se defrontou na tentativa de arranjar uma concepção consistente para a exploração do trabalhador assalariado. Como não concebia o trabalho como sendo a mercadoria vendida, nem a troca como sendo uma troca desigual, esta sua definição do lucro como mais-valia e como trabalho não pago, mais do que uma ambiguidade, constituía uma flagrante incoerência, uma vez que na sua concepção o trabalhador não vendia trabalho, nem este era a mercadoria que o capitalista comprava. Definir como não pago algo que não era vendido nem comprado, que por este facto não teria de ser pago, não tinha qualquer sentido; radicar a origem do lucro num fenómeno sobrenatural, atribuindo-o à capacidade da força de trabalho para proporcionar mais valor do que um seu suposto próprio valor, então, constituía um absurdo. Só deste modo, porém, lhe era possível justificar a ocorrência do lucro e da exploração que o origina.

Tal como os capitalistas concebem o lucro como sendo um valor suplementar fornecido pela utilidade do seu capital, o Marx concebe-o como valor suplementar fornecido pela utilidade da mercadoria mágica força de trabalho. Neste contexto conceptual, cada capitalista apropriar-se-ia da mais-valia correspondente à fornecida pela força de trabalho que comprava. Sendo similares a jornada e o esforço e o ritmo, ou potência, do trabalho, assim como o nível dos salários, a taxa geral de mais-valia transformava-se automaticamente em taxa de apropriação particular. Embora fosse admitido que algumas mercadorias pudessem ser trocadas abaixo do seu valor e outras acima dele, estas variações, justificadas pela diferente produtividade e por outros factores ocasionais, eram consideradas desvios em relação à lei geral da troca equitativa das mercadorias. Se as mercadorias, incluindo a força de trabalho, eram trocadas pelos seus valores; se a mais-valia era um valor suplementar fornecido gratuitamente pela força de trabalho; e se as condições de exploração eram comuns, cada capitalista apropriar-se-ia da mais-valia correspondente à aplicação da taxa geral ao capital que empregava como salários. Este errado modelo conceptual constitui a base da obra do Marx. Devido às suas discrepâncias com a realidade, na parte póstuma da obra, publicada vinte e sete anos depois (1867-1894), um tal modelo veio a ser abandonado, substituído por um outro em que os preços nominais passaram a ser formados pela aplicação da taxa geral de lucro, através do artifício duma gorada tentativa de conversão de preços supostamente representativos dos valores em preços de produção, justificada como sendo efectuada pela acção do mercado, o que acabou por contribuir para desacreditar a sua obra.

Alguns marxistas e outros comentadores da obra do Marx afirmam que aquele seu modelo inicial de formação dos preços nominais se deveria a uma hipotética comodidade de exposição, para melhor ilustrar a formação do valor de troca das mercadorias e a origem do lucro; e na justificação da conversão dos valores em preços de produção é afirmado que a troca das mercadorias pelos seus valores representava o que ocorria em condições de desenvolvimento bem mais atrasadas. Não comungo de opiniões tão ligeiras e benévolas. Um tal modelo de formação dos preços nominais é fruto das concepções erradas do Marx acerca do que constitui o valor das mercadorias, da representatividade dos seus valores de troca, da génese do lucro, da determinação do montante do lucro particular e da forma da sua apropriação; e muito provavelmente a realidade que pretende representar nunca ocorreu em qualquer fase do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Parece-me mais plausível admitir que a sua concepção acerca do valor apropriado como sendo trabalho suplementar gratuito fornecido pela força de trabalho, como novo valor criado para além do seu próprio valor, não lhe possibilitava conceber outro modelo de formação dos preços nominais, já que o lucro obtido por cada capitalista decorria da quantidade de força de trabalho que empregava, e a apropriação ocorria directamente no processo imediato de produção. Preso a uma tal concepção, o Marx não poderia imaginar que a parte do valor apropriada resultava duma troca desigual e, portanto, que a apropriação ocorria na esfera da circulação, onde os produtos se compram e vendem e assim se realizam como mercadorias. Existindo troca desigual, dizia, ela constituiria um mero logro recíproco dos capitalistas; não suspeitou que o logro se estendia ao participante mais fraco na troca, o trabalhador assalariado. Ficou impossibilitado, por isso, de sair da conclusão absurda que resultava da sua concepção da génese da exploração: taxas de lucro inversamente proporcionais às composições orgânicas dos capitais, manifestamente em contradição com a realidade.

Foi a resolução desta contradição, e a necessidade de conformar a concepção marxista da determinação do montante do lucro particular e da forma da sua apropriação com a realidade, que foi intentada com a chamada conversão dos valores em preços de produção. Para dar alguma credibilidade a esta operação de conversão de preços supostamente representativos dos valores noutros preços, os chamados preços de produção, era apontada a identidade entre o preço representativo do valor e o preço de produção da globalidade da produção social. De facto, sendo os novos preços de produção formados pela aplicação da taxa geral de lucro, e este, por sua vez, determinado pela taxa geral de mais-valia esperada, o preço supostamente representativo do valor da produção social teria de ser idêntico ao seu preço de produção. A famosa conversão partia de preços, de compra e de venda, tidos por representativos dos valores, e de lucros, particulares e social, decorrentes dum modelo em que os preços nominais eram formados pela aplicação da taxa geral de mais-valia esperada — que a concorrência corrigiria para preços efectivos ou de mercado em função da produtividade média ponderada do trabalho presente empregado, determinando assim o valor das mercadorias pelo “trabalho socialmente necessário” para a sua produção — e apresentava os novos preços de produção como forma “transmutada” daqueles. Uma tal conversão seria operada no mercado, “por força da concorrência” e da mobilidade dos capitais. O mercado, cuja acção, “por força da concorrência”, é determinar a produção adequada e transformar preços nominais em preços efectivos, corrigindo os preços nominais ou esperados e determinando os preços a que as mercadorias acabam sendo vendidas, realizaria agora a transformação dum modelo de formação dos preços nominais noutro modelo. A invocada acção do mercado, “por força da concorrência”, transformaria taxas de lucro particulares muito diversas, e inversamente proporcionais às composições orgânicas dos capitais, em taxas de lucro similares, indiferentes às composições orgânicas, a taxa geral de lucro, para que o lucro particular obtido correspondesse à repartição equitativa do lucro social, proporcionalmente a cada capital particular empregado, convertendo preços representativos dos valores em preços de produção não representativos dos valores. Um modelo irreal, em que os preços supostamente representavam os valores, e em que os lucros esperados, particulares e social, eram determinados através da formação dos preços nominais pela aplicação da taxa geral de mais-valia esperada, era convertido num outro modelo, ainda mais irreal, em que os preços deixavam de representar os valores, sendo formados pela aplicação duma taxa geral de lucro, por sua vez, resultante da relação com o capital social do lucro social determinado pela aplicação da taxa geral de mais-valia esperada.

A mesma “força da concorrência” levaria agora o mercado a converter preços nominais representativos dos valores em preços efectivos não representativos dos valores, os preços de produção, por igualização das diferentes taxas de lucro “numa taxa geral de lucro, que é a média de todas elas”. Os preços de produção divergiriam dos preços representativos dos valores, sendo uns superiores e outros inferiores a eles, mas tais desvios compensar-se-iam mutuamente, de modo que o preço de produção da produção social coincidiria com o seu preço representativo do valor. A partir do instante em que o mercado efectuava a mágica conversão, em resposta ao apelo da realidade — a obtenção de taxas de lucro particulares similares, independentes da composição orgânica dos capitais — os preços nominais das mercadorias deixavam de ser representativos dos valores, passando a ser preços de produção nominais, e, portanto, formados pela aplicação da taxa de lucro esperada. A pretensa conversão dos preços representativos dos valores em preços de produção efectuada pelo mercado, “por força da concorrência”, tornava-se então desnecessária, pois que os preços de produção começavam por ser formados como preços nominais, agora pela aplicação da taxa geral de lucro, ela própria decorrente do lucro social determinado pela taxa geral de mais-valia. Ficava por explicar, antes de tudo, como seria realizado o lucro social sem qualquer referência a compras e vendas mútuas dos ramos, como se a produção social se destinasse a um hipotético comprador externo; e, depois, o que determinaria a formação da taxa geral de mais-valia e da taxa geral de lucro antes dos preços de produção determinarem o preço da produção social e o lucro social dele resultante, como se o lucro social e a sua taxa fossem dados e não o resultado do somatório dos lucros particulares determinados pelas respectivas taxas de lucro. Assim como ficava por explicar a distribuição do capital social pelos diversos ramos, e a composição orgânica do capital (segundo a concepção marxista, a relação entre o capital constante, a parte empregada em meios de produção, e o capital variável, a parte empregada em salários) no interior dos ramos, no modelo de preços representativos dos valores, e a sua manutenção no modelo de preços de produção, representando os mesmos preços, neste modelo, quantidades diferentes de mercadorias; e, nestas condições, como seria possível comparar os preços de produção com os preços representativos dos valores e aquilatar o desvio daqueles em relação a estes.

Os preços de produção são preços nominais antes de serem preços efectivos, são por isso o resultado de um outro modelo de formação dos preços nominais e não o resultado da acção do mercado. E um outro modelo de formação dos preços nominais é o resultado de uma outra concepção acerca da determinação do montante do lucro particular e da forma como se processa a sua apropriação, e não o resultado da acção do mercado. O mercado transforma preços nominais e lucros esperados em preços efectivos e em lucros obtidos, mas não transforma um modelo de formação dos preços nominais, no qual estes preços são determinados pela aplicação duma taxa geral de mais-valia, num modelo diferente, no qual eles são determinados pela aplicação duma taxa geral de lucro. E a taxa geral de lucro ou taxa de lucro social, relação do lucro social com o capital social empregado, é o resultado das taxas de lucro particulares e dos preços delas resultantes, e não a sua causa. Se a obtenção de lucros particulares correspondentes a taxa similar, independente da composição orgânica dos capitais, fosse determinada pelo mercado por transformação de lucros particulares esperados determinados pela aplicação da taxa geral de mais-valia, correspondentes a taxas de lucro muito diversas e inversas à composição orgânica dos capitais, seria desnecessário elaborar um outro modelo de formação dos preços nominais e dos lucros particulares esperados: qualquer que fosse o modelo, o mercado se encarregaria de transformá-los em preços de produção e em lucros correspondentes à taxa geral de lucro. A argumentação que apresenta a conversão dos preços representativos dos valores em preços de produção como sendo efectuada pelo mercado, “por força da concorrência”, portanto, não tem qualquer consistência. A chamada conversão dos valores em preços de produção, afinal, constitui o abandono de um modelo de formação dos preços nominais pela aplicação da taxa geral de mais-valia esperada e a adopção de um outro modelo no qual os preços nominais passam a ser formados pela aplicação da taxa geral de lucro esperada, representando uma outra concepção acerca da determinação do montante do lucro particular e da forma da sua apropriação, distinta da concepção inicial. Surpreende que alguém tenha perdido ou ainda perca tempo a tentar fundamentar aquela invocada conversão, quando ela representa coisa muito diversa.

A designação de conversão dos valores em preços de produção dada a esta operação, portanto, é errónea, visto tratar-se duma aparente conversão, representando apenas a adopção de um outro modelo de formação dos preços nominais, agora pela aplicação da taxa de lucro, e o abandono do modelo inicial em que eles eram formados pela aplicação da taxa de mais-valia. O seu objectivo — corrigir a anterior concepção do valor de troca das mercadorias, da determinação do montante do lucro particular e da forma da sua apropriação, e ultrapassar a discrepância da obtenção de lucros não proporcionais aos capitais empregados e de taxas de lucro inversamente proporcionais às composições orgânicas dos capitais que dela decorria — é claro; do novo modelo de formação dos preços nominais pela aplicação duma taxa geral de lucro resultava agora a obtenção pelos diversos capitais particulares de lucros proporcionais e de taxas de mais-valia diversificadas, directamente proporcionais às composições orgânicas dos capitais, ao invés de lucros não proporcionais e de uma duma taxa de mais-valia comum, tornando clara a inadequação do uso do conceito. O seu fundamento — que corresponderia à evolução económico-social ou ao desenvolvimento do capitalismo — é inverosímil; do que se tratava era da formação dos preços nominais das mercadorias no modo de produção capitalista, e não em modos de produção anteriores, e nele os preços nominais sempre foram formados pela aplicação da taxa de lucro esperada ao capital empregado, mesmo numa hipotética situação inicial em que os meios de produção não fossem adquiridos no mercado e a totalidade do capital se resumisse aos salários. Apesar de serem apresentadas no mercado com preços nominais formados por taxas de lucro esperadas, as mercadorias acabam sendo trocadas por preços de mercado, resultantes da acção de múltiplos factores na transformação dos preços nominais em preços efectivos, e sempre foram estes preços que determinaram a taxa de lucro obtida por cada capitalista, assim como as que dela resultam: taxa de lucro média dos ramos e, também, a taxa de lucro média geral. Os preços nominais nunca foram formados pela aplicação duma taxa geral de mais-valia, porque a relação que ao capitalista sempre interessou foi a do dinheiro que espera receber com a venda da produção com aquele que despende com a compra dos factores produtivos, e a taxa de lucro que dela resulta.

Quando lançam a produção no mercado, o dado fiável de que os capitalistas dispõem é o montante do capital empregado; a sua expectativa é obterem o maior lucro possível com o seu emprego. Tal como a produção é o resultado do emprego da totalidade do seu capital, e não apenas da parte empregada como salários, é da totalidade dele que esperam obter lucro. Por isso, formam os preços nominais das mercadorias aplicando ao capital com que foram produzidas a taxa de lucro que esperam vir a obter, e que desejam, pelo menos, não seja inferior à de qualquer deles; os preços nominais assim formados determinam os lucros esperados; e os preços efectivos em que o mercado transforma os preços nominais determinam os lucros obtidos, a taxa de lucro particular, a taxa de lucro do ramo, a taxa geral de lucro e, necessariamente, a taxa geral de mais-valia. O lucro de que se apropriam é proveniente da repartição equitativa do lucro social, efectuada pela distribuição mútua do quinhão devido a cada um na medida em que contribuiu para a sua formação, e para que ele se origine é necessário que as mercadorias circulem. Embora todos os capitalistas efectuem compras aos trabalhadores, apenas os do ramo dos meios de subsistência lhes efectuam vendas, vendendo à totalidade dos trabalhadores enquanto compram somente aos que empregam; o lucro social proveniente destas vendas, porém, não tem origem apenas no trabalho presente comprado directamente por este ramo, mas também no trabalho presente comprado pelo ramo dos meios de produção, adquirido indirectamente pelo ramo dos meios de subsistência sob a forma de meios de produção. Realizado no ramo dos meios de subsistência, o lucro social é necessariamente repartido por entre os dois ramos da produção social e distribuído ao ramo dos meios de produção, que nada vende aos trabalhadores e que de outro modo se veria impedido de obter lucro. Para que a continuidade da produção seja assegurada, as trocas entre os dois ramos terão de ser equilibradas, e a concorrência e a mobilidade dos capitais farão com que os lucros mutuamente distribuídos correspondam a taxa similar, independentemente das composições orgânicas dos capitais.

Num ciclo de reprodução do capital social, em situação de equilíbrio da produção social, desprezando as trocas efectuadas com modos de produção não capitalistas internos e com o mercado externo, e em que o montante e a composição orgânica dos capitais e a massa dos lucros, quaisquer que fossem, se mantivessem constantes face ao ciclo precedente, as compras e vendas entre os ramos numa formação social seriam de igual montante e conteriam lucros também de igual montante. Nesta hipotética situação, capitais de igual montante, correspondentes, por exemplo, aos das vendas mútuas, conteriam lucros de igual montante, proporcionais aos capitais empregados e independentes das suas composições orgânicas. É uma situação deste tipo, acrescida da complexidade introduzida pela multiplicidade das trocas com outros modos de produção e com mercados externos, e em que parte da produção é consumida no ciclo seguinte e as diferenças entre capitais de entrada e de saída no ciclo são contabilizadas nos balanços, que ocorre na realidade. Porque os lucros de uns são realizados pelas compras de outros, o equilíbrio das trocas mútuas faz com que as taxas de lucro de cada um dos dois grandes ramos da produção social, assim como as taxas de lucro no interior dos ramos, tendam para a similaridade. Deste modo, o montante do lucro social esperado, a sua repartição equitativa e a sua distribuição mútua são determinados pela formação dos preços nominais das mercadorias através da aplicação de taxas de lucro esperadas e não da aplicação da taxa geral de mais-valia, um conceito sem qualquer utilidade para a formação dos preços nominais. Um modelo tão dinâmico contrasta com o modelo estático do Marx, no qual o lucro era concebido como valor novo criado a mais no processo de produção pela utilidade da força de trabalho, que em condições de exploração comuns proporcionava a cada capital particular a apropriação directa do lucro fornecido pela força de trabalho que empregava. Seria insólito os capitalistas esperarem obter lucro apenas duma parte do capital empregado; esperarem obtê-lo a taxas à partida desiguais, formando os preços nominais das mercadorias pela aplicação da taxa geral de mais-valia, seria absurdo.

O que se mostrava necessário para tentar salvar a obra do Marx, portanto, não era converter preços nominais supostamente representativos dos valores nos chamados preços de produção, nem justificar estes como forma transmutada daqueles, ainda-por-cima como resultado duma hipotética acção do mercado a responder ao interesse dos capitalistas em se trapacearem mutuamente. Nem os preços nominais admitidos pelo Marx como sendo representativos dos valores os representavam de facto nem os chamados preços de produção passavam a ser a sua forma transmutada. Antes de mais, era necessário reconhecer o erro de conceber o lucro como mais-valia ou valor suplementar criado pela utilidade da força de trabalho, e admiti-lo como resultado de uma troca desigual entre o capitalista e o trabalhador assalariado; depois, aceitar que o montante do lucro esperado constitui um efeito dos preços nominais das mercadorias serem formados pela aplicação de uma taxa de lucro esperada à totalidade de cada capital, porque todo ele compra trabalho presente, ainda que uma parte possa ser comprado como trabalho passado intermédio a outros capitais, e vende trabalho passado aos trabalhadores, ainda que o possa vender como trabalho passado intermédio a outros capitais. Restava demonstrar que a formação dos preços nominais pela adição do lucro esperado ao capital consumido, resultante da aplicação de uma taxa de lucro esperada à totalidade do capital empregado, sendo as taxas similares, constituindo, por isso, uma taxa comum aos diversos capitais particulares, não alterava os valores de troca nominais ou preços nominais relativos das mercadorias com eles produzidas, e que esta era a forma própria de depreciar homogeneamente o trabalho presente, independentemente de quem o comprava, e, simultaneamente, de determinar o montante do lucro social esperado e de proceder à sua repartição equitativa pelos diversos capitais particulares, na medida em que cada um contribuíra para a sua formação, por distribuição mútua.

Isto teria decerto um grande impacto na obra do Marx. Nos rascunhos que deixou, aproveitados pelo Engels para edição póstuma como Livros II e III de O Capital, não se vislumbra que o Marx tivesse compreendido a falsidade da sua concepção da génese, da determinação do montante e da forma de apropriação do lucro. Não admira, por isso, que a orientação seguida pelo compilador e editor tenha sido a de tentar harmonizar aquela concepção com outra forma da determinação do montante e da apropriação do lucro particular como repartição equitativa do lucro social, pela obtenção de taxas de lucro similares, a taxa geral de lucro. A nova concepção era apresentada como resultado da conversão de preços supostamente representativos dos valores nos chamados preços de produção, efectuada pela acção do mercado, “por força da concorrência”, em resposta a supostos interesses colectivos dos capitalistas. O mercado, que na concepção inicial formava os preços representativos dos valores, determinando por acção da concorrência o trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias, formaria agora, também “por força da concorrência”, preços de produção não representativos dos valores. E os capitalistas, que “por força da concorrência” procuram incessantemente a obtenção da melhor rentabilização dos seus capitais, aceitariam agora que a concorrência que movem uns aos outros se traduzisse pelo efeito oposto, realizando a igualização das taxas de lucro, em vez da sua diferenciação, e, além do mais, fizesse com que uns se apropriassem de parte dos lucros devidos a outros, promovendo a trapaça geral. São demasiados efeitos contraditórios para que uma tal concepção possa ter qualquer consistência.

Aceitando a falácia de que as mercadorias eram trocadas por preços correspondentes aos seus valores, o Marx estava persuadido de que os preços nominais resultantes do seu modelo inicial representavam os valores das mercadorias. Errava duplamente; por um lado, porque o preço da mercadoria vendida pelos trabalhadores estava abaixo do seu valor; e, por outro lado, porque os preços das restantes mercadorias, formados pela aplicação da taxa geral de mais-valia, também não representavam os seus valores. Voltava a errar ao defender que os preços de produção não representavam os valores das restantes mercadorias. Em condições de adequação da produção e de similitude dos índices da produtividade, num mercado interno concorrencial e fechado, correspondendo ao modelo teórico do modo de produção capitalista, os preços nominais resultantes da aplicação de taxas de lucro esperadas similares, formados pela adição dos lucros assim esperados aos capitais consumidos, acabariam por representar os valores das mercadorias, ainda que essa fosse uma representação fantasmagórica e efémera. Nessa situação, representá-los-iam para os capitalistas, nas trocas que efectuassem entre si, na qualidade de preços de trabalho passado intermédio, não nas trocas que efectuassem com os trabalhadores. Nas trocas que os capitalistas efectuam com os trabalhadores, o preço de venda do trabalho, na qualidade de trabalho passado, representa o seu valor, enquanto o preço de compra da mesma quantidade de trabalho, na qualidade de trabalho presente, está abaixo do seu valor. Neste caso, os capitalistas compram uma quantidade de trabalho presente depreciada, por preço abaixo do valor, e vendem-na como trabalho passado apreciada pelo lucro, por preço correspondente ao valor. Aos trabalhadores, a realidade dos termos da troca parece invertida, julgando venderem trabalho presente por preço correspondente ao valor e comprarem trabalho passado acima do valor, porque apreciado pelo lucro. A ilusão provém do facto de o mesmo preço, o salário, comprar menor valor ou quantidade de trabalho passado do que aquela que o trabalhador por ele vendeu como trabalho presente. Mantendo-se inalterados o montante e a composição dos capitais de entrada e de saída num ciclo da produção social, o valor produzido no ciclo representa o valor do trabalho presente nele empregado; sendo esse valor expresso pela totalidade dos salários pagos e dos lucros apropriados pelos capitalistas, a origem do lucro apenas pode residir na venda do trabalho presente por preço abaixo do preço do valor.

O preço do valor do custo da produção social num ciclo não representa fielmente o preço da totalidade do trabalho nele consumido, porque o lucro esperado é determinado em função da totalidade do capital empregado, e não apenas em função do capital consumido. Participando embora na produção, o trabalho passado representado pelo capital fixo pode não ser consumido na sua totalidade, devido à diversidade dos ciclos de rotação dos capitais, pelo que apenas o valor estimado do seu desgaste é incluído no preço de compra dos factores produtivos. Determinando o lucro esperado em função da totalidade do capital empregado, e não apenas em função do capital consumido, e formando os preços nominais pela adição daquele lucro ao capital consumido, os preços nominais assim formados não representam o valor consumido na produção. O que se passa com o capital, porém, reflecte o que se passa com o trabalho presente, porque o valor do trabalho empregado envolve não apenas o do trabalho consumido, ou a energia humana consumida na sua produção, mas também uma parte do valor do trabalho que foi necessário consumir para dotá-lo da diversidade das utilidades concretas com as quais participa na produção social. Deste modo, os preços acabam por representar o valor do trabalho empregado, e não apenas o valor do trabalho consumido. Um tal modelo de formação dos preços nominais previne eventuais distorções na repartição do lucro social, que resultariam se capitais de idêntico montante, consumidos a ritmo similar, obtivessem lucro a taxa diversa consoante a fase em que se encontrasse a amortização da sua parte fixa; e remunera, como juro, a parte do capital fixo imobilizada, através do lucro diferencial possibilitado pelo aumento da produtividade proporcionado por meios de produção renovados. Os preços nominais assim formados têm reflexos na diversificação das taxas de margem de lucro esperadas no ciclo, e acabam por constituir um incentivo para a constante renovação dos meios de produção e para o aumento da produtividade, reduzindo o valor do custo unitário das mercadorias que compõem a produção social.

Apesar dos preços de compra dos factores produtivos — dos meios de produção e do trabalho presente — parecerem representar os seus valores, apenas o preço dos meios de produção o representa, porque contém os lucros distribuídos antecipadamente aos seus vendedores pelo capital comprador antes de serem realizados pela sua venda aos trabalhadores depois de incorporados em novos meios de subsistência. O valor das novas mercadorias produzidas, portanto, é superior ao valor pago pelos factores produtivos, e o seu preço de venda nominal será superior àquele preço de compra pela adição do lucro esperado. Dois preços distintos — o preço de compra dos factores produtivos e o preço de venda das novas mercadorias com eles produzidas — representam valores diferentes. Essa diferença de valor respeita apenas ao trabalho presente actual, comprado por preço abaixo do valor, pois que os meios de produção foram comprados pelo seu valor e por isso geraram os lucros dos seus vendedores. Tais lucros, porém, foram gerados provisoriamente, distribuídos antecipadamente pelo capital comprador antes de serem realizados de facto pela integração dos meios de produção em novos meios de subsistência vendidos aos trabalhadores. Os lucros distribuídos antecipadamente acabam por ser reproduzidos de forma ampliada, pela formação dos preços de venda das novas mercadorias por aplicação da taxa de lucro esperada à totalidade do capital empregado e não pela aplicação da taxa de mais-valia à sua parte aplicada em salários. Este modo de formação dos preços nominais pela aplicação da taxa de lucro esperada a capitais empregados que incluem lucros alheios distribuídos, sendo as taxas de lucro esperadas similares, não altera os valores de troca nominais ou preços nominais relativos das mercadorias trocadas entre os capitalistas: é indiferente que o preço nominal seja um ou outro, desde que seja o resultado da aplicação de taxa de lucro similar ao capital empregado. A apreciação efectuada formando o preço nominal pela adição do lucro esperado ao preço de compra, contudo, é a forma própria de desvalorizar o trabalho presente que vier a ser comprado, que será pago, directa ou indirectamente, com as novas mercadorias produzidas. O preço do valor do trabalho social, por isso, difere dos preços dos valores das mercadorias particulares, assim como dos preços médios dos valores das mercadorias de cada ramo da produção social. Isto poderá diferenciar ligeiramente as taxas de lucro particulares das taxas de lucro médias dos ramos e estas da taxa geral de lucro, mas não altera a troca desigual que origina o lucro. Mesmo com estas evidências, alguns dos ideólogos burgueses da economia política, com total despudor, continuam vendendo como verdade a falácia da troca equitativa. Não admira que o Marx, na época em que produziu O Capital, não tenha conseguido libertar-se de tal patranha.

Não é indiferente, aos capitalistas, que os preços das mercadorias se afastem dos preços representativos dos valores; nem poderia deixar de assim ser, pois essa divergência é condição da existência do lucro e do modo de produção capitalista. Para que o lucro ocorra é necessário que o preço de compra do trabalho presente esteja abaixo do preço correspondente ao valor, e que a mesma quantidade de trabalho seja vendida aos trabalhadores, como trabalho passado, por preço correspondente ao valor. A venda do trabalho aos seus produtores, sob a forma de trabalho passado representado nos meios de subsistência, culmina o ciclo de reprodução do capital social; este preço de venda representa necessariamente o valor do trabalho, e a diferença entre ele e o preço da sua compra como trabalho presente constitui o lucro de que os capitalistas se apropriam. Depois, como bons cristãos, pode bastar-lhes que os valores de troca ou preços de venda relativos das mercadorias que trocam entre si não se alterem, desde que todos adicionem aos preços de compra um lucro esperado correspondente a taxa similar. Deste modo, a troca das mercadorias entre eles apareceria como troca equitativa, e é assim que os seus ideólogos representam a totalidade das trocas. A troca das mercadorias que efectuam com os trabalhadores assalariados, porém, é uma troca desigual, porque o valor de troca ou preço relativo da mercadoria que os trabalhadores vendem está permanentemente depreciado pela ocorrência do lucro nos preços das mercadorias que compram. O preço de venda do trabalho presente está abaixo do preço correspondente ao valor, depreciado precisamente pelo preço de venda correspondente ao valor do trabalho passado representado nos meios de subsistência que os trabalhadores assalariados compram com os salários. O mesmo preço, o salário, compra menor valor ou quantidade de trabalho do que aquela que o trabalhador por ele vendeu. Por esta razão, os compradores de trabalho presente exercem o maior controlo, directamente ou através do seu Estado e de outros meios menos ortodoxos, sobre o preço desta mercadoria verdadeiramente singular. Quando se excedem, esforçando-se cada um por comprá-la pelo menor preço, e põem em risco o consumo da produção social e a realização do lucro social nas taxas requeridas, o seu próprio Estado intervém regulando a concorrência da ganância, fixando períodos de trabalho máximos e salários mínimos que ao menos assegurem a sobrevivência dos produtores do trabalho e a reprodução ampliada do capital.

Antes da publicação do Livro III de O Capital, alguém notara que todos os capitalistas acrescentam lucro na formação dos preços de venda das suas mercadorias, e que apenas os trabalhadores assalariados não o acrescentam ao preço da sua. De facto, os trabalhadores assalariados não acrescentam lucro ao preço da mercadoria que vendem, e a razão é simples e prosaica: ela não é produto de outras mercadorias, não tem preço de compra para quem a produz, não resulta do emprego de capital e, por isso, não reclama lucro no preço de venda. O preço do trabalho presente não provém da relação económica entre as mercadorias, mas da relação económica entre os produtores de mercadorias (os trabalhadores que o produzem e os capitalistas que o compram), da relação política que a institucionaliza e regula e da relação ideológica que a legitima, constituindo a tripla dimensão da relação social de dominação que a economia política representa. Na sociedade das mercadorias produzidas por mercadorias, o trabalho humano constitui a excepção, porque não é produto de qualquer mercadoria, e os seus produtores, pela condição de extrema dependência da sua venda para poderem subsistir, só em condições muito especiais de grande unidade e coalizão dispõem de capacidade para lhe atribuírem um preço nominal ou para limitarem a taxa da exploração de que são alvo. A génese do lucro explicada daquela forma simples punha a nu a falácia da troca equitativa; tornava-se imperioso justificar uma realidade tão crua e legitimar o lucro como coisa aceitável e, se possível, necessária. É a essa tarefa de legitimação do lucro que se têm dedicado os ideólogos da economia política. Ironicamente, afirmando-se crítico implacável das representações dos ideólogos burgueses o Marx acabou por ir além de todos eles: não só legitimou o lucro como produto da utilidade da mercadoria que os capitalistas comprariam, que desse modo constituía sua inteira propriedade, como o naturalizou, transformando-o em coisa derivada do “dom” possuído pela força de trabalho de produzir mais valor do que um seu suposto próprio valor. Pretendendo ter resolvido um intrincado problema científico introduziu a magia na explicação da realidade social.

Detectadas as contradições a que conduziam as concepções do Marx, sem que tenham chegado a ser reconhecidos os erros que as originavam, a chamada conversão dos valores em preços de produção não passou de uma forma fantasiosa de tentar ultrapassá-las. Não se tratou, portanto, de pretender corrigir erros conceptuais acabando por cometer outros erros, o que seria natural. Neste caso, porque os erros não foram admitidos e a nova concepção foi justificada como correspondendo a um estádio mais avançado de desenvolvimento do capitalismo, a que não se referiria a concepção inicial, poderemos estar em presença de pura manipulação cínica. No melhor dos casos, estaremos perante sinceras tentativas frustradas de compreender uma realidade complexa e de fundamentar de forma consistente a explicação da sua existência. Admitir erros de tamanha gravidade poria em causa o essencial da obra do Marx e certamente abalaria a autoridade granjeada entre os marxistas até à publicação do Livro III de O Capital. Apesar do novo conceito preço de produção entrar em contradição com a premissa admitida como verdadeira de que as mercadorias eram trocadas pelos seus valores, e de a obtenção de taxas de mais-valia directamente proporcionais às composições orgânicas dos capitais pôr em causa a sua fundamentação da tendência para a queda da taxa de lucro, nenhuma ilação foi tirada acerca das implicações para a obra do Marx desta nova concepção do valor de troca das mercadorias, e ainda hoje, contraditoriamente, é a concepção inicial que continua sendo divulgada como representativa da sua obra. A nova concepção foi apresentada como continuando de acordo com a chamada lei do valor e com a suposta lei geral da troca das mercadorias, a famosa troca equitativa ou troca das mercadorias na proporção dos seus valores, mesmo que com ela, também contraditoriamente, umas destas mercadorias passem a ser vendidas acima e outras abaixo dos seus supostos valores.

Presos a concepções falsas, o Marx e os marxistas não poderiam imaginar o que é simples: que o lucro provém da depreciação do trabalho presente pela aplicação duma taxa de apreciação ao trabalho passado com que é pago, constituindo a diferença daí resultante a parte apropriada pelo capitalista, e que este facto impede que as mercadorias sejam trocadas na proporção dos seus valores. É nesta depreciação do trabalho presente, e na troca desigual que a consuma, que reside a essência do modo de produção capitalista. Formando os preços nominais pela aplicação de taxas de lucro esperadas similares, os valores de troca nominais ou preços nominais relativos das suas mercadorias não se alterariam e a troca entre os diversos produtores capitalistas seria equitativa. A transformação dos preços nominais em preços efectivos ou de mercado, devida aos factores já enumerados, podendo alterar os valores de troca ou preços relativos e, com isso, diversificar as taxas de lucro obtidas, ocasiona troca desigual também entre os capitalistas. Esta troca desigual, porém, consiste numa redistribuição do lucro social obtido pela troca desigual efectuada entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados, e constitui o estímulo para a concorrência e para a mobilidade dos capitais.


8 Comentários:

Às 2:00 da tarde, março 13, 2009 , Anonymous Anónimo disse...

Mais uma vez, como sempre faço, cá estou a passar para apreciar este blogue de grande qualidade e firmeza ideológica, embora o tema seja complexo demais para puder emitir opinião, dadas as minhas limitações na área específica.

 
Às 6:42 da tarde, junho 09, 2009 , Blogger CL disse...

Tomei conhecimento da existência do seu blog através de um comentário que fez na Crítica. Pelo que vejo, os temas que aborda são pouco variados e dizem respeito quase exclusivamente a um tema muito concreto, cujo interesse actualmente é restrito a poucos estudiosos do assunto, o que não é o meu caso.

Do que compreendi deste e de um texto anterior, a sua refutação da teoria marxista do valor trabalho baseia-se na demonstração de que

1-a troca das mercadorias não é uma troca equitativa mas desigual;
2-a mercadoria vendida pelo trabalhador não é a força de trabalho mas o trabalho;
3-o lucro deve-se à troca desigual efectuada entre o capitalista e o trabalhador;
4-o lucro constitui a diferença entre uma determinada quantidade ou valor de trabalho presente fornecida pelo trabalhador e uma menor quantidade ou valor de trabalho passado que o capitalista lhe paga;
5-o lucro é gerado na circulação das mercadorias e não na produção;
6-o lucro apropriado pelo capitalista individual não é determinado pela quantidade de trabalho presente que compra mas pela repartição do lucro global (ou social, como o designa) por entre os capitalistas.

Quando afirma que o lucro de uns capitalistas é realizado com a venda das suas mercadorias a outros capitalistas, e não aos trabalhadores, pareceu-me que entra em contradição com a afirmação anterior de que o lucro se deve à troca desigual entre o capitalista e o trabalhador. Não compreendo muito bem este complexo circuito da economia e tenho algumas dúvidas sobre o que assinalo em 4, 5 e 6, que gostava de ver esclarecidas, se lhe fosse possível.

CL.

 
Às 10:52 da tarde, junho 09, 2009 , Blogger JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Viva CL.

Muito obrigado pelo seu comentário e pelas dúvidas que coloca.

Sobre as questões concretas que invoca, posso dizer-lhe, ainda que abreviadamente, desde já, o seguinte:

- o lucro é gerado na compra do trabalho presente e na sua venda como trabalho passado pelo capitalista ao trabalhador assalariado; é gerado, portanto, na esfera da circulação das mercadorias, ou, melhor, na circulação do trabalho enquanto mercadoria universal;
- como é fácil de constatar, a troca que aí ocorre é uma troca desigual, pois X horas de trabalho presente são vendidas pelo preço Y (o salário), ao qual correspondem X-(X.l') horas de trabalho passado ou o preço Y+(Y.l'), em que l' é a taxa de lucro;
- a génese do lucro, a determinação da sua taxa e a forma pela qual se processa a sua apropriação pelos diversos capitalistas são questões diversas;
- as trocas entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados não são trocas directas; os capitalistas que produzem meios de produção, por exemplo, compram trabalho aos trabalhadores, mas não lhes vendem nada directamente; enquanto os capitalistas que produzem meios de subsistência são quem realiza trocas completas (ainda que intermediadas pela moeda) com os trabalhadores assalariados, comprando-lhes trabalho presente e vendendo-lhes trabalho passado;
- porque são quem vende trabalho passado aos trabalhadores, os capitalistas do ramo dos meios de subsistência vendem maior quantidade de trabalho passado do que a quantidade de trabalho presente que compraram, porque o vendem aos trabalhadores empregados nos dois ramos da produção social (meios de produção e meios de subsistência);
- aparentemente, no ramo dos meios de subsistência seria realizado um lucro extra, correspondente ao lucro que os capitalistas do ramo dos meios de produção não teriam oportunidade de realizar;
- acontece que os meios de subsistência são produzidos com trabalho presente comprado directamente e com meios de produção, os quais, por sua vez, também são produzidos com trabalho presente;
- deste modo, ao comprarem meios de produção, os produtores de meios de subsistência estão comprando, indirectamente, o trabalho presente empregado naquele ramo da produção, e com essa compra realizam o lucro dos capitalistas daquele ramo;
- o lucro extra que aparentemente seria realizado no ramo dos meios de subsistência, porque venderia maior quantidade de trabalho passado do que aquela que comprara como trabalho presente, é afinal distribuído ao ramo dos meios de produção;
- como se vê, a apropriação individual do lucro é efectuada por distribuição do lucro total por entre os capitalistas dos dois ramos da produção social;
- para além da forma como se processa a distribuição do lucro, falta determinar em que proporção cada um dos capitalistas o recebe, se proporcionalmente ao trabalho presente que compra (representado pelo capital empregado em salários) ou se proporcionalmente à totalidade do capital empregado;
- se todo o capital é empregado na compra de trabalho, seja directamente como trabalho presente, seja indirectamente como trabalho passado, e se todo ele reaparece acrescidamente pela sua venda aos trabalhadores assalariados, é lógico que a repartição do lucro se efectiva através da aplicação de taxas de lucro similares à totalidade do capital empregado.

A concepção do Marx de que o lucro seria determinado pela taxa de mais-valia, e não pela taxa de lucro, não tem qualquer consistência, porque deriva duma concepção errada da sua génese como trabalho suplementar gratuito fornecido pela força de trabalho. Desta concepção resultava a apropriação individual directa e na proporção da parte do capital empregada como salários, o que entrava em contradição com a realidade e com os fundamentos do capitalismo.

Não sei se fui claro o suficiente para dissipar as suas dúvidas com esta resposta breve. De qualquer modo, na segunda parte deste texto, que será publicada proximamente, abordo mais pormenorizadamente algumas destas questões. Se ainda ficou com dúvidas, é aguardar mais uns dias.

Volte sempre.

JMC

 
Às 12:21 da tarde, junho 11, 2009 , Blogger CL disse...

Fiquei esclarecido das dúvidas anteriores. Entretanto surgiram-me outras.

Se bem entendo, a teoria marxista atribui o lucro a um mais valor criado pela força de trabalho, enquanto a sua o atribui a um menos valor pago ao trabalhador. Se assim é, a sua teoria da troca desigual apenas corrige a teoria marxista das invalidades e falsidades que apresenta mas mantém-se no domínio das chamadas teorias do valor trabalho, teorias que não são aceites pelas correntes actuais da economia. As suas correcções tornam consistente a qualidade de trabalho não pago atribuída ao lucro, por ser pago com um sobrepreço, e parecem resolver satisfatoriamente a distribuição do lucro total explicando a apropriação individual. Esta teoria é original ou baseia-se nalguma ideia já apresentada e defendida por algum autor?
Pela forma como apresenta a teoria marxista, a justificação para a transformação dos valores nos preços de produção seria a de corrigir a contradição de conduzir a taxas de lucro diferentes consoante a força de trabalho empregada, o que faria os capitais afluírem para os empreendimentos que empregassem maior quantidade de mão de obra ou preferirem a mão de obra à automatização. Realmente, não se compreenderia por que razão os capitalistas investiriam em maquinaria e em novos processos de fabrico se esse investimento contribuía para lhes reduzir o lucro em vez de aumentá-lo. A minha dúvida é se o aumento da concorrência nesses negócios não faria baixar os seus lucros, aproximando-os dos lucros obtidos naqueles que empregavam mais capital em máquinas.
CL.

 
Às 1:48 da manhã, junho 12, 2009 , Blogger JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Viva CL.

Respondo telegraficamente às dúvidas que colocou.

- a concepção da génese do lucro pela troca desigual entre o capitalista e o trabalhador assalariado e a explicação da distribuição do lucro por entre os distintos capitalistas que apresento nestes textos são de minha autoria; tanto quanto julgo saber, são originais;
- a designação “troca desigual” não é original, pois foi utilizada anteriormente por Arghiri Emmanuel, no seu caso, para designar a desigualdade que ocorre nas trocas internacionais e não a das trocas entre os capitalistas e os trabalhadores;
- é bondade sua designar estas minhas concepções por teoria, visto que se referem a aspectos parcelares, ainda que fundamentais, da economia política; julgo serem plausíveis e explicarem a realidade sem discrepâncias, mas só a passagem pelo crivo da crítica poderá conferir-lhes qualquer credibilidade;
- apesar dos erros da sua teoria, reconheço mérito à tentativa do Marx, e as minhas concepções, de facto, mantêm-se no âmbito da teoria do valor trabalho, que não encontra muitos adeptos fora do marxismo; de qualquer modo, isso não faz de mim adepto marxista;
- sim, é como diz, a famosa conversão dos valores em preços de produção foi uma tentativa de corrigir a contradição da concepção marxista de taxas de lucro inversamente proporcionais à composição orgânica dos capitais, como acontecia com a teoria do Ricardo; em meu entender, eventualmente, é da autoria do Engels, que com ela tentou salvar, infrutiferamente, a credibilidade da obra do Marx;
- os preços nominais das mercadorias sempre foram formados pela aplicação da taxa de lucro esperada; aliás, sendo os capitalistas compradores e vendedores de mercadorias, não se compreende porque apenas obteriam lucro da compra da mercadoria trabalho e não das outras mercadorias necessárias ao processo produtivo;
(continua)

 
Às 1:49 da manhã, junho 12, 2009 , Blogger JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

(continuação)

- esta famosa conversão apenas era necessária para corrigir o modelo original de formação dos preços nominais do Marx, decorrente da concepção da troca equitativa e da mais-valia como trabalho suplementar fornecido gratuitamente pela força de trabalho; uns ideólogos esforçaram-se a demonstrar que estava errada, embora o que lhes interessasse fosse a refutação da teoria clássica do valor-trabalho e da origem do lucro como trabalho apropriado; enquanto outros, os marxistas, se esforçaram e continuam empenhados a tentar salvar e a justificar a conversão, aparentemente sem se aperceberem que esse é um esforço inglório, porque o erro reside no modelo original do Marx;
- a refutação da conversão é proporcionada pela própria explicação defendida para a formação dos chamados preços de produção; baseando-se na concepção de que as mercadorias produzidas com maior composição orgânica dos capitais (e, logo, com maior produtividade) seriam vendidas acima do valor e as produzidas com menor composição orgânica seriam vendidas abaixo do valor, refuta que as mercadorias teriam sido alguma vez vendidas pelo valor, como era defendido pelos economistas clássicos e pelo Marx;
- o que surpreende é os marxistas, ainda hoje, defenderem a concepção absurda de que a força de trabalho é a mercadoria vendida pelo trabalhador e que o lucro tem origem na faculdade extraordinária desta mercadoria mágica para fornecer mais valor do que o seu próprio valor; isto é que me parece deveras extraordinário, coisa de conto de fadas para mentes infantis;
- os capitais não migram para os ramos em que a composição orgânica dos capitais é menor, mas para aqueles em que ela é maior, os quais permitem não só aumentar o ritmo da produção como a produtividade do trabalho e o lucro; a mecanização e a automatização, iniciadas com a revolução industrial, e prosseguidas hoje com as tecnologias da informatização, aí estão para comprová-lo de forma exuberante (e mesmo em pleno século XIX, no tempo do Marx, a automatização da produção têxtil do seu amigo Engels, por exemplo, evidenciava a tendência que se acentuaria para o aumento constante da composição orgânica dos capitais).

Espero ter respondido com clareza suficiente às suas dúvidas.

Obrigado pelos seus comentários. Volte sempre.

JMC.

 
Às 6:28 da tarde, junho 14, 2009 , Blogger CL disse...

Ainda cá volto, agora mais esclarecido.

A sua teoria, porque sobre esses aspectos parcelares que explica é de uma teoria que se trata, parece-me consistente. Pelo que me apercebo, vendo os seus textos anteriores, além de coerente é mais simples e elegante do que a teoria marxista.

Através dela compreende-se melhor que a riqueza, sendo uma imensa acumulação de mercadorias como diz a teoria marxista, só é coerente se for uma imensa acumulação de trabalho. Na teoria marxista, não sendo o trabalho mercadoria, a afirmação era incoerente; com a sua teoria até esta afirmação ganha coerência, visto no seu entender o trabalho ser a mercadoria vendida pelo trabalhador e constituir a mercadoria universal.

Se o capital compra e vende trabalho, o lucro só pode resultar dessa compra e venda, da compra por um preço e da venda por preço superior. Se assim é, a aplicação de taxas de lucro do mesmo nível é a forma de todos os capitalistas se apropriarem de trabalho na mesma proporção e de procederem à distribuição do lucro total ou social.

A confusão que se instalou na teoria do valor trabalho parece então ter sido introduzida pela teoria marxista, ao tentar ultrapassar as dificuldades dos ricardianos. Parece inconcebível que Marx, sendo o génio que os marxistas apregoam, com a sua teoria tenha introduzido mais problemas do que os que pretendia resolver.

As teorias do valor das mercadorias da escola austríaca parecem-me destituídas de fundamento. Assentando em pressupostos psicológicos, não explicam o que os preços exprimem objectivamente para além da subjectividade das preferências. Embora a psicologia explique porque fazemos isto ou aquilo, os nossos actos, isto ou aquilo, e as suas implicações, não se confundem com as razões pelas quais os fazemos.

Se uns gostam de Mercedes e outros preferem outras marcas, acabamos por pagar com o nosso trabalho o trabalho daqueles que os fizeram, mais o lucro dos capitalistas. O que não invalida que os capitalistas dos Mercedes possam ter lucros superiores aos dos outros, explicáveis, por exemplo, por venderem mais ou com taxa de lucro maior, possibilitados precisamente pelas preferências de cada um. De onde que a taxa de lucro não explica a substância do lucro.

Compreendo agora que esta questão da transformação dos valores em preços de produção, que pela proliferação de textos na internet me pareceu mobilizar ainda os economistas marxistas, não tenha outra razão de ser senão a de tentar livrar a teoria marxista do valor trabalho das suas incoerências, corrigindo a concepção original de que as mercadorias seriam vendidas pelos seus valores e que a força de trabalho seria a mercadoria vendida pelos trabalhadores.

Interrogo-me se o marxismo teria tido qualquer relevância teórica se o comunismo não tivesse sido instaurado na Rússia.

Obrigado pela atenção com que respondeu às dúvidas que lhe fui colocando. Os meus parabéns pelo seu bom trabalho e votos de que o continue.

CL.

 
Às 8:52 da manhã, junho 17, 2009 , Blogger JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Viva CL.

Comungo de muitas das apreciações que faz acerca do marxismo. Se o comunismo se tem quedado por ser um movimento político e não por ter sido uma experiência política com as consequências positivas e negativas conhecidas, é muito provável que o marxismo não chegasse a conhecer a divulgação que teve.

Tenho dúvidas de que as experiências comunistas devam ao Marx mais do que a inspiração na profecia classista redentora da proclamação panfletária de 1848 (O Manifesto do Partido Comunista) e na Crítica do Programa de Gotha. Em meu entender, o essencial do comunismo, desde a possibilidade da sua eclosão até às formas concretas de que se revestiu, deve muito mais ao leninismo-estalinismo (baptizado de marxismo-leninismo) do que ao marxismo.

A sua melhor relação com o marxismo acaba por ser a demonstração de que a tese da revolução socialista proletária é um idealismo pegado, que não corresponde a qualquer necessidade de revolução social. Daí o carácter de desenvolvimento do capitalismo em sociedades menos desenvolvidas e o cunho nacionalista que o comunismo assumiu por todo o lado, com o estado a desempenhar o papel que caberia às burguesias nacionais, e o proletariado a produzir a mata-cavalos a acumulação necessária para a rápida transformação de sociedades atrasadas em modernas sociedades desenvolvidas.

Concordo que as teorias do valor e da génese do lucro para além da dita teoria do valor-trabalho, pretendendo explicar o lucro pela psicologia de produtores e de consumidores, de facto, nada explicam e não passam de discursos legitimadores do lucro. Ora, a melhor legitimação do lucro é a sua já longa existência, demonstrando a sua importância social. O problema que a humanidade tem de resolver não é tanto a existência ou a legitimação do lucro, mas de quem dele se apropria.

Obrigado pelas questões que colocou com os seus comentários.

JMC.

 

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