terça-feira, 10 de junho de 2008

Luta sindical e repressão no consulado marcelista: a história à moda comunista


LUTA SINDICAL E REPRESSÃO
NO CONSULADO MARCELISTA:
A HISTÓRIA À MODA COMUNISTA


José Manuel Correia.


Francisco Canais Rocha apresenta-se como historiador. Desconheço se será historiador de grandes ou de pequenos méritos, nem isso interessa. Sei apenas que centrou a sua actividade no estudo e divulgação da história do movimento operário e sindical, um campo de investigação sempre menosprezado pelas correntes historiográficas dominantes. Se outros não forem os seus méritos, este poderá ser suficiente para lhe garantir um lugar de referência na historiografia nacional. Desde, é claro, que o relato histórico não se resuma ao panegírico nem seja reduzido à propaganda. O que me traz à liça não é o conjunto da sua obra, que desconheço e por isso não julgo, mas um pequeno texto de sua autoria publicado na revista Vértice (68), em 1995, e que circula na Internet, intitulado “Luta sindical e repressão no consulado caetanista (1972-1974)”, que tem como centro a actividade do Sindicato Nacional dos Electricistas do Distrito de Lisboa nesse período. Tenho conhecimento directo desse assunto, por ter protagonizado alguns dos factos referidos no texto. Aproveito a ocasião para corrigir algumas imprecisões e omissões da sua narrativa, para deixar o meu testemunho sobre o trabalho desenvolvido por aquele Sindicato, assim como para exprimir um pouco do que penso sobre o período que ficou conhecido por “marcelismo”.

Começo por esta última questão. Concordo com a sua apreciação de que a “abertura sindical prometida pela chamada «Primavera Marcelista» foi de curta duração”. Não posso concordar com as conclusões que tira acerca da importância do período do “marcelismo”, nomeadamente no que se refere ao que representou, no imediato, para a defesa dos interesses dos trabalhadores, através de um conjunto de legislação laboral de suma importância (de que destaco o DL 49058, de 14 de Junho de 1969, que substituía a homologação dos eleitos sindicais pela verificação prévia das condições de elegibilidade dos candidatos e remetia para os tribunais do trabalho os processos da sua suspensão e destituição; o regime jurídico da contratação colectiva de trabalho, DL 49212, de 28 de Agosto de 1969, que impunha a resposta obrigatória às propostas de negociação e fixava prazos e regras que tornavam possível a contratação colectiva; o regime jurídico do contrato individual de trabalho, DL 49408, de 24 de Novembro de 1969; e o regime jurídico da duração do trabalho, DL 409/71, de 27 de Setembro) e, no médio prazo, no que possibilitou, certamente longe das intenções do seu mentor, para que a luta sindical se intensificasse e os trabalhadores pudessem conquistar outros ou melhores direitos do que os mínimos que aquela legislação viera consagrar. Neste aspecto, devo referir que muita da legislação laboral publicada depois de 25 de Abril de 1974, no que é essencial, constitui uma caricatura grosseira, e muito reaccionária, da que foi publicada vai para quarenta anos. É, até, caso para dizer que se o Marcelo Caetano, na tumba, tivesse conhecimento da actual legislação e daquela que está sendo anunciada para a revisão do Código do Trabalho daria umas sonoras e divertidas gargalhadas.

Nem mesmo uma tal ofensiva, porém, se mostraria capaz de quebrar a nova dinâmica instalada nalguns sindicatos, que chegaram a representar trabalhadores dos principais sectores de actividade, a qual se manteria até ao fim do regime. Passaram a ser organizadas reuniões intersindicais (tendo a primeira sido realizada em 11 de Outubro de 1970), crescia o número de sindicatos que nelas participava, assim como se diversificavam os sectores aí representados, e aumentava o número daqueles que embora não participantes vinham a subscrever os comunicados ou a manifestar por outros meios o seu apoio. E sindicatos não participantes regulares neste movimento inicialmente desenvolviam também uma intensa actividade nos últimos tempos, como eram os casos, por exemplo, do Sindicato dos Químicos e do Sindicato dos Electricistas, ambos de Lisboa.

Compreende-se a posição de Canais Rocha, coincidente com a do PCP, desvalorizando o alcance do que o “marcelismo” representou, pretendendo à viva força identificar o “Estado Social” do Marcelo Caetano como mera continuidade do “Estado Novo” do Salazar. Mas ela não é minimamente aceitável. O “marcelismo”, apesar da tímida abertura que representou, veio de facto a distinguir-se do “salazarismo”; e, o que é de longe mais importante, o aproveitamento que os trabalhadores fizeram dessa tímida abertura durante os pouco mais de cinco anos que o regime durou foi muito mais frutuoso do que toda a luta sindical dos trinta e cinco anos anteriores. Os trabalhadores que tenham um pouco de memória e tenham vivido activamente esses tempos não podem refutar esta realidade indesmentível. O mesmo não se verifica com o PCP, para o qual o “marcelismo” se resume à demagogia visando alargar a base social e política do regime e que parece não alcançar que entre o que o regime pretendia e o que na realidade se produziu vai a distância das lutas que os trabalhadores desenvolveram aproveitando essa abertura demagógica.

Como a intervenção organizada do PCP nos sindicatos, durante o período do “marcelismo”, foi pouco mais do que insignificante — fora a que se ficou a dever à iniciativa, louvável, de alguns poucos quadros isolados e à de outros tantos companheiros de jornada — e entrou em cena gente oriunda da juventude e da liga operárias católicas e de outros sectores um pouco mais radicalizados, o seu principal interesse parece ser desvalorizar esse período riquíssimo da nossa história contemporânea. Considerando-se o PCP como a vanguarda organizada da classe operária, nada de relevo para o movimento operário poderá ter acontecido à revelia da sua intervenção e direcção. Felizmente, isso não corresponde à realidade. O que esse período mostrou foi um PCP ultrapassado pelos acontecimentos, já que a sua política e os seus poucos quadros legais nos sindicatos não estavam à altura de forçarem os limites da abertura marcelista nem de defenderem de forma consequente os interesses dos trabalhadores.

Quando, em Setembro de 1972, foi retomada uma feliz iniciativa anterior de realização de reuniões intersindicais, que tinham conhecido um certo interregno (desde Julho de 1971), pôde constatar-se que aqueles quadros do PCP não pretendiam ir muito além da reclamação da ratificação e do cumprimento de convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da denúncia das intromissões administrativas nos sindicatos, da destituição arbitrária de dirigentes representativos legalmente eleitos ou de revisões legislativas mais restritivas, através de exposições e de telegramas de protesto enviados ao Governo. Se alguém, oriundo de sindicatos operários, propunha algumas acções um pouco menos tímidas, de saudação, de apoio ou de incentivo a lutas conhecidas dos trabalhadores, para assim mais amplamente as divulgar, de denúncia dos despedimentos, que passaram a ocorrer em grande número, ou de reclamações um pouco mais audazes, como a exigência da liberdade sindical, eles redobravam de cautelas, esforçavam-se a desmobilizar essas iniciativas ou a moderar-lhes a linguagem, receando que uma acção um pouco mais dinâmica pudesse fazer perigar o frágil domínio que através de sindicatos de trabalhadores dos serviços mantinham naquela estrutura informal. Sindicatos como os dos bancários, dos profissionais de seguros ou dos delegados de propaganda médica, por exemplo, não tinham preocupações do mesmo tipo das de sindicatos como os dos lanifícios, dos metalúrgicos, dos electricistas ou até dos caixeiros; nem as intenções do PCP, então como hoje, se prendiam com a melhoria da situação económica dos trabalhadores nem com o reforço dos sindicatos como instituições de direcção das suas lutas.

Ao PCP interessava principalmente a agitação social que os sindicatos pudessem produzir, e os seus reflexos políticos, e era nessa linha que os seus quadros actuavam. Só assim se compreendem as posições recuadas que frequentemente tomavam, quando comparadas com as de sindicalistas de outras orientações, incluindo os católicos ou outros meramente empenhados [1]. Enquanto estes sindicalistas se centravam na defesa dos interesses económicos dos trabalhadores, na luta pelas liberdades sindicais e no reforço dos sindicatos, chamando para estes a direcção das lutas nas empresas, o PCP continuava apegado à concepção da direcção da luta através das comissões de trabalhadores, das comissões de pessoal ou de empresa, que naquele tempo surgiam e eram usadas como meios de controlo do patronato sobre os trabalhadores, ou entregue a eventuais comissões de unidade, sem qualquer capacidade de unificação das lutas dispersas que pudessem ocorrer. Concebendo os sindicatos como meros instrumentos de agitação, de propaganda e de recrutamento; duvidando, além disso, da sua capacidade para desenvolverem e dirigirem lutas consequentes, devido às intromissões do governo, à destituição de dirigentes e a outras represálias; confrontando-se com grande falta de meios, devido à exiguidade dos seus quadros legais; e usando de extrema cautela, pelo maior perigo que a exposição naquele tipo de trabalho acarretava, o PCP foi sendo ultrapassado por outras correntes e por simples trabalhadores empenhados que então começaram a aparecer nos sindicatos corporativos.

Além do mais, Canais Rocha parece também não se aperceber de que a tese que defende se baseia numa gritante contradição. Ele pretende pôr em relevo, e bem, a acção de trabalhadores abnegados, voluntariosos e destemidos (por que não dizê-lo, se de facto assim era?), que se lançaram à conquista dos sindicatos que diziam representá-los, mas esquece que essa acção só foi possível, e veio a dar os frutos conhecidos, precisamente devido à abertura “marcelista”, por pequena que tenha sido. Trabalhadores abnegados, voluntariosos e destemidos que pretendiam colocar os sindicatos corporativos ao serviço dos interesses dos trabalhadores sempre houvera, mas, como se verificara nos trinta e cinco anos anteriores, a sua acção não produzira frutos palpáveis. Embora fossem representativos dos seus camaradas de trabalho, e por eles eleitos, eram rejeitados pelo crivo da selecção operada pela vigilância corporativa, que não os considerava idóneos e não homologava as Direcções em que participavam, ou eram posteriormente destituídos ou até presos; quando assim não acontecia, a actividade sindical que desenvolviam poucos frutos produzia [2].

Alguma coisa de novo aconteceu durante o “marcelismo” para que nesse período trabalhadores tão abnegados quanto outros de outrora pudessem ter conquistado alguns sindicatos corporativos e pudessem ter desenvolvido uma actividade sindical riquíssima na defesa dos interesses dos trabalhadores. Esse algo de novo, por um lado, foi o surto desenvolvimentista que então ocorria — fomentado pela adesão à EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), no início de 1960, e ao GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), em 1961, e, mais tarde, em 1972, também pelo acordo comercial estabelecido com a então CEE (Comunidades Económicas Europeias), pela abertura ao investimento estrangeiro (que aqui se foi fixando na indústria química, na montagem automóvel, na fabricação de material eléctrico e electrónico e noutros sectores), pelo crescimento das trocas com as colónias e pelo aumento dos consumos militares, pela remessa de poupanças dos emigrantes e pelo desenvolvimento do turismo — que aumentava o emprego e, devido à hemorragia de activos provocada pela emigração e pela mobilização de milhares de jovens para a guerra, fazia deslocar da província para os centros industriais grandes massas de camponeses, transformados em novos operários (com grande proporção de mulheres); por outro lado, foi o aumento da conflitualidade laboral que a industrialização acarretava, ampliada pela constante violação da nova legislação entretanto publicada, levando cada vez maior número de trabalhadores a procurarem os sindicatos para se defenderem; por outro, ainda, foram as pressões políticas internacionais a que o regime se encontrava sujeito, devido à guerra colonial e ao arcaísmo da ideologia dominante, nomeadamente no campo laboral; e, por fim, de algum modo, também as expectativas de mudança criadas pela incapacidade política que acometera o velho ditador Salazar e pela sensação de que as coisas não mais seriam como dantes. A descompressão que o “marcelismo” suscitou e as condições, ainda que parcas, que proporcionou de início para que o sindicalismo pudesse passar a ter alguma dignidade acabaram por fazer desenvolver sem retorno as contradições até então contidas pelos fracos ritmos da industrialização, pela emigração e pela repressão brutal. Se nada de relevante tivesse distinguido o “marcelismo” do “salazarismo” certamente aquele período não teria sido muito diferente do que tinham sido os trinta e cinco anos anteriores de sindicalismo corporativo. E foi muito diferente.

Posto isto, passemos à acção desenvolvida pelo Sindicato dos Electricistas de Lisboa no período do “marcelismo”. Canais Rocha era um destacado quadro do PCP, e nessa qualidade fora preso em 1968. Condenado a cinco anos de cadeia, foi libertado nos meados de 1973. Camaradas de partido na Direcção do Sindicato dos Jornalistas arranjaram-lhe emprego naquele Sindicato. Depois do 25 de Abril de 1974, participou na ocupação do Sindicato dos Profissionais de Escritório de Lisboa [3] e foi eleito para a sua nova Direcção. Ainda na condição de dirigente provisório desse Sindicato integrou-se de imediato no movimento intersindical, onde adquiriu um repentino protagonismo, sendo eleito coordenador da então Intersindical, embrião da actual CGTP-IN (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses-Intersindical Nacional) [4]. Por razões que não interessa abordar aqui, que poderiam ser mal interpretadas, poucos meses depois foi expulso daquele partido e em Agosto resignou ao cargo que ocupava na Intersindical. Um destacado quadro comunista terminava abruptamente uma carreira promissora, como acontecera a tantos outros. O partido, porém, não se mostraria muito ingrato; apesar das suas máculas, não esqueceu os relevantes serviços prestados e tratou de arranjar-lhe meio de ganhar a vida. Mesmo de fora, não terminaria ali a sua forte ligação ao partido, e, também como tem acontecido em tantos outros casos, continuaria servindo-o. Para demonstrar a sua fidelidade e assim se redimir, melhor do que os bastidores do Sindicato dos Jornalistas só os de um importante sindicato operário por onde pudessem pairar alguns esquerdistas. Um antigo companheiro de jornada ou, eventualmente, já camarada, que então integrava a Direcção do Sindicato dos Electricistas de Lisboa (na época designado Sindicato dos Trabalhadores Electricistas do Sul), prestou-se a arranjar-lhe o cargo adequado para esse efeito. Não tendo méritos relevantes conhecidos, para além da condição de antigo quadro do PCP, só pode ter sido admitido como comissário político, para enquadrar a Direcção no ciclo que se abria com o 25 de Abril e orientá-la nas novas funções que o partido pretendia para os sindicatos. Passei a lidar com ele de perto quando ingressou naquele Sindicato como Adjunto da Direcção.

Nessa qualidade de Adjunto da Direcção, que se deve ter prolongado por alguns anos com as sucessivas Direcções, e que eventualmente terá sido complementada mais discretamente com funções de apoio à Intersindical na reorganização sindical então em curso — que blindou os sindicatos, permitindo transformá-los em propriedade do PCP, e os burocratizou, afastando-os dos trabalhadores — Canais Rocha teve ainda tempo suficiente para levar a cabo os seus estudos sobre o movimento operário e sindical. Debruçar-se também sobre um período importante da história do Sindicato que o acolhera numa altura difícil da sua vida só lhe fica bem. O que já não lhe fica tão bem é a forma como o faz, enviesando o relato dos factos. Mais do que algumas imprecisões menores (como a de que as multinacionais do sector do material eléctrico e electrónico teriam procedido a centenas de despedimentos como forma de pressão para impedir a homologação do contrato colectivo de trabalho (CCT), apesar dos despedimentos colectivos serem então frequentes), o que ressalta do seu texto, nesta questão, é a ausência de referência a qualquer acção de direcção do surto grevista no sector do material eléctrico e electrónico, ocorrido em Outubro-Novembro de 1973 [5], como se ele tivesse sido de geração espontânea, como acontecia na esmagadora maioria dos casos em períodos anteriores (sem corresponderem a qualquer apelo do PCP e sem os seus militantes terem tido qualquer acção de relevo, mas de que aquele partido acabava a reclamar os louros da direcção) ou se tivesse ficado a dever à iniciativa do PCP. Desta feita, o descaramento não chega a tanto, mas a omissão propositada e a referência que faz a um Domingos Lopes (naquela época, delegado sindical despedido da General Instruments Lusitana, cuja fábrica se localizava nos arredores da Arruda dos Vinhos) são tudo menos inocentes.

Aquele surto grevista — sem qualquer dúvida, um dos mais importantes ocorridos durante o “marcelismo”, pelo elevado número de trabalhadores envolvidos e pela determinação que evidenciaram, pelas características heterogéneas do sector, constituído por algumas grandes empresas multinacionais (tendo entre 1000 a 3500 trabalhadores cada), empregando a maioria dos trabalhadores, e por muitas outras nacionais (algumas destas de pequena dimensão e com uma organização obsoleta), pela localização geográfica de algumas grandes empresas (em regiões rurais, na periferia de Lisboa e de Setúbal ou em concelhos limítrofes), pelas características dos trabalhadores (esmagadoramente jovens trabalhadoras, muitas ocupadas no trabalho fabril e sujeitas à sua férrea disciplina pela primeira vez), pela boa rede de delegados sindicais em que se apoiou, que lhe proporcionou um suporte informativo e organizativo de valor inestimável, pelas repercussões que teve no fortalecimento da consciência dos trabalhadores e no reconhecimento do importante papel do Sindicato e do sindicalismo, e, por fim, pela contribuição que deu para aumentar o clima de agitação social que viria a tornar possível apressar o fim do regime corporativo-fascista — nada teve de espontâneo. Teve muito de corajoso por parte da Direcção sindical, que apesar das cautelas facilmente podia ser conotada com a agitação laboral existente no sector, correndo por isso grandes riscos, e por parte dos milhares de trabalhadores que responderam aos apelos que lhes foram lançados e o levaram a cabo, arrostando com as represálias de algumas administrações e com a intimidação da GNR. Mas foi pensado e dirigido como forma dos trabalhadores lutarem com êxito pelas substanciais melhorias que eles sabiam o seu contrato colectivo lhes proporcionaria. Foi o culminar duma jornada de luta de quase dois anos, no fim da qual os trabalhadores puderam merecidamente cantar: vitória! Uma vitória com resultados palpáveis, não as vitórias de Pirro que o PCP lhes tem proporcionado de então para cá. Não teve foi a direcção do PCP, e isso parece causar um engulho difícil de tragar, ainda hoje, a tanto tempo de distância.

Tal como as lutas dos trabalhadores do sector do material eléctrico e electrónico ficaram constituindo um marco nas lutas operárias durante o último período da ditadura, o seu contrato colectivo também ficou constituindo um marco nas conquistas dos trabalhadores. Refiro apenas o que de mais relevante e inovador o contrato proporcionou. Antes de mais, uma substancial melhoria dos níveis dos salários, nomeadamente para as jovens trabalhadoras, então agrupadas na categoria mais baixa das especializações profissionais representadas pelo Sindicato, designada pela arbitragem por um incaracterístico “profissional especializado do 2.º escalão”, que passaram de um salário médio inferior a 2000 escudos para 4800 escudos mensais. Para se ter uma noção mais aproximada do que aquele valor representava, não em relação aos salários praticados no sector antes do contrato, cujo aumento médio superava os 140%, mas no país, basta referir que o salário mínimo nacional, criado então, foi fixado em 3300 escudos por influência directa da aprovação daquele contrato, valor que só muito lentamente foi sendo aplicado, e em relação a este a diferença ultrapassava os 45%. Depois, no respeitante ao período semanal de trabalho, fixado em 44 horas no primeiro ano de vigência e em 42 horas a partir de Julho de 1975, com pausas de 20 minutos para descanso a seguir a cada 2 horas consecutivas de trabalho (para a esmagadora maioria dos trabalhadores, o que se traduzia para estes num período semanal de trabalho efectivo de pouco mais de 40 horas e, depois, de 38 horas) [6]. Também em relação ao período de férias, aumentado para 18 e 26 dias úteis (conforme a antiguidade do trabalhador fosse inferior e igual ou superior a 8 anos), com o subsídio correspondente à remuneração do período de férias, ou em relação ao subsídio de Natal, que ficou constituindo um 13.º mês, ou ao subsídio de turno (de 10%, cumulável com o complemento de 50% por trabalho nocturno), assim como outras tantas pequenas coisas inovadoras que seria fastidioso enumerar.

Um contrato tão avançado, para a época, teve o processo da sua primeira revisão iniciado normalmente, dois anos depois, em 1976. A situação em que então se vivia — o novo ciclo da orientação sindical iniciado depois do 25 de Abril, apostado na “defesa da economia nacional”, e a política de ataque às conquistas dos trabalhadores instaurada a partir de 1976, inaugurada pelo 6.º Governo Provisório (o do “fascista, bardamerda” Pinheiro de Azevedo) e prosseguida pelo 1.º Governo Constitucional, presidido pelo Mário Soares — não permitiria levar a cabo essa revisão nos prazos previstos. Um novo texto — resultante dum acordo parcial, que teve de ser complementado por uma Portaria de Regulamentação de Trabalho (PRT) — apenas foi conseguido em 1977. Depois de um curto período de três anos, algumas das conquistas pioneiras mais significativas, que tanto tinham custado a alcançar, perderam-se, e só muito mais tarde, em 1999, foi obtida uma pequena melhoria (com a criação duma carreira para as trabalhadoras do 2.º escalão). De qualquer modo, a parte substancial do contrato vigorou durante vinte e dois anos (digo bem, vinte e dois anos, de 1977 a 1999, não é engano [7]), com pequenas alterações de permeio, e ainda hoje se mantém em vigor. Fica sem se saber se o contrato era mesmo tão avançado, ou se foi ficando mais avançado à medida que os trabalhadores e o movimento sindical dirigido pelo PCP foram perdendo força e capacidade reivindicativa. Aquele longo interregno é um flagrante exemplo do sindicalismo burocrático vigente, que em vez da defesa dos interesses dos trabalhadores se esforça, objectivamente, a sabotar as suas lutas, colocando-se ao serviço dos interesses do PCP, do patronato ou dos Governos.

Não custa reconhecer que o CCT do sector do material eléctrico e electrónico era um excelente contrato. Tão bom que após a decisão arbitral que fixou os salários, em 9 de Fevereiro de 1974, com o voto favorável do árbitro sindical, Armando Nogueira, e do árbitro presidente, Alfredo Barbieri Cardoso — que já não fora nomeado por acordo entre os árbitros das partes, mas pelo Governo, o que dava maior força à decisão — concluindo o longo processo de negociação colectiva iniciado cerca de dois anos antes, a sua aprovação (por homologação e publicação no Boletim do INTP-Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, do Ministério das Corporações, que então tutelava as relações colectivas de trabalho, sendo Ministro Silva Pinto, que mais tarde viria a ser deputado do PS) encontrou as maiores resistências e foi adiada. O actual Provedor de Justiça, Nascimento Rodrigues, era então um quadro destacado no departamento do Ministério responsável pela análise e a emissão dos pareceres sobre as convenções e tinha a seu cargo a apreciação do contrato. Em duas audiências que lhe foram solicitadas para saber do andamento dessa apreciação, para além da justificação formal da demora com a complexidade do contrato, os argumentos que então usou prendiam-se com o forte impacto que a sua publicação teria no sector — as hipóteses temerosas de que algumas empresas multinacionais pudessem abandonar o país, lançando milhares de trabalhadores no desemprego, sem falar nas consequências nas empresas de menor dimensão — e, sobretudo, com o impacto na economia das regiões onde se localizavam as fábricas ou onde residiam os trabalhadores, que faria disparar as reivindicações dos trabalhadores locais, o que conduziria a uma escalada da inflação, etc., etc.

Tratava-se, é claro, de conversa para adormecer incautos, visto toda a negociação, a conciliação e a arbitragem terem tido uma fundamentação económica bem escorada, incontestável, que contou com muitos e valiosos contributos, inclusivamente internacionais [8]. Tanto assim era que as empresas, para conterem o clima de agitação laboral, agravado pela demora, começavam a praticar salários intermédios. Não custa acreditar que essa actuação, pelos aumentos substanciais dos salários que passavam a praticar também representavam, visava desmobilizar os trabalhadores na luta pelo contrato e pressionar o Governo para que ele não fosse publicado. Na oposição à publicação, manobrando nesse sentido, destacava-se a ITT-Standard Eléctrica Portuguesa, que através do seu representante ao longo das negociações, Narana Coissoró, já se caracterizara por defender as posições mais retrógradas e conflituosas, que a sensatez do Presidente do Grémio, Bruno Janz, e do Secretário-Geral da Corporação da Indústria, Basílio Horta, lá ia, a custo, permitindo ultrapassar. O Grémio expunha ao Governo as preocupações das empresas, invocando as intenções das multinacionais, mas a actuação das diversas empresas não era uniforme. Para além dos aumentos imediatos, algumas chegaram a apresentar programas de aumentos progressivos, desfasados no tempo, cujos valores máximos, embora aquém, se aproximavam dos valores arbitrados, denotando aceitarem, mais ou menos resignadamente, a decisão arbitral e esperarem o retardamento da entrada em vigor do contrato ou o desdobramento da tabela salarial. O Sindicato, apoiado por outros, respondia em circular amplamente difundida desmontando os argumentos invocados, apontando as elevadas taxas dos lucros declarados obtidas no sector e exigindo a homologação e publicação do contrato.

Perante a situação de impasse a que se chegara, uma vez mais os trabalhadores tiveram de fazer valer os seus interesses, e em 18 de Março, enquanto decorria uma das audiências com o responsável pela apreciação do contrato, manifestaram-se organizadamente em plena Praça de Londres, frente ao Ministério das Corporações, com cartazes e gritando palavras de ordem, na presença da polícia. Eram na maioria mulheres, queriam apenas aquilo a que tinham direito legítimo — a entrada em vigor do seu contrato — e as poucas escaramuças ocorridas não tiveram consequências de maior, para além das habituais gritarias e correrias e de umas quantas cacetadas. Entretanto, o Sindicato desdobrava-se em sessões de esclarecimento, levadas a cabo numa ou noutra empresa mais liberal, que cumpria a lei, em sociedades recreativas ou em salões paroquiais que facultavam as suas instalações para o efeito, algumas com a presença da polícia, informando sobre o conteúdo do contrato e da decisão arbitral e animando os trabalhadores. Em reuniões com delegados sindicais, para balanço da situação, o recurso de novo à greve foi uma hipótese avançada, visto os trabalhadores, sabendo os valores decididos, na sua maioria continuarem determinados a lutar por eles, mesmo sob grande pressão e ameaça de algumas administrações.

Mas não apenas o Governo “marcelista” pretendeu retardar a publicação e a entrada em vigor daquele contrato. Após o 25 de Abril, o Delegado da Junta de Salvação Nacional no que viria a ser o Ministério do Trabalho, o spinolista tenente-coronel Ricardo Durão, colocado ao corrente da situação, prometeu a homologação e a publicação do contrato, já que tinha resultado duma decisão imparcial e dum processo legal. Como havia assuntos mais urgentes a resolver naqueles tempos conturbados, fruto da fuga de patrões, do abandono de empresas, de saneamentos a torto e a direito, o novo Governo disso se encarregaria. A tomada de posse do 1.º Governo Provisório, nos meados de Maio, sendo Ministro do Trabalho Avelino Gonçalves, militante do PCP e sindicalista (dos Bancários do Porto), trouxe novas esperanças duma rápida entrada em vigor. Contrariando" Contrariando as expectativas, o tempo passava e a publicação do contrato, porém, não acontecia. Nova audiência, para saber o que impedia a sua publicação célere, cujo atraso começava a agitar novamente os trabalhadores. Já não tenho presente a personagem que veio à cena, não estou seguro se foi o Eugénio Rosa, desempenhando funções no Gabinete do Ministro, ou se o Carlos Carvalhas, Secretário de Estado, ou se ambos, porque o assunto era grave e agora reinava um pouco menos de formalidade. Surpresa das surpresas, espanto mesmo, que outra não poderia ser a reacção, a velha cantiga dos impactos desastrosos veio de novo à baila. Desta vez, a variação dos acordes residia na língua de pau utilizada: os impactos na “economia nacional” e o seu “aproveitamento pela reacção” para desestabilizar a complexa situação em que se vivia, e “re-béu-béu, pardais ao ninho”. Talvez uma PRT, desdobrando a tabela salarial e desfasando a sua aplicação, fosse solução aceitável. Foi feito ver a tão cínica personagem o papel deprimente que o Governo democrático desempenharia, em tudo semelhante ao do Governo “marcelista”, e os “impactos” que uma tal posição acarretaria para o crédito do PCP junto dos trabalhadores do sector, que estavam determinados a entrar de novo em greve, se necessário, para que o seu contrato fosse publicado na íntegra. Com grande atraso, é certo, o contrato colectivo, cuja homologação, afinal, já havia sido assinada em 7 e 8 de Maio pelo Delegado da Junta, lá foi publicado no ainda designado Boletim do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (BINTP, n.º 19, datado de 22 de Maio de 1974), com efeitos retroactivos a 1 de Março de 1974.

Este não fora o primeiro grande êxito do Sindicato dos Electricistas de Lisboa. Era o mais importante, pelas razões já expostas, mas não o primeiro, porque tinha sido precedido de outros, à sua dimensão, também importantes. Concomitantemente com o “marcelismo”, a negociação inicial ou a revisão de contratos colectivos de trabalho e de acordos colectivos de trabalho (ACT, contratos colectivos que abrangiam apenas uma grande empresa, assim designados para se diferenciarem dos contratos que abrangiam todo um sector de actividade), como foram o CCT do sector dos instaladores (comummente referido como da “construção civil”, e que era tornado extensivo a todas as empresas sem contrato específico), e os ACTs da Companhia Portuguesa de Electricidade, da Companhia das Águas de Lisboa, do Metropolitano de Lisboa, da Siderurgia Nacional, por exemplo, trouxera ao Sindicato uma caterva de gente nova, interessada e honesta, que procurava, através da contratação colectiva, defender os seus interesses e os dos seus camaradas de trabalho. Temo ser injusto esquecendo nomes, fruto das partidas da memória, e recordo apenas alguns, como Carlos Antunes (o sindicalista mais abnegado e sensato que conheci, algo temente e ingénuo, mas acima de tudo um homem bom, de quem há tantos anos nunca mais soube notícias), Maldonaldo Gonelha (que no regime democrático mostraria grande capacidade para agarrar as oportunidades, chegando a Ministro e desempenhando outros altos cargos) e David (todos da CPE), Mário Nunes da Silva e João Veríssimo (ambos do Metro), Artur Matias (da Companhia das Águas), Joaquim da Cunha (da Sotécnica, já falecido), João Gaudêncio da Silva (da Siderurgia, uma inteligência viva e um moiro de trabalho, sempre disponível, prematuramente falecido), Firmino Rodrigues (da Acta).

O espírito reivindicativo que essa gente procurava introduzir na acção sindical, integrando as comissões negociadoras dos respectivos contratos e acordos colectivos e fazendo eleger delegados nos locais de trabalho, ultrapassava em muito as concepções da Direcção de Mário Pedro Gonçalves, um velho operário da Siemens, durante anos e anos presidente do Sindicato, e levou a que alguns deles entrassem para os corpos gerentes, em cargos de menor responsabilidade, numa direcção de transição presidida por João Antunes (da Companhia das Águas), um sindicalista ainda comprometido com o regime. A nova dinâmica, contudo, tornava incompatível a coexistência com os simpatizantes do “marcelismo”. Em eleições concorridas, realizadas na Voz do Operário, em 1972, um novo elenco conquistou o Sindicato: Gonelha, David, Nunes da Silva, Firmino, Gaudêncio e Veríssimo, noutros órgãos, e, na Direcção, Carlos Antunes (presidente), Antero Gabão e Matias. Também previsto para ingressar na lista, mas rejeitado pelo regime, Vladimiro Guinot participava informalmente nas actividades da Direcção. Foi esta gente que encontrei no Sindicato e me convidou para integrar a Direcção — como vogal, em representação da Delegação dos Açores, criada pouco tempo antes — depois de lá me ter dirigido para tratar do despedimento de que fora alvo [9].

Como era de temer, o meu nome não passou no crivo da vigilância corporativa, presumo que devido às actividades políticas em que já me envolvera ou por qualquer outra razão "ponderosa", e não pude integrar a Direcção. Gabão, um dinamizador nato, sempre activo e o pilar daquela Direcção, não desistiu. “Se houvesse dirigentes pagos tu serias um deles; como não o permitem, ficas como empregado”, defendeu. Pela sua persistência fiquei trabalhando no Sindicato, de imediato como empregado administrativo de apoio à Direcção e depois como técnico de contratação colectiva de trabalho. Apesar de jovem, era um técnico muito especial, verdade seja dita, a quem eles, mais velhos, sempre trataram como se fosse um membro da Direcção, participando nas suas reuniões. Daí que tenha vindo a representá-la nas mais diversas situações, incluindo nas reuniões intersindicais que voltavam a realizar-se após um certo interregno e que viriam a originar a actual Intersindical, e, imediatamente depois do 25 de Abril, integrando a comissão ad hoc que agia em nome desses sindicatos nos primeiros contactos com a Comissão Coordenadora do MFA [10], na tomada das instalações da Corporação da Indústria [11], da FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), em cuja sede, à Rua Vítor Córdon, ficaria instalada a Intersindical, etc., etc., porque o resto nos levaria a contos largos.

Pela sua especial relevância, a negociação do CCT do sector do material eléctrico e electrónico foi-me entregue, substituindo nessa função o técnico que elaborara a proposta inicial e tivera até então a negociação a seu cargo. Foi feita uma revisão completa da proposta, reformuladas algumas cláusulas e redigidas outras novas, de acréscimo, porque as que existiam se mostravam manifestamente insuficientes. Como sindicato maioritário, e mandatário da Federação em que os três sindicatos dos electricistas existentes no país estavam organizados, não foi difícil fazer aceitar a nova proposta pelos restantes sindicatos, que representavam os trabalhadores das muitas outras profissões existentes no sector. Difícil foi fazê-la aceitar pelos negociadores patronais. Mas tudo acabou por ir correndo bem, com muito esforço, dedicação e determinação. Foi uma luta renhida, mesmo à mesa das negociações, demorada, cansativa em muitas ocasiões, tendo pela frente adversários igualmente empenhados na defesa dos interesses de quem lhes pagava, cordiais no trato (salvo o Narana, que era um sujeito quase intratável, bastante diferente do que aparenta ser hoje), muitos deles leais, alguns reconhecendo a justeza de muitas das reivindicações dos trabalhadores, chegando um ou outro — nas pausas de descanso e para café durante a fase de conciliação, na Corporação da Indústria, sob os auspícios e a mediação de Basílio Horta, onde nos relacionávamos de modo menos formal — até a manifestar a sua concordância com o direito à greve. Éramos quase todos jovens, uns mais do que outros, e, estou seguro, embora defendendo interesses antagónicos, trabalhávamos para ajudar a transformar este país e para fazê-lo sair do atraso em que se encontrava mergulhado. Todos aprendemos alguma coisa naquele longo processo, e não foi pouco.

Depois, a partir de Junho de 1975, a situação no Sindicato mudou radicalmente. Nova gente — alguma da qual nunca pusera lá os pés ou quanto muito desenvolvera uma discretíssima função de delegado sindical, outra sem qualquer envolvimento conhecido na luta sindical, exclusiva ou maioritariamente constituída por militantes do PCP, eventualmente de fresca data — tomou conta do Sindicato, enquadrada pelo comissário político Canais Rocha. As preocupações passaram a ser outras, a começar pela transformação do Sindicato num sindicato vertical, integrando metalúrgicos, empregados de escritório e outras profissões, misturando operários e quadros, etc. Seguiu-se a admissão de mais trabalhadores para o Sindicato, também pertencentes ao clube, que se comportavam como meros sabujos da Direcção. Culminou com a institucionalização da chamada descentralização, criando delegações e outros órgãos intermédios que não mais tornariam possível a alguém tomar conta do Sindicato se não dispusesse duma extensa e poderosa máquina burocrática. Em suma, o Sindicato era descaracterizado e burocratizado. A democracia sindical directa, com Assembleias-Gerais concorridas e acaloradas, como a tínhamos vivido até aí, que nem o corporativismo-fascista ousara destruir, acabava. Aquele que fora um dos mais importantes sindicatos operários durante o “marcelismo” caminhava também para um trágico fim.

O mais grave, porém, passou a ocorrer na contratação colectiva de trabalho, e não apenas naquele Sindicato. O novo lema era a intransigente defesa da “economia nacional”, não fazer “o jogo da reacção” e outras patranhas de idêntico quilate. O conservadorismo que os militantes do PCP já haviam manifestado durante o “marcelismo” agravara-se. A Intersindical passara a ser dirigida maioritariamente por quadros daquele partido e a expressar as suas posições. As greves, dantes apoiadas, eram agora criticadas, e os trabalhadores que as desencadeavam eram apelidados de provocadores e acusados de fazerem “o jogo da reacção” e de porem em risco a consolidação do regime democrático. Controlando os de baixo e substituindo os de cima, sabotando as lutas operárias, desprezando as iniciativas inovadoras do movimento popular que não controlassem, procurando tomar conta do aparelho do Estado e consumar a sua proclamada aliança Povo-MFA — na qual, através do controlo do Governo, da Comissão Coordenadora do MFA (e, depois, do Conselho da Revolução que a substituiu em consequência do golpe reaccionário spinolista de 11 de Março), das autarquias, das empresas nacionalizadas, das herdades ocupadas e dos sindicatos, representariam simultaneamente o povo e o MFA — constituía o modo como imaginavam conquistar o poder durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso), como designavam a situação a seguir ao 25 de Abril.

A desmedida euforia de que os adeptos do PCP andavam imbuídos fazia-os confundirem a situação real em que nos encontrávamos com uma imaginada sociedade “a caminho do socialismo”, como diziam. Os fracos resultados eleitorais que obtiveram em 1975, para a Assembleia Constituinte; o abandono, escassos meses depois, do 4.º Governo Provisório pelos aliados maioritariamente votados (PS e PPD); a ruptura do PS com a subalternização a que se encontrava sujeito e com o poder mal repartido, enveredando pela contestação ao “gonçalvismo”, por uma ampla campanha de rua abertamente anti-comunista e pela denúncia do 5.º Governo Provisório — o último do Vasco Gonçalves, companheiro de jornada do PCP e um seu homem de mão na Comissão Coordenadora do MFA e no Conselho da Revolução — apressando a sua queda, fizeram com que compreendessem que o assalto aos aparelhos do Estado, a sabotagem das lutas reivindicativas do movimento operário e o menosprezo das iniciativas do movimento popular não eram suficientes para lhes garantirem o controlo do Governo e do MFA, como esperavam. Mas se a constatação da evidência lhes esmoreceu a ilusão da tomada pacífica do poder não eliminou o fulgor de muitos. O “Verão quente” de 75, durante o qual o povo conservador do Centro e Norte do país, engrossado com umas centenas de milhar de retornados das colónias, açulado pelo clero católico mais reaccionário e enquadrado por uns poucos grupos organizados de terroristas de extrema-direita, reagia ao seu sectarismo e pretensões totalitárias incendiando e atacando à bomba os seus “centros de trabalho”, barricando estradas e mostrando-se disposto a outras violências, iria fazer com que entrassem em desespero e embarcassem, juntamente com outros ainda mais radicalizados, na aventura militar que constituiria o pretexto para a eclosão do golpe reaccionário de 25 de Novembro de 1975, de há muito preparado, de cujas consequências mais gravosas só a custo foram salvos pelo Melo Antunes e pelo Costa Gomes. Deslumbraram-se com o papel de sabotadores das iniciativas mais radicais do movimento operário e popular que a burguesia lhes reservara, e julgando-se os novos senhores do mundo mostravam à saciedade o que nos esperava se conquistassem o poder. O papel de coadjuvantes da burguesia liberal, que tão bem desempenhavam, não ficaria por aqui, continuaria por mais alguns anos, mesmo depois do movimento operário e popular, perante a contra ofensiva da burguesia, ter entrado em refluxo. No campo sindical, apupos, berrarias de “abaixo a reacção” e quejandas, assim como pancadaria em quem ousasse criticá-los, contrariá-los ou desmascará-los não faltavam nas Assembleias e passaram a ser arma frequente. Os interesses dos trabalhadores, esses, não os preocupavam e eram remetidos para plano secundário, como vinha sendo comprovado.

A prova claríssima obtive-a logo no decurso do processo de revisão do CCT do sector do material eléctrico e electrónico, em 1976. Inicialmente, não ousaram retirar-me desse processo, de que preparara a proposta, mas o seu objectivo era sabotar a revisão, o que acabariam por conseguir, começando por entregar a proposta com quatro meses de atraso e não mobilizando os trabalhadores para a luta reivindicativa. A forma como primeiro o tentaram, contudo, seria desastrosa. Ainda na fase de elaboração da proposta de revisão, em representação do Sindicato dos Electricistas do Norte veio destacado um jovem delegado sindical, pouco mais ou menos da minha idade, trabalhador numa das empresas do sector, militante do PCP, chamado Manuel Carvalho da Silva. Os cortes que procurava introduzir na linha de actuação que eu traçara enquanto redactor do projecto de proposta e indigitado principal negociador, que a exemplo da negociação inicial muito provavelmente daria bons frutos, os limites mais baixos que aqui ou ali se dispunha a aceitar e as cedências que admitia poderem ser feitas, pensei que fossem apenas resultado dum maior pendor conciliador da sua parte, devido à sua formação religiosa católica; perante a insistência, passei a suspeitar de que a sua principal função seria controlar-me. Com a frontalidade que sempre me caracterizou, disse-lhe o que pensava e o quanto seria improvável consegui-lo. Independentemente das ordens que tivesse, ele não tinha capacidade para tanto, nem eu me desviaria um milímetro da defesa dos interesses dos trabalhadores, que tão bem conhecia e que devido a um exaustivo trabalho no terreno durante os quase dois anos de vigência do contrato, na verificação do seu cumprimento, na auscultação dos trabalhadores e noutras tarefas, melhor do que ninguém sabia até aonde deveria ceder sem os atingir. Com esta clarificação, o clima passou a ficar menos crispado. Ele era rapaz de poucas falas, inexperiente, e não desempenhara a missão de que fora incumbido com a sagacidade suficiente, que teria de ser grande para iludir a minha perspicácia. E no PCP foram trouxas. Ao não quererem imiscuir directamente a Direcção sindical de Lisboa em tão descarada manobra, encarregaram de uma tão arrojada missão um incapaz. Com o tempo, a personagem viria a adquirir a experiência que então lhe faltava, singrando na hierarquia e desempenhando cabalmente as funções conhecidas.

Não me eximi de expressar o meu desagrado e indignação à Direcção do Sindicato para o qual trabalhava. Então, as coisas azedaram, e o clima, que já não era famoso, porque me tornara incómodo e passara a constituir um empecilho para as suas intenções, deteriorou-se completamente. Atirei-lhes em cara todas as cedências que me obrigaram a aceitar noutros contratos cuja negociação tinha a meu cargo, e para as quais chamara repetidamente a sua atenção, assim como outras que ordenaram a outros técnicos. Deitei para fora o que pensava da sua actuação, indigna, de dirigentes sindicais vendidos aos interesses do patronato. António Quintas, um dos dirigentes de então, com o esgar de sorriso cínico que o caracterizava, apenas me disse que teria de acatar as ordens da Direcção ou sair. Não lhes dei esse prazer, mas não demoraria até tomarem eles a iniciativa. Aproveitaram a minha candidatura às eleições parlamentares desse ano, como independente nas listas da UDP, e, em pleno período da campanha eleitoral, despediram-me. Invocaram, estupidamente, ausência prolongada ao trabalho, por supostamente não ter comunicado a candidatura e assim poder usufruir da dispensa concedida por lei aos candidatos. Temendo as suas manobras, sabendo do que seriam capazes, entregara a carta por protocolo, e ela lá estava nos serviços administrativos. Não sei se verdadeiramente a desconheceriam, por qualquer improvável incúria dos serviços, mas ainda hoje tenho fundadas suspeitas de que não. Mesmo perante a prova, a resposta foi um peremptório: continuas despedido, não te queremos cá. Em face do saneamento político, só me faltou chamar-lhes santos. Em poucos anos de trabalho, era despedido pela terceira vez. Curiosamente, a primeira e a última tinha-o sido por membros do PCP — uma, cordatamente, com um lacónico “Zé, não há trabalho”; a outra, tempestuosamente — e a do meio por acção de um informador da PIDE. Estava provado, não agradava a gregos nem a troianos. Devido aos cargos que no imediato passei a desempenhar no PCP(R), cedendo a uma errada perspectiva de Diógenes Arruda Câmara, que evitava expor demasiado o seu delfim, não lhes movi a acção judicial que pretendia, da qual sairia vencedor, e cuja publicidade contribuiria para desmascará-los.

À mistura com as represálias que alguns trabalhadores do sector do material eléctrico e electrónico sofreram no rescaldo do surto grevista, felizmente não muitos, Canais Rocha alude à prisão pela PIDE de dois técnicos de contratação colectiva de trabalho do Sindicato, Luís Manuel Moita e Maria Gabriela Ferreira. Quem desconhece o assunto facilmente ligará aquelas pessoas, e a prisão de que foram vítimas pela polícia política, à negociação do contrato do sector ou ao surto grevista. Seja a mistura intencional ou não, o certo é que aqueles dois técnicos não estiveram minimamente ligados a qualquer dos dois eventos, como Canais Rocha não desconhecerá. Figuras de relevo do grupo que ficou conhecido como sendo de “católicos progressistas”, os dois tinham sido admitidos no Sindicato tempos depois da sua expulsão da função pública como consequência da participação na vigília pela paz de 1 de Janeiro de 1973, que originou o que ficou conhecido como “o caso da Capela do Rato”. Pessoas estimáveis, integraram-se com facilidade no novo ambiente de trabalho e relativamente depressa passaram a dominar o essencial da nova profissão. Não sendo a que alguma vez sonharam, como se comprovaria pelos seus percursos, permitiu-lhes no imediato refazerem as suas vidas profissionais. O que esteve na origem da sua prisão, porém, foi a actividade política clandestina que desenvolviam, directa ou indirectamente ligada ao PRP-Brigadas Revolucionárias, ao que se disse depois, e comprovadamente na redacção e na edição do BAC (Boletim Anti-Colonial), que nada tinha a ver com a sua actividade no Sindicato.

Alguém, contudo, participara em muitos plenários informando os trabalhadores e incentivando-os a lutarem pelo seu contrato, a apoiarem a Direcção e a reforçarem o seu Sindicato; redigira e assegurara a impressão de muitas das circulares informativas e de outros panfletos apelando à greve do sector do material eléctrico [12], que estiveram na origem do surto grevista; e inclusivamente participara com mais uns poucos destemidos (um deles, Guinot, condutor descuidado), por noites dentro, na sua distribuição pelas redondezas das fábricas e por alguns locais conhecidos como sendo de passagem habitual de muitos trabalhadores do sector. Essas coisas não aconteceram por obra e graça do divino espírito santo, não caíram do céu aos trambolhões, nem vieram duma qualquer tipografia clandestina do PCP, muito menos foram resultado da acção dos seus militantes. Para a “historiografia” comunista, esse alguém nunca existiu. Não foi apagado da fotografia, como o foram outros incomensuravelmente mais célebres; apenas nunca foi expressamente referido. Assim, julgam, não sendo nomeado, seria como se não tivesse existido. Mas, não, esse alguém ainda existe; sem falsas modéstias desnecessárias, cabe agora a oportunidade de dizê-lo aos que o não sabem: é quem escreve estas linhas.

Foi um período riquíssimo de experiência o “marcelismo”, por muito que o PCP se empenhe em negá-lo e persista na dramatização da repressão política. Não porque o regime tivesse deixado de ser uma ditadura, que continuava a sê-lo; não porque a repressão policial tivesse desaparecido, porque continuava e se alargava a outros grupos que não apenas o PCP, como maioritariamente acontecera até então; não porque fosse um regime que defendesse os interesses dos trabalhadores, porque continuava sendo um regime da classe dominante; não, por nada disso. Apenas porque era um regime fraco, nascido do improviso, como compromisso e solução de recurso numa situação de crise, que mostrava muitas fragilidades que o “salazarismo” escondia melhor ou ultrapassava mais facilmente, pela sagacidade e pela capacidade do chefe incontestado para a manobra hábil; porque aconteceu numa época de viragem, de grandes transformações a nível mundial e de um surto desenvolvimentista interno desencadeado indirectamente pela guerra colonial; porque se alargava o descontentamento geral com a guerra colonial, que se tornara num grave problema político sem fim à vista e num drama social de grandes dimensões; e porque, minado por contradições insolúveis no quadro da ideologia dominante, procurando aliviar a excessiva pressão da conflitualidade laboral efectivando algumas reformas neste campo com isso destapou uma caixa de Pandora que os trabalhadores souberam aproveitar e que viria a contribuir decisivamente para apressar o seu fim.

Muita gente desvaloriza o que ocorreu durante o “marcelismo”, porque como regime anti-democrático não correspondeu às suas expectativas de abertura política nem permitiu a sua intervenção na vida do país. Valoriza a contestação estudantil e outras pequenas e folclóricas peripécias aventureiras em que se envolveu, e realça as actividades realizadas no socorro aos presos políticos e na denúncia do regime ditatorial e da guerra colonial. O PCP enaltece a sua assisada previsão de que o “marcelismo” tentava demagogicamente alargar a abalada base de apoio do regime, quer entre sectores da burguesia liberal, quer entre a pequena-burguesia e as massas populares. Procura, por isso, colher os louros da correcção da sua análise e do malogro das ilusões com que alguns dos seus aliados encararam inicialmente o “marcelismo”, e valoriza a sua participação na luta política institucional (nas eleições farsa de 1969 e de 1973, desistindo de ir às urnas nestas últimas), que em seu entender contribuiu para o enfraquecimento e para a fragilização do regime. Esquecem, ou tentam minimizar, que foi o mundo do trabalho, onde de facto começara a “Primavera marcelista”, que contribuiu decisivamente para o seu Outono, através das lutas que aí se desenvolveram e dos reflexos que tiveram em toda a sociedade. O regime foi seriamente abalado pela envergadura das lutas laborais ocorridas entre Outubro de 1973 e Fevereiro de 1974, e o seu Inverno chegaria pouco depois, em Abril. Começaria então uma nova Primavera. E isso ficou a dever-se também à abnegação, ao empenhamento e à coragem de muitas centenas de trabalhadores esclarecidos, que souberam trazer para a luta na defesa dos seus interesses muitos outros milhares.

Almada, 10 de Junho de 2008.

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NOTAS:

[1] Se bem me recordo, os casos mais flagrantes de quadros legais do PCP (ou de simpatizantes e companheiros de jornada) que geralmente assumiam posições moderadas ou mesmo recuadas eram os do Antero Martins (dos Bancários de Lisboa), um sujeito quase boçal e legalista, do Álvaro Rana (dos Delegados de Propaganda Médica), que aventava perigos inimagináveis e atacava as posições divergentes pelo seu pretenso radicalismo, e do Mota (dos Metalúrgicos do Porto), bastante comedido. Contrastavam, por exemplo, com o Manuel Lopes (dos Lanifícios de Lisboa), na altura católico progressista, que defendia posições mais avançadas e por vezes radicais, ainda que nalguns assuntos totalmente irrealistas e até contraproducentes (como em relação ao fim da cotização obrigatória ou ao direito de criação de múltiplos sindicatos do mesmo âmbito profissional ou sectorial, que propusera em tempos).
Na época, em 1973, encontrava-me politicamente desorganizado, desligado do PCP, partido em que militara entre os finais de 1969 e os meados de 1971, e com o qual tinha perdido o contacto, devido à súbita deserção do controleiro para o estrangeiro e porque também eu mudara de poiso. Não abandonara o partido, nem manifestara qualquer divergência (com 21 anos, ainda não tinha formação ideológica nem conhecimentos de política para tanto; como jovem operário, filho e neto de operários, orgulhava-me por integrar um partido que se afirmava defensor dos interesses da classe operária e dos restantes trabalhadores, e por correr riscos, visto o partido ser proibido e perseguido); tal como chegara até ele assim me perdera: por mero acaso. Vislumbrava que no meio sindical talvez pudesse reatar o contacto. Pelo que me fui apercebendo, compreendi que não seria fácil, e, depois, que nem valeria a pena.
A constituição da lista vencedora das eleições no Sindicato dos Electricistas de Lisboa fora fruto duma série de circunstâncias fortuitas e não tivera qualquer participação do PCP. Nos corpos gerentes do Sindicato não havia militantes; o Antero Gabão, o Artur Matias e o Firmino Rodrigues (do qual, em conjunto com o seu primo Arménio, partira a iniciativa) eram apenas simpatizantes, e além disso moderados. O Vladimiro Guinot, radical exuberante, estava igualmente desorganizado; seu pai envolvera-se no golpe de Beja à revelia do partido, ou coisa parecida, fora preso pela PIDE e tinha-se afastado ou sido expulso, e ele era bastante crítico em relação à orientação política seguida. Eu próprio, embora sindicalizado desde 1967, aparecera no Sindicato por casualidade (e ainda hoje estou para saber a razão pela qual o Antero Gabão não mais me largou). E um dirigente dos Bancários de Lisboa (julgo que da Direcção e, depois, da Assembleia-Geral), o Anselmo Dias, residente em Almada, que via esporadicamente no café e numa tertúlia informal animada na Almadanada (uma pequena livraria e galeria de arte daqui, propriedade do Fernando Monteiro, outro bancário), também não me inspirava grande confiança.
A história é interessante, pelo que aproveito para a contar aqui tal como a fiquei conhecendo. O Firmino Rodrigues (o Mouraria), que na época trabalhava na Acta, relacionava-se com malta que trabalhava nas duas ou três grandes empresas do sector dos instaladores sedeadas em Lisboa (Acta, Efacec, Sotécnica), e como morava perto frequentava o Sindicato, onde acompanhara a negociação do CCT de 1969. O seu primo Arménio conhecia o Antero Gabão (da Philips ou da GE, onde ambos tinham trabalhado) e trouxe-o para as primeiras reuniões. O Firmino, afinal, conhecia o Gabão, da frequência nocturna da Escola Industrial Machado de Castro, onde tiraram o Curso Industrial, e da distribuição de uns panfletos da Oposição Democrática para as eleições de 1969. O Gabão, natural do Porto, viera pequeno para Almada, residira aqui durante anos e nessa altura já andaria próximo do PCP, como aderente e cooperante da Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal (sedeada às Escadinhas do Duque); conhecia o Fernando Monteiro (o Almadanada), que por sua vez conhecia o Guinot, e através dos encontros na livraria o Gabão acabou por conhecê-lo.
Alargado o pequeno grupo inicial de interessados em concorrer às eleições sindicais de 1972 com outros frequentadores do Sindicato que participavam nas comissões negociadoras de ACTs de várias grandes empresas (Companhia das Águas de Lisboa, Companhia Portuguesa de Electricidade, Metropolitano de Lisboa, Siderurgia Nacional), faltava arranjar um local para as reuniões. Durante a guerra colonial, o Firmino conhecera em Moçambique o Silvério, agora com outros católicos dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de Seguros, que lhe facultou uma sala para o efeito. Foi portanto no Sindicato dos Seguros que passaram a decorrer as reuniões preparatórias para a constituição da Lista B e a elaboração do seu programa para a concorrência às eleições na disputa do Sindicato à direcção de transição, ainda comprometida com o marcelismo. Era uma Lista moderada, constituída com recurso a alguns compromissos e integrando membros dos corpos gerentes em exercício, razões porque não terá encontrado grandes problemas com a sua legalização (salvo com a inclusão do Guinot, que acabou rejeitada pelo Ministério das Corporações).
Retomando o fio à meada. Perante a fraca formação política e a moderação sindical que aqueles e outros militantes (ou companheiros de jornada) evidenciavam, assim como pelas posições do partido, de que ia tomando conhecimento de forma difusa, desisti de retomar o contacto. Parecia-me mais radical o Malaquias Pinela (dos Caixeiros de Lisboa), que se sabia ter sido expulso do partido, do que alguns outros que por lá andariam. Cheguei a comentar o caso com o Francisco Marcelo Curto, então consultor jurídico do Sindicato, com quem conversava frequentemente. Frustradas as tentativas do Marcelo Curto para me levar, e a outros companheiros, para o PS, recém-constituído na Alemanha, acabei por ir parar à OCMLP, um pequeno grupo esquerdista marxista-leninista-maoista.

[2] Tenho conhecimento directo dessa realidade, não por relatos fantasiosos ou por interpretações falaciosas de qualquer “historiador”, mas porque meu pai (como, mais tarde, depois do 25 de Abril, minha mãe) foi um desses sindicalistas operários — secretário e, depois, presidente da “Associação” (não do sindicato corporativo em que o fascismo pretendeu tê-lo transformado, mas da “Associação”, forma pela qual os trabalhadores sempre designaram o seu velho sindicato e com que vincavam a quem ele pertencia), condição que muito o honrou e lhe granjeou a estima e a consideração dos seus camaradas — e bastas vezes me manifestou a sua incapacidade para obter grandes resultados. Não posso esquecer, nos seus regressos de Lisboa, após mais uma maratona negocial, a ironia com que disfarçava a tristeza que lhe ia na alma e respondia à ansiedade de minha mãe acerca dos aumentos conseguidos dizendo-lhe sorrindo: “Chica, agora é que vais poder comprar um vestido novo, mulher! Foi um belo aumento: dois tostões por hora”.

[3] O assalto aos sindicatos corporativos começou logo no dia 26 de Abril; e não terá começado antes porque só ao fim do dia 25 os objectivos do golpe militar foram sendo conhecidos e o derrube do regime corporativo-fascista foi dado como certo. É perfeitamente compreensível que os trabalhadores quisessem de imediato tomar o controlo pleno dos seus sindicatos, após mais de quarenta anos da sua integração compulsiva na organização corporativo-fascista. À mistura, porém, vieram ao de cima muitos casos de oportunismo. Fui protagonista num desses casos, respeitante ao Sindicato dos Electricistas de Lisboa, e posso relatá-lo com perfeito conhecimento de causa.
Nas minhas funções de empregado de apoio à Direcção sindical participava nas suas reuniões, que por vezes decorriam para além da meia-noite, e depois, nas de Técnico de Contratação, muitas vezes trabalhava até tarde, pela noite fora, fazendo o balanço do que fora negociado no dia, redigindo qualquer acta, preparando o trabalho do dia seguinte ou ultimando qualquer proposta de Contrato Colectivo ou de alteração para ser dactilografada. Não raro, era o último a sair, e sendo da confiança da Direcção, representativa dos trabalhadores, eleita um ano e meio antes, tinha as chaves das portas do Sindicato.
No dia 25 de Abril, junto com o Firmino Rodrigues, a quem dera a notícia da eclosão do golpe de Estado, andei acompanhando em directo as acções militares que se desenrolaram em Lisboa, desde o início da manhã, no Cais do Sodré, até ao fim da tarde, no Largo do Carmo, depois da saída do Marcelo Caetano numa Chaimite para destino desconhecido, e, à noite, pelo Chiado e pela Baixa. A alegria com a iminente queda do regime corporativo-fascista era tanta, e tamanha a excitação provocada pela participação nos acontecimentos tão perto dos directos protagonistas, que nesse dia não compareci ao trabalho. Não recordo se o Sindicato abriu as portas, nem por quanto tempo, ou se esteve encerrado.
No Sábado, dia 27, ao dirigir-me ao Sindicato, na parte da tarde, deparei-me com um aglomerado de uns vinte a trinta indivíduos à porta. Uns poucos eram conhecidos, aos outros não os vira mais gordos nem mais magros. O grupo era liderado pelo Joaquim da Cunha, um empenhado e activo delegado sindical, frequentador assíduo do Sindicato, que integrara as comissões negociadoras do CCT do sector dos Instaladores, e com quem eu me relacionava bem, apesar de ele ser chato. Apercebi-me de que as portas do edifício e das instalações do Sindicato estariam encerradas. Ao inteirar-me dessa situação, vi-me confrontado pelo Cunha e por uns quantos outros, que me intimavam a entregar-lhes as chaves do Sindicato, que sabiam eu possuir, para dele “tomarem posse”.
Perante a indignação com uma tão insólita exigência e face à minha firme e obstinada recusa, a situação tornou-se repentinamente complicada, com alguns dos presentes a exaltarem-se e a proferirem ameaças do estilo “se não entregas, fazemos e acontecemos”. Na altura, eu era moço à beira dos 25 anos, e, ainda que não fosse rufia nem dado a bravatas, uma pequena dose de agressividade natural fazia com que volta e meia andasse metido em “caldinhos”, pelas mais variadas razões. Aquele era mais um, mas, no caso, um em que me metiam, sem que eu fosse tido nem achado. As exaltações e as ameaças não me intimidaram, antes pelo contrário, e uma súbita descarga de adrenalina deve ter feito com que passasse ao ataque.
Até há pouco mais de um ano eu fora operário e sócio do Sindicato, como eles, estivera para integrar a Direcção e orgulhava-me da acção sindical desenvolvida, para a qual dera o meu contributo, ainda que modesto. O Cunha conhecia, tão bem como eu (ou melhor, porque era muito mais velho e frequentava o Sindicato há mais tempo, tendo participado na nova dinâmica que culminou na eleição duma Direcção representativa dos trabalhadores), que não havia qualquer razão que justificasse aquela atitude, pelo que a sua pretensão de “tomar posse” do Sindicato era ridícula. Fiz-lhe ver o caricato da situação, e aos outros perguntei-lhes por onde andaram eles, que nos tempos difíceis não os vira pelo Sindicato. E reafirmei-lhes que só entregava as chaves a quem mas confiara; se as queriam, teriam de mas roubar; se o conseguiriam, isso ainda estava para ver-se.
A longa atalaia não dera os frutos imaginados. Não era a mim que esperavam, nem contavam com uma tal oposição. Aos poucos foram-se acalmando, cedendo aos meus argumentos, mas a situação mantinha-se num impasse instável. Entretanto, apareceram por ali uns poucos delegados sindicais, frequentadores habituais do sindicato, que ao aperceberem-se da situação logo contactaram com outros associados dispostos a defenderem a Direcção da sua confiança, democraticamente eleita. À medida que acorria mais gente, gritando palavras de ordem de apoio à Direcção, gerou-se acesa discussão e os ânimos voltaram a aquecer, com alguma confusão à mistura. Ao fim de algumas horas, a situação acalmou, e o grupo assaltante, transformado em inexpressiva minoria, esmoreceu na sua pretensão, foi-se desmobilizando, acabando por dispersar.
As coisas não ficariam por ali. Entre nós, o conceito de democracia tinha conteúdo concreto e era praticado. Não demoraria até que a Direcção tomasse a iniciativa de requerer a convocação duma Assembleia-Geral Extraordinária onde aquele e outros assuntos seriam ampla e acaloradamente debatidos. A Direcção teve confirmada a sua legitimidade para continuar a dirigir o Sindicato, a partir de então designado por Sindicato dos Trabalhadores Electricistas do Sul, e pôde dar seguimento à actividade sindical que vinha desenvolvendo. Então, nem sonhávamos que o incidente contribuiria para aguçar o apetite pelo controlo do Sindicato por diversas forças partidárias, do MRPP ao PCP, e para apressar os preparativos para tal necessários, ainda que pela via eleitoral.
O Cunha continuou a frequentar o Sindicato e a participar na acção sindical, talvez sem o à-vontade de anteriormente, quiçá com uma ponta de arrependimento pela atitude insensata que protagonizara. A mim, afrontara-me e ofendera-me, e cortei relações com ele, ao ponto de nem o cumprimentar. Uns anos mais tarde, encontrei-o em casa do Firmino Rodrigues, numa das reuniões de vários companheiros para discussão da situação política, que ali tinham passado a realizar-se com alguma frequência. Ao aperceber-me da sua presença, invoquei-a como razão para não participar e sair. Desconhecia que o Firmino acedera à sua pretensão de lhe proporcionar um encontro comigo, para me pedir desculpa pelo sucedido. Explicou-me que na época era militante de um dos grupelhos maoistas (da URML ou da UCRPML, não recordo, mas que soubera em tempos) e que cumpria directrizes da Organização. Afinal, tanta água correra sob as pontes, e ele encontrava-se já doente. Aceitei o pedido de desculpas.
A ocupação de Sindicatos, na sua maioria, era mais do que justificada. Isso não é questionável. O relevante é essa ocupação ter sido efectuada, principalmente, por gente afecta ao PCP, militantes e simpatizantes, uns de fresquíssima data, outros encobertos pela capa do MDP/CDE, outros, ainda, conhecidos, e outros, por fim, adormecidos e que repentinamente saltaram para a ribalta; alguns, eram empenhados activistas sindicais em oposição às direcções conotadas com o regime, mas muitos outros, talvez a maioria, não tinham qualquer actividade sindical conhecida. Este afã de tomar conta dos sindicatos pouco tinha a ver com a defesa dos interesses dos trabalhadores, como se viu depois; correspondia ao cumprimento de ordens urgentes do partido, tendo em vista as tarefas que o PCP destinava aos sindicatos na nova situação política.
Um dos casos mais notórios, pelos métodos, pelos objectivos e pelas repercussões que viria a ter, foi a ocupação do Sindicato dos Profissionais de Escritório de Lisboa, o maior sindicato do país, efectuada no Sábado, dia 27. Os ocupantes expulsaram a Direcção em funções, presidida pelo José Braz, e constituíram de imediato uma Comissão Directiva Provisória — integrada entre outros pelo Caiano Pereira e pelo José Luís Judas, já dirigentes de secções do Sindicato, e pelo Canais Rocha — a qual, como direcção auto legitimada, declarou o Sindicato aderente da Intersindical, condição necessária para o que se seguiria.
A partir do dia 26, o secretariado da Intersindical, que até aí tinha tido funções meramente burocráticas de convocar as reuniões e de assegurar o expediente, decidiu declarar a Intersindical em reunião permanente. Entre 28 e 30 de Abril, sem atender a quoruns, a votações ou fosse lá ao que fosse, o secretariado foi ampliado de cinco sindicatos (Bancários e Lanifícios, ambos de Lisboa, Empregados de Escritório e Caixeiros de Santarém, Metalúrgicos do Porto e Delegados de Propaganda Médica) para nove (com a integração dos sindicatos dos Metalúrgicos, dos Químicos e dos Profissionais de Escritório, todos de Lisboa, e ainda do sindicato dos Bancários do Porto). O PCP controlava já o anterior secretariado — através de dois militantes (o Antero Martins, dos Bancários de Lisboa, e o Álvaro Rana, dos Delegados de Propaganda Médica) e de dois companheiros de jornada (o Ângelo Ferreira, dos Metalúrgicos do Porto, e o Vítor Fernandes, dos Empregados de Escritório e Caixeiros de Santarém), contra um católico progressista (o Manuel Lopes, dos Lanifícios de Lisboa) que rapidamente se transformaria em companheiro de jornada e, mais tarde, em seu militante e deputado — e pela entrada dos novos sindicatos reforçou o seu domínio naquele órgão com pelo menos mais dois militantes (nada mais, nada menos, repare-se, que o Canais Rocha, dos Profissionais de Escritório de Lisboa, e o Avelino Gonçalves, dos Bancários do Porto) e um companheiro de jornada (o Vítor Franco, dos Metalúrgicos de Lisboa, que pouco depois viria a integrar o MES), contra um esquerdista maoista (o António Landum, dos Químicos de Lisboa).
Desde a sua constituição, o movimento intersindical caracterizara-se por integrar maioritariamente sindicatos dos trabalhadores dos serviços. Durante um tempo, inclusivamente, nas reuniões participavam também associados de sindicatos não aderentes, pertencentes a uns ditos “grupos de trabalho representativos dos trabalhadores” (tão representativos que não tinham ainda conquistado as direcções dos respectivos sindicatos), igualmente pertencentes a sindicatos de trabalhadores dos serviços. E as delegações às reuniões integravam, frequentemente, consultores jurídicos e outros técnicos avençados. Os sindicatos operários eram uma minoria, e dos participantes nas reuniões os operários constituíam uma minoria ainda mais minoritária. Um exemplo elucidativo era o do Sindicato do Pessoal da Indústria de Lanifícios de Lisboa, um sindicato vertical, integrando os trabalhadores das múltiplas profissões da respectiva indústria, que constituía uma das poucas excepções entre os sindicatos corporativos, esmagadoramente sindicatos por profissão, e cujo representante no movimento intersindical, o Manuel Lopes, era empregado de escritório (tal como viria a acontecer mais tarde com o representante de um outro sindicato do pessoal da indústria de lanifícios, o Kalidás Barreto). A composição social do movimento intersindical, em termos de sindicatos aderentes e de delegados participantes, reflectia a influência social do PCP, maioritariamente entre os trabalhadores não operários e entre a pequena-burguesia (técnicos assalariados e profissionais liberais), assim como a sua política de alianças, que ia dos “independentes honestos” aos católicos e aos social-democratas. No imediato pós golpe de Estado, esta composição social reforçou-se (ainda que aquele partido tenha engrossado as suas fileira, de modo surpreendente, com muitos operários sem formação política, e muitos sindicatos operários tenham sido tomados de assalto por gente que lhe era afecta ou que repentinamente se tornou simpatizante), e o novo secretariado “unitário” espelhava bem o carácter “independente e unitário” do movimento sindical.
Na noite de 30 de Abril, este movimento sindical “independente” e “unitário” mostrou logo a sua independência reunindo-se com os partidos da coligação das “forças democráticas e progressistas”, para definir os oradores no grande comício que convocara para o dia seguinte, o 1.º de Maio (reunião na sede do MDP/CDE e a que estiveram presentes o José Manuel Tengarrinha, um dos múltiplos submarinos do PCP na estrutura dirigente do MDP, por este Movimento, o Pedro Coelho, pelo PS, o Dias Lourenço, pelo PCP, e o Canais Rocha e o Vítor Santos, do Sindicato dos Técnicos de Desenho, pela Intersindical). Era necessário apresentar os novos dirigentes políticos “democráticos e progressistas” ao povo e ao país, e nada melhor do que o Dia do Trabalhador comemorado em liberdade para fazê-lo. A mobilização estava assegurada, pela alegria e o entusiasmo manifestados aquando do golpe de Estado uns dias antes, a que se juntava a esperança num futuro melhor acalentada pelos milhões de trabalhadores portugueses, e esperava-se uma grande multidão. Os jornais, as rádios e a televisão difundiriam para todo o território, e rapidamente os novos rostos ficariam conhecidos. Aconteceu a maior manifestação popular de que há memória no país, e os que se consideravam os novos senhores benfazejos dos trabalhadores foram-lhes assim apresentados.
Fui à concentração, na Alameda, e ao desfile, com o meu puto mais velho (a quem de vez em quando tive de carregar aos ombros, porque as distâncias e o tempo eram demais para ele). Com outros companheiros, quedei-me pelas imediações do Estádio da FNAT, nesse dia renomeado de Estádio 28 de Maio (em homenagem ao golpe militar que implantara a Ditadura Nacional, em 1926) para Estádio 1.º de Maio, que abarrotava de gente. Donde me encontrava, dava para apanhar dos discursos uma aqui e outra acolá, trazidas pela brisa. Não aceitava de bom grado o envolvimento de dirigentes partidários na festa do Dia do Trabalhador organizada pelos sindicatos, pelo que a situação me parecia inusitada. Para mais, não apreciava o Cunhal, e ao Soares não o tragava (reminiscências das eleições de 1969, fortalecidas pelas opiniões depreciativas que ouvira quando andara pelo PCP). Aproveitei para dar uma volta por aquelas redondezas, onde havia anos não ia; o meu primeiro emprego, aos 16 anos, fora no LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil), sedeado num imponente edifício na Avenida do Brasil, aonde desemboca a Avenida do Rio de Janeiro, e residira numa ruela adjacente (a Rua Jorge Colaço).

[4] Entretanto, o Canais Rocha fora nomeado coordenador do secretariado da Intersindical, mas isso é história que ficará para outra altura.

[5] O surto grevista no sector do material eléctrico e electrónico, a que aludo, começou na Applied Magnetics, localizada no Prior Velho, às portas de Lisboa, em 23 de Outubro de 1973, onde se manteve até ao dia 25. Tratando-se duma empresa relativamente pequena (com menos de 600 trabalhadores), face às ameaças de represálias o Sindicato interveio no conflito, a pedido dos trabalhadores. Em 24 desse mês, estendeu-se à fábrica de Cabo Ruivo da Plessey-Automática Eléctrica Portuguesa, a maior empresa do sector, empregando mais de 3500 trabalhadores, e nesse mesmo dia alastrou à outra fábrica da mesma empresa, localizada na margem Sul, na Quinta da Princesa, nos arredores de Corroios, mantendo-se até ao dia 27. No dia 29, começou nalguns sectores e turnos da Standard Eléctrica Portuguesa, outra grande empresa, localizada em S. Gabriel, nos arredores de Cascais, pertencente à americana ITT, onde se manteve até ao dia 30. No dia seguinte, os trabalhadores da Control Data Portuguesa, situada nos arredores de Palmela, uma das empresas em que a situação não era tão propícia, tentaram entrar em greve; a paralisação foi parcial e durou apenas a parte da manhã. No dia 5 de Novembro, entraram em greve os trabalhadores da Electrónica Signetics Portugal, mais outra grande empresa (com mais de 1500 trabalhadores), situada nos arredores de Setúbal, que assim se mantiveram até ao dia 9. Aqui, após o primeiro dia de greve, por intervenção do delegado do INTP e da GNR a empresa encerrou as instalações, bloqueando a entrada das trabalhadoras, que montaram permanente vigília, no exterior da fábrica, durante os dias seguintes, até ser retomado o trabalho. Curtas paralisações de solidariedade aconteceram noutras fábricas de menor dimensão, como na Philips Portuguesa, para os lados da Outurela-Carnaxide, na Fapae, uma outra empresa da Philips, que fabricava lâmpadas, localizada na zona industrial de Cabo Ruivo, e na Sipe, localizada em Carcavelos, ou foram tentadas noutras empresas.
Na Signetics, devido à extensão da greve, as represálias foram significativas, tendo sido despedidas quatro trabalhadoras mais activas, incluindo a delegada sindical, que se encontrava grávida. Mais tarde, no final de 1974, esta seria uma das empresas multinacionais que abandonaria o país, concretizando as ameaças que fizera para que o CCT não fosse aprovado, deslocando a produção para a Coreia. Noutras empresas, houve também despedimentos isolados, selectivos, à medida que aumentava o clima de intimidação e os trabalhadores já não se calavam como dantes.
As empresas multinacionais, antecessoras das actuais empresas transnacionais, eram então a expressão da primeira fase da expansão global do capitalismo, antes da actual liberalização total das trocas comerciais, do estabelecimento da produção e da circulação dos capitais conhecida por globalização. No caso do sector da electrónica, tais empresas encontravam-se sedeadas, em geral, nos países desenvolvidos, e mantinham fábricas em países de mão-de-obra barata, usufruindo aí de facilidades aduaneiras e fiscais que lhes permitiam declarar os lucros onde lhes fosse mais conveniente, através da manipulação da facturação, ou exportá-los legalmente, deixando localmente pouco mais do que os salários. Gozavam também da protecção dos governos contra as reivindicações dos trabalhadores, através da repressão ou do controlo do movimento sindical. Só com tais garantias aquelas empresas se resolviam a fixar-se, e só assim aqueles países logravam captar algum investimento criador de emprego. As produções, em geral, tinham como destino a exportação para o mercado mundial ou para alguma outra subsidiária do mesmo grupo empresarial; apenas num ou noutro caso se destinavam em parte ao mercado local, integradas nalgum programa governamental ou empresarial de modernização de um qualquer sector, como era o caso, entre nós, das telecomunicações.
Os capitais investidos eram de pequeno volume, com fraca composição orgânica, visto as tecnologias utilizadas serem as que requeriam mão-de-obra intensiva. Os poucos equipamentos que dispunham provinham, muitas vezes, de outros sítios onde os salários mais elevados tinham tornado os custos de produção menos atractivos. Quando a rápida inovação que então ocorria tornava os processos de fabrico obsoletos, algumas empresas, subsidiárias ou dependências locais de grandes empresas com nome no mercado mundial, ainda intentavam a reconversão, adaptando-se a outras produções deslocalizadas de subsidiárias do mesmo grupo empresarial; outras, de mais fraca estrutura, fechavam pura e simplesmente as portas, lançando no desemprego milhares de trabalhadores. Nestes casos, nem se davam ao trabalho de transferirem os equipamentos para localizarem a produção noutros países; por terem ficado obsoletos e terem um reduzido valor, eram pura e simplesmente abandonados no local. A precariedade era a forma de existência destas empresas menores, que viviam da subcontratação e na dependência da renovação de contratos de fornecimento de subconjuntos (integradas no novo conceito de “terceirização” ou fornecimento de partes por terceiros), por vezes nem dispondo de instalações próprias, laborando em instalações industriais inespecíficas arrendadas.
A seguir ao 25 de Abril, algumas das empresas multinacionais acabaram por concretizar as ameaças que vinham fazendo como forma de pressão para a não aprovação do CCT. Conjugaram-se então duas situações a que aquele tipo de empresas não estava habituado. Por um lado, as condições da exploração tornaram-se menos propícias, devido à entrada em vigor do CCT; por outro, a instabilidade política e o permanente clima de agitação social em que se passou a viver, que intimidava as administrações e tornava intolerável, para os trabalhadores, o autoritarismo e a repressão que caracterizara as relações laborais no interior dalgumas das empresas. Ironicamente, a primeira a concretizar essas ameaças foi precisamente a Applied Magnetics Portugal, onde havia começado o surto grevista do ano anterior. Subsidiária da Applied Magnetics Corporation, uma empresa multinacional que se dedicava ao fabrico de cabeças de leitura e de memórias magnéticas para computadores, sedeada em Porto Rico, laborava aqui em instalações industriais precárias, arrendadas. Face aos novos custos de produção, a empresa intentou despedir mais de uma centena de trabalhadores; sem avaliarem correctamente a situação, ao invés de lutarem contra os despedimentos e de se fixarem na exigência da reintegração dos despedidos, incentivados não se sabe por quem os trabalhadores acabaram por radicalizar as suas reivindicações.
Eventualmente descontentes com o que tinham obtido através do CCT, os trabalhadores daquela empresa, logo em Julho, puseram em vigor um período de trabalho semanal de 40 horas e exigiram um período de férias de 1 mês, contra as 44 horas e os 18 ou 26 dias úteis que o contrato fixara. Como se verificaria, a subsidiária portuguesa não tinha estrutura financeira autónoma para suportar tais encargos, e a AMC recusou-se a assumir quaisquer compromissos, afirmando que a AMP era uma empresa portuguesa com a qual apenas mantinha relações comerciais. O pagamento dos salários foi suspenso. A empresa invocou necessitar dum empréstimo governamental de 5000 contos para os poder pagar, o qual não lhe seria concedido, e o administrador americano, intimidado com a situação, abandonou o país. Os trabalhadores ocuparam as instalações fabris até aos meados de Setembro, mas acabaram todos no desemprego, com a garantia de um subsídio, no montante de metade do salário mínimo, durante seis meses. Para acudir à sua difícil situação económica, o Sindicato lançou uma campanha de angariação de fundos, apelando à solidariedade da população para que contribuísse. Menosprezando o esforço feito pelo seu sindicato, e não acatando o seu repetido conselho acerca das prioridades da sua luta, os trabalhadores deixaram-se arrastar pela conversa de demagogos e de aventureiros, e como em tantos outros casos foram conduzidos para um beco de onde saíram com uma pesada derrota.

[6] A inclemência do tempo, e os seus reflexos na memória, deixa as suas marcas. Referia, na redacção original deste post, que o período de trabalho semanal fora fixado em 40 horas, com duas pausas de 10 minutos para descanso, o que não corresponde à realidade. O período de trabalho semanal foi fixado pela comissão arbitral em 44 horas, até Junho de 1975, e em 42 horas, a partir de Julho desse ano, com duas pausas diárias de 20 minutos para descanso, para todo o pessoal operário do 2.º escalão, o que se traduzia num período de trabalho semanal efectivo de pouco mais de 40 horas, reduzido depois para pouco mais de 38 horas. Este erro não invalida o facto de que aquele período de trabalho semanal era realmente inovador. Os melhores períodos de trabalho semanal na indústria, para o pessoal operário, eram então de 45 horas, e os electricistas tinham sido das primeiras profissões a conquistá-lo, em 1973, para o sector dos instaladores. Passado tanto tempo desligado deste assunto, a memória pregou-me mais uma partida.
Por minha iniciativa, os dois principais contratos colectivos do Sindicato – o CCT dos Instaladores e o CCT do Material Eléctrico – passaram a ser editados em brochura. Acompanhando de notas explicativas as cláusulas mais técnicas ou de redacção mais confusa, a edição em formato de bolso era um modo de proporcionar aos trabalhadores um instrumento de fácil consulta, que podiam ter sempre à mão para desfazerem dúvidas ou para se oporem a que o patronato lhes impusesse condições de trabalho não previstas. Vasculhando papéis antigos, não encontrei a brochura do contrato original; deparei-me, por ironia, com a brochura da revisão de 1977, que já não fora editada por minha iniciativa. Para repor a verdade, tive de recorrer a fotocópia do BINTP, datado de Maio de 1974. Os parágrafos respectivos foram corrigidos em conformidade.
Não tenho disponibilidade para proceder a uma comparação exaustiva entre o CCT original e as suas revisões. Comparei o contrato original com a revisão de 1977, e numa apreciação ligeira verifico que os dois períodos intercalares diários para descanso, inicialmente extensivos a todo o pessoal operário do 2.º escalão, foram restringidos ao pessoal de alguns sectores da produção, o que não me parece muito escandaloso; e que o período de férias foi harmonizado para 30 dias de calendário, acabando com a diferenciação pela antiguidade (de 18 e de 26 dias úteis, para quem tivesse menos e 8 ou mais anos de antiguidade, o que se traduzia, respectivamente, em pouco menos e em pouco mais de 30 dias de calendário). Naquela data, períodos de férias de 30 dias eram já correntes, enquanto períodos de descanso intercalares continuavam não sendo habituais. Conquistar reduções do período semanal de trabalho é muito mais importante, e difícil, do que conseguir aumentos do período de férias (ainda que estes também representem redução do período anual de trabalho), mas esta troca, hoje, não me merece grande censura. Já o mesmo não posso dizer em relação aos salários, que ficaram representando uma baixa significativa do poder de compra da maioria dos trabalhadores. E isso foi já fruta da época: da inflação, da investida dos governos do Mário Soares contra as conquistas dos trabalhadores e dos cuidados sindicais com a “defesa da economia nacional”. Apesar de tudo, segundo os novos sindicalistas, a democracia portuguesa seguia "rumo ao socialismo".

[7] Na redacção original deste post afirmava que o CCT para o sector do material eléctrico e electrónico vigorara durante trinta e um anos. Essa afirmação baseava-se numa informação que me fora prestada por uma trabalhadora do sector. Passados tantos anos, não me encontrando a par desse assunto, tomei a informação por boa. Um leitor chamou a minha atenção para o facto de terem ocorrido entretanto algumas revisões parcelares do CCT. Confirmei essas revisões parcelares, o que retira veracidade àquela afirmação, pelo que a rectifiquei e corrigi o parágrafo onde se inseria.
Pelo que pude respigar do site da Federação Sindical do sector, o CCT original, publicado no BINTP n.º 19, de 22 de Maio de 1974, foi revisto, em parte, em 1977, na sequência da revisão programada para ter lugar em 1976 (Boletim do Trabalho e Emprego, BTE, 1.ª série, n.º 26, de 15 de Julho de 1977, com um aditamento publicado no BTE, 1.ª série, n.º 34, de 15 de Setembro de 1977); a parte não acordada foi objecto duma PRT, publicada no mesmo número do BTE, de 15 de Julho de 1977 (com rectificações publicadas no BTE, 1.ª série, n.º 27, de 22 de Julho de 1977 e no BTE, 1.ª série, n.º 34, de 15 de Setembro se 1977). Alterações, para as quais não encontrei especificação, foram também publicadas no BTE, 1.ª série, n.º 47, de 22 de Dezembro de 1978 e no BTE, 1.ª série, n.º 8, de 29 de Fevereiro de 1980; e uma alteração que pôs termo ao Grau 10-A da tabela salarial e criou a nova carreira de “operador especializado” (em substituição da antiga designação de “profissional especializado do 2.º escalão” fixada pela arbitragem de 1974), foi publicada no BTE, 1.ª série, n.º 41, de 8 de Novembro de 1999.
Fazendo as contas, se elas não me saem furadas, temos que o CCT original foi logo “aperfeiçoado” em 1977, com recurso a uma PRT. Já nessa época, certamente imbuídos do novo espírito de “defesa da economia nacional” a todo o custo, os sindicatos dos electricistas não tiveram capacidade ou interesse para se empenharem na mobilização dos trabalhadores para a defesa das conquistas que tanto lhes tinham custado a alcançar. Tomando como base a revisão de 1977 e a criação da carreira de “operador especializado”, em 1999, verifica-se que o CCT “aperfeiçoado” se manteve em vigor durante vinte e dois anos. Mas, se fôssemos mauzinhos e encarássemos a nova carreira de “operador especializado” como uma rectificação que urgia fazer logo na primeira revisão, então, poderíamos considerar que o “aperfeiçoamento” de 1977 ainda hoje se encontraria em vigor. O que seria obra! Fiquemo-nos, portanto, pelos vinte e dois anos, que também já é qualquer coisa de extraordinário. Se tivesse vagar e possibilidade de obter os textos constantes nos BTE ainda me daria ao trabalho de fazer uma comparação. Para tamanha vida útil, deverá ter sido um “aperfeiçoamento” e peras.

[8] Um útil apoio internacional — traduzido em muitos dados económicos e outra documentação e na divulgação na Europa da luta dos trabalhadores portugueses do sector — foi prestado pela Federação Internacional dos Trabalhadores das Indústrias Metalúrgicas (FITIM), com sede em Genebra, afiliada da Confederação Internacional dos Sindicatos Livres (CISL). No âmbito desse apoio, o Sindicato chegou a receber a visita do secretário-geral daquela federação de sindicatos, um americano de meia-idade, alto e forte, de quem já não recordo o nome, que falava fluentemente o português (com sotaque brasileiro, porque estivera durante alguns anos no Brasil), que todos suspeitávamos ser um agente da CIA. Para o que nos interessava, pouco nos importava quem ele fosse na realidade.

[9] Como vim a confirmar uns anos depois, desfazendo um desagradável equívoco em que laborava, obra de um informador da PIDE existente na Precix, uma empresa de metalomecânica, de produção muito diversificada que incluía bombas e rockets para a Força Aérea, então existente na Quinta de Santa Rosa, junto ao sucateiro A. Santos, na estrada da Charneca do Lumiar para Camarate.

[10] Uns dias depois do 1.º de Maio (já não recordo com precisão quando), integrei a delegação da Intersindical que se encontrou com a Comissão Coordenadora do Programa do MFA (representada pelo Melo Antunes, pelo Vítor Alves e pelo Vítor Crespo) para lhe transmitir as pretensões imediatas dos sindicatos. Saí dessa reunião algo confuso e com uma primeira impressão não muito favorável sobre aqueles membros da Comissão Coordenadora, ao contrário dos meus companheiros (que também já não recordo quem foram, para além do sempre palavroso exuberante Manuel Lopes). Apresentaram-se como representantes do novo poder e atribuíam ao MFA a condução do “processo revolucionário”, expressão que ouvi pela primeira vez ali. O Crespo não dera meia para a caixa (não sei se por estar meio entaramelado, após o almoço); o Alves, todo ele polimento, dissera uma ou duas banalidades; e o Melo Antunes, denotando uma sólida formação política, discorreu de cátedra acerca dos três D do programa do MFA, das liberdades devolvidas ao povo e do papel que era esperado os sindicatos desempenharem na contenção das reivindicações dos trabalhadores e das greves, e patati, patatá, perorando com uma tirada que não mais esqueci: “isto ainda não é a revolução socialista, mas nós cá estaremos para fazê-la”. Não estava mal, não senhor, uma revolução socialista a ser feita pela tropa.

[11] Encabecei com o António Proença (da Direcção do Sindicato dos Técnicos de Desenho) a ocupação da Corporação da Indústria. Conhecíamos a instituição, que frequentáramos durante a fase de conciliação do CCT do sector do Material Eléctrico, e parecia-nos adequada para ali ser instalada provisoriamente a Intersindical: estava bem localizada (à Rua Carlos Testa, no centro da cidade) e dispunha de modernas instalações, num edifício relativamente recente. Aquelas instalações viriam a ter outro destino (acabando por alojar a União dos Sindicatos de Lisboa), porque entretanto a sede da FNAT preenchia melhor os requisitos pretendidos para instalar a Inter (melhor localização e mais espaço disponível).
A ocupação de instalações da Organização Corporativa não esperou por qualquer autorização ou anuência; partiu da iniciativa dos sindicalistas. Quem trabalhava naquelas instituições mantinha-se na expectativa, à espera que do MFA ou da Junta de Salvação Nacional emanasse qualquer directiva quanto à sua situação. Era com alguma surpresa, e nalguns casos com apreensão e até receio, mas sem qualquer oposição, que encarava as delegações sindicais numerosas que se apresentavam “para tomar conta das instalações”.
Constatei essa situação de apreensão precisamente na Corporação da Indústria. Era seu secretário-geral o Basílio Horta, então um jovem quadro trabalhando na instituição. Recordo a sua aflição perante a autêntica invasão, e as suas repetidas declarações de apoio à nova situação política. Conhecia-me e encontrou em mim um interlocutor que o acalmou e aos restantes funcionários, informando-os de que nada tinham a recear, pois o objectivo da delegação sindical era tão só tomar conta das instalações, uma vez que com a queda do regime a Organização Corporativa estava ou seria extinta. Afirmava a sua condição de democrata; ainda que fosse um sujeito de trato cordial, bom mediador, não sendo eventualmente um adepto do regime anti-democrático deposto, seria um democrata de última hora, pragmático o suficiente para se adaptar rapidamente aos novos tempos, como tantos outros.

[12] Os que não foram copiografados foram impressos clandestinamente na Gráfica Progressiva de Cacilhas, pela prestimosa colaboração do seu proprietário, Sr. Virgolino, ex-preso político, que corria riscos não despiciendos.

ADENDA

Este texto foi editado originalmente em 2 de Junho de 2008, sob o título "“Luta sindical e repressão no consulado caetanista (1972-1974)”: a história à moda comunista". Porque fazia referência a factos supérfluos, laterais, que além do mais poderiam ser mal interpretados, e porque continha algumas imprecisões, foi eliminado, tendo sido depois reeditado com o presente título e com algumas correcções no conteúdo, em 10 de Junho de 2008; foi de novo corrigido e aumentado, em 22 de Junho de 2008, e, também, em 21 de Setembro de 2008. Algumas notas foram sendo acrescentadas posteriormente, em datas diversas.


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