segunda-feira, 4 de agosto de 2008

PCP: o drama que calhou em sorte à classe operária


No seu blog (aqui e aqui) e na página da "Renovação Comunista" na Internet, Jorge Nascimento Fernandes publicou uma interessante reflexão intitulada “O PCP, a Revolução Democrática e Nacional e o rumo ao socialismo. Algumas contribuições para a caracterização do 25 de Abril”. Manifestei-lhe, no seu blog e nessa altura, o meu aplauso por aquela sua reflexão. Nesse texto, o autor aponta a similitude entre a “revolução democrática e nacional” e a “revolução democrático-popular” adoptada pelo VII Congresso da Internacional Comunista (IC), em 1935, nunca referida pelo PCP; assinala a crítica a essa linha política feita pelo Partido Comunista Grego (PCG) num texto publicado em sítios da Internet afectos àquele partido, que estaria sendo recomendado para estudo e reflexão; e refere a contradição entre a apologia da linha do partido e a recomendação do estudo dum texto que indirectamente a critica. Apesar da perspicácia, a intenção do autor é criticar um pretenso “esquerdismo obreirista” que viria afectando o PCP, e para isso invoca também o eclectismo da orientação que revelariam a recomendação do estudo da crítica do PCG e a publicação recente de um livro sobre o leninismo.

É interessante que alguém da área política do PCP, embora crítico e afastado, pela primeira vez identifique a “revolução democrática e nacional” com a “revolução democrático-popular”. Como antigo esquerdista comunista marxista-leninista-maoista, eu próprio escrevera em tempos, em diversas ocasiões, sobre a “revolução democrática e nacional” e sobre a sua relação com a linha oportunista implantada no movimento comunista internacional pelo VII Congresso da IC. Tendo sido crítico, no PCP(R) (Partido Comunista Português-Reconstruído), no seu II Congresso, em 1977, da etapa da “revolução democrático-popular”, que classificava de contrabando oportunista, conhecia suficientemente o assunto para abordar a linha política adoptada pelo PCP a partir de 1965. Fui desencaixotar esses textos, dum período em que me entretinha a criticar alguns informes e outros escritos do Cunhal, de que possuía cópias de edições antigas ou que as Edições Avante reeditavam. Achei-os curiosos e não me furtei a sorrir. Por um lado, pela linguagem que usava na época; por outro lado, pela satisfação que me provocaram, por ver que já então, sobre estas questões, formulara opiniões que o tempo viria a confirmar. Aproveitei este que agora publico. O tema central do texto, a linha política oportunista do PCP, é mais vasto, mas tem como pano de fundo a “revolução democrática e nacional”, assim como as variantes que a antecederam. Expurguei-o da linguagem mais acintosa que usava para referir o Cunhal e o PCP, corrigi-o num ou noutro pormenor e actualizei-o com algumas informações mais recentes, sem desvirtuar-lhe o sentido. O texto é ligeiro, e já não me recordo se o escrevera com algum propósito definido ou se apenas para desabafar e ir matando fantasmas, como aconteceu com muitos outros.

Discordo de alguns dos sentidos para que Jorge Nascimento Fernandes orienta o seu texto. Como conhecedor do marxismo-leninismo, não concordo com as apreciações que faz, neste e noutro seu texto anterior, sobre as linhas políticas adoptadas pela IC nos seus congressos anteriores ao VII (quer a da “frente única operária” ou do “governo operário e camponês”, aprovada no IV Congresso, em 1922, quer a da “classe contra classe”, aprovada no VI Congresso, em 1928), que eram correctas no essencial, mas que muitos dos jovens partidos comunistas, pela inexperiência e pela exiguidade dos seus efectivos e meios, não souberam nem puderam levar à prática, caindo facilmente no esquerdismo. Imagino que não tenha sido comunista revolucionário, apesar de ter sido militante do PCP, e compreendo, por esse facto, que a revolução socialista proletária e a ditadura do proletariado, assim como a insurreição armada, lhe causem um certo desconforto. Mas os verdadeiros comunistas eram assim, defensores da subversão da ordem burguesa e da insurreição armada para a destruição do capitalismo e a implantação do socialismo e do comunismo. É nesse contexto ideológico e político, no quadro do marxismo-leninismo, que deverá ser apreciada a linha política da IC. Pode-se apontar que a Internacional Comunista, antes de mais, servia os interesses da defesa da revolução soviética, subordinando-se, por isso, às políticas da União Soviética (URSS), mudando a sua orientação conforme estes interesses. Assim se explicariam as mudanças oportunistas que foram adoptadas na iminência da ameaça nazista. São estas mudanças, contudo, que devem ser classificadas de desvio oportunista ao marxismo-leninismo, enquanto as orientações dos anos vinte não podem ser classificadas de radicalismo esquerdista. A década de vinte, é bom lembrar, foi palco de diversas crises económicas e políticas nacionais e do início da grande crise geral do capitalismo, que segundo o marxismo-leninismo eram clima político propício para a revolução.

Causa-me uma certa estranheza como ainda se considera comunista e integra uma organização que se intitula Renovação Comunista. Julguei que a renovação do comunismo constituísse um retorno ao marxismo-leninismo, que o PCP apenas usa como retórica e que nunca seguiu no fundamental. O comunismo da profecia marxista foi uma completa desilusão política, e o marxismo-leninismo um logro teórico total, mas não há outro comunismo para defender além do teorizado pelo marxismo-leninismo e do praticado pelos regimes que afirmavam segui-lo. A única experiência duradoura de exercício do poder político proletário foi implantada com base na profecia messiânica e na teoria da revolução proletária marxistas e na arte da táctica revolucionária leninista. Não há outro comunismo proclamado e praticado e, portanto, que goze de algum crédito (para além, é claro, de muito descrédito). Ser revolucionário comunista é sinónimo de ser marxista-leninista. Repudiar o marxismo-leninismo e afirmar-se comunista é uma contradição e um retorno a concepções pré leninistas ainda mais idealistas. Pode intitular-se comunista quem quiser, até os militantes do PCP, mas quem pretender afirmar-se um verdadeiro comunista, em coerência, só o poderá fazer sendo marxista-leninista e lutando pela revolução socialista, pela insurreição armada das grandes massas proletárias e pela instauração da ditadura do proletariado.

Nesse seu texto, Jorge Nascimento Fernandes faz referência a que “com as nacionalizações da banca e dos seguros e o começo da reforma agrária (…) o socialismo estava ao alcance de uma mão”. Era também a concepção do PCP, pelo menos, a de muitos dos seus quadros e militantes, que não a escondiam. Cumpriam-se, no essencial, algumas das tarefas delineadas para a “revolução democrática e nacional”, que na situação de grave crise política em que se vivia até a burguesia aceitava, e a evolução política parecia rumar ao socialismo. Foi Sol de pouca dura e não passou de ilusão. O açambarcamento de cargos no aparelho do Estado, por excesso de entusiasmo, o controlo do aparelho sindical e a sabotagem de reivindicações do movimento operário e das suas lutas, por excesso de zelo e de comedimento, o desprezo por muitas iniciativas originais do movimento popular e das suas organizações, que pela diversidade e amplitude escapavam às suas tentativas de controlo, o sectarismo para com os seus aliados e os fracos resultados eleitorais para a Assembleia Constituinte (em Abril de 1975) contribuíram para evidenciar as contradições existentes no PCP — entre a táctica proclamada e a praticada e entre as bases e a direcção — e para deteriorar o clima social e político, acabando por isolá-lo. Desesperado, envolveu-se na aventura que constituiria o pretexto para o golpe reaccionário de 25 de Novembro de 1975, correndo graves riscos, escusados, e foi salvo pela sensatez de aliados da ala social-democrata de esquerda do MFA (Movimento das Forças Armadas), que hostilizara. O início da contra-ofensiva burguesa no ataque a algumas conquistas do movimento operário e popular, os novos fracos resultados eleitorais obtidos um ano depois para a Assembleia Legislativa, a perda de influência social e política e a ruptura consumada com a social-democracia civil e militar, tudo isso não impediu o PCP de declarar, no seu VIII Congresso, em Novembro de 1976, que “a democracia portuguesa tomou o rumo do socialismo”. Destruído momentaneamente o poder dos monopolistas e dos latifundiários, normalizada a democracia burguesa, o PCP via realizado o seu grande e único projecto político. Relegado para a condição de pequeno partido, restava à burguesia liberal assumir a condução da democracia portuguesa no “rumo do socialismo”. É como vamos desde então.

Jorge Nascimento Fernandes afirma que “o PCP, depois do 25 de Abril, nunca pretendeu tomar o poder”. Parece-me uma afirmação ousada e um pouco injusta. Aquele partido sempre pretendeu desempenhar um papel importante no que então designou por “processo revolucionário em curso” (PREC), e é iniludível não só que partilhou o poder — com assento no efémero Conselho de Estado e com cargos no governo, no parlamento, nas autarquias, nas empresas nacionalizadas e no vasto aparelho do Estado — como almejava ampliar e reforçar o poder que detinha, através da agitação da parte do movimento de massas que controlava e das posições dos militares do MFA que influenciava. Como partido que se afirma comunista, com maior ou menor convicção o PCP pretendeu alcançar o poder para implantar o socialismo ou, pelo menos, aquilo que o seu ideólogo, em maior ou menor sintonia com a ortodoxia, considerava ser o socialismo, isto é, o capitalismo de Estado monopolista, no caso concreto, restrito aos principais sectores da economia, não muito distinto e apenas um pouco mais radical do que o socialismo defendido pelas fracções de esquerda da social-democracia, pacificamente aceite pela burguesia em períodos de crise do capitalismo ou de grave crise do seu domínio político. A táctica que adoptou para atingir esse socialismo foi uma sonhada aliança das forças “anti-monopolistas e anti-imperialistas”, as chamadas forças “democráticas e progressistas” (correspondentes às forças “progressistas e patrióticas” de antes do 25 de Abril). Procurou concretizá-la, no plano partidário, através duma “maioria de esquerda” parlamentar, formada com a social-democracia (representada por cá pelo PS-Partido Socialista), objectivo pelo qual sempre orientou a sua acção política, e, no plano militar, através da aliança Povo-MFA, por via da cooperação, na Comissão Coordenadora do MFA, dos seus simpatizantes e militantes com os social-democratas, que após a ruptura ficariam conhecidos, respectivamente, por “Esquerda Militar” e por “Grupo dos 9”. Depois da tentativa frustrada do golpe reaccionário de 11 de Março, servida de bandeja, com a nacionalização da banca e dos seguros e, através dela, de centenas de empresas, o PCP vislumbrou uma oportunidade inesperada de aprofundamento da sua “revolução anti-monopolista, anti-latifundista e anti-imperialista” e pretendeu reforçar o seu poder. Um capitalismo não monopolista, o do “nacionalizado, nosso”, no quadro duma democracia burguesa, contudo, foi a feição máxima do socialismo em nome do qual o PCP lutou pelo poder.

Coisa bem diferente é se o PCP alguma vez lutou pela revolução socialista proletária, o que me parece inquestionável não ter acontecido. Como nunca lutou pela revolução socialista proletária, o PCP também não poderia adoptar a via insurreccional para conquistar o poder e construir o socialismo. Por isso me parece correcta a sua afirmação mais precisa de que “nunca houve da parte do PCP, ao longo do processo revolucionário de 74/75, qualquer ruptura revolucionária com vista a implantar a ditadura do proletariado”. Apesar do envolvimento de grupos de simpatizantes e de militantes mais radicalizados no incentivo e na tentativa de aproveitamento da aventura da insubordinação e da sublevação de umas poucas unidades militares reagindo a grosseiras provocações que constituiria o pretexto para o golpe reaccionário de 25 de Novembro de 1975 — mostrando alguma divisão interna entre facções que pelo recurso à negociação e ao compromisso pretenderiam recuperar parte do poder que o partido detivera, perdido com as sucessivas derrotas sofridas ultimamente (remodelação do Conselho da Revolução, queda do V Governo Provisório, o último do “companheiro Vasco”, e participação mínima no VI Governo), e facções mais aventureiras dos seus simpatizantes militares, contagiadas pelo exacerbado clima putschista em que então se vivia, que desejariam um levantamento militar e civil mais radical para dar novo fôlego à “revolução democrática e nacional” — o cumprimento imediato da ordem de retirar emitida pelo núcleo restrito da direcção executiva, quando a contagem de espingardas mostrou não existir qualquer garantia de sucesso, confirma que acções radicais não desfrutavam de apoio convincente das facções dominantes ou nem faziam parte das concepções de muitos. Como se viu, nem para reconquistar posições quanto mais para desencadear revoluções.

Desde há muitos anos, o PCP caracteriza-se por ter uma linha política oportunista, que de forma elaborada já vem do tempo em que o Cunhal tomou a direcção do partido, a qual nunca teve em vista a luta pela revolução socialista proletária. Primeiramente, com a “revolução nacional-democrática”, de 1943, ficou-se claramente pela subordinação aos interesses da burguesia liberal; no período ultra oportunista dos anos cinquenta, abraçou a transição pacífica do fascismo para a democracia burguesa; depois, com a “revolução democrática e nacional”, de 1965, evoluiu para a ilusória etapa intermédia duma “revolução anti-monopolista e anti-imperialista”, “profundamente popular”, que atribuía a uma coligação de forças imaginariamente anti-monopolistas e anti-imperialistas, integrando fracções da média e da grande burguesia, cujas tarefas só aliado ao campesinato mais pobre e a fracções da pequena burguesia urbana e da intelectualidade progressista o proletariado poderia realizar com sucesso levando a cabo a revolução socialista proletária; finalmente, desde 1976, com a caracterização da sociedade portuguesa como sendo uma “democracia avançada rumo ao socialismo”, tudo o que pudesse restar de ilusões revolucionárias nas mentes de alguns ingénuos foi jogado às urtigas. Esboroado o comunismo, tendo o centro dirigente, o chamado Sol na Terra, sido tomado de assalto por dentro sem que o proletariado mexesse uma palha para defendê-lo, o socialismo e o comunismo são apenas miragens agitadas pela propaganda, que serão implantados pela ordem natural das coisas, como sucessores inevitáveis do capitalismo, como dita a profecia política marxista, restando esperar pela sua derradeira crise geral.

O PCP, portanto, não ilustra apenas a hipocrisia de continuar a afirmar lutar pelo socialismo e pelo comunismo quando somente espera o cumprimento da profecia, futuro ainda mais improvável depois do falhanço do comunismo como regime económico-social. Muito antes de o comunismo ruir, quando ainda poderia ser legítima alguma ilusão, já a sua linha política oportunista se caracterizava pelo abandono da luta pelo socialismo e pelo comunismo. As teorizações do Cunhal sobre a etapa da revolução social em Portugal, sobre estratégia e táctica, sobre a identificação dos inimigos e dos aliados e sobre as tarefas do partido, assim como a actividade partidária ao longo dos anos, são disso exemplos claríssimos. Para além dum exímio organizador e dum bom político prático, o Cunhal era um fraco conhecedor do marxismo-leninismo e um fraquíssimo seguidor da doutrina na sua aplicação à realidade social e política portuguesa. Não creio que os erros e os equívocos em que laborou durante toda a sua vida fossem conscientes e, muito menos, intencionais, mas são ilustrativos da sua condição de político pequeno-burguês radical de esquerda e do contexto ideológico e político que caracterizou o movimento comunista internacional após a morte do Lenine. Aconteceu-lhe também ter tido como adversários, dentro e fora do partido, principalmente, gente que estava à sua direita, que conhecia do marxismo-leninismo menos do que ele e que errava ainda mais na análise da realidade social e política portuguesa. O único adversário que teve à sua esquerda, que de certo modo ousou fazer-lhe frente, para além de errar quanto à essência do oportunismo da linha política, errava também na apreciação da conjuntura e na orientação que o partido deveria tomar, e não dispunha de experiência nem de outras qualidades em nível comparável. Neste contexto, o Cunhal sobressaía naturalmente como um intelectual dotado, aparentando uma sólida formação ideológica e política que lhe permitia facilmente demonstrar a inconsistência das críticas dos que se reclamavam do comunismo e do marxismo-leninismo e ainda dar-se ao luxo de deleitar-se a glosar as frágeis e, por vezes, ridículas posições políticas de adversários pessoais e do partido. Assim, pôde moldar o PCP segundo as suas concepções, e o partido não passou dum propagandista e defensor da União Soviética, de que ele era um confesso admirador, quedando-se, a partir de 1956, por ser um fiel seguidor das ordens do Partido Comunista da União Soviética (PCUS); a isso se restringiu a sua luta pelo socialismo e pelo comunismo.

Tal não impediu que a burguesia e os adeptos, por razões opostas, atribuíssem ao partido e ao Cunhal objectivos pelos quais verdadeiramente nunca lutaram. A propaganda definira o comunismo como a encarnação do mal, e os comunistas como comedores de criancinhas ao pequeno-almoço e matadores de velhos por injecção atrás da orelha; tudo o que apenas cheirasse a comunismo e a comunista sofria os efeitos dessa conotação pejorativa. A História acabaria por mostrar que nem o PCP nem o Cunhal pretendiam levar a cabo a revolução socialista proletária para implantar o comunismo, fazendo-lhes justiça. O Cunhal tinha a visão do comunismo como meta inelutável das sociedades humanas, cuja construção ocorreria durante um longo período histórico, cumprindo assim a profecia marxista. O que ele retinha do marxismo era esse objectivo final inexorável e as razões que o determinavam, as lutas das classes oprimidas contra as opressoras, dos explorados contra os exploradores, que acabariam identificadas com as lutas dos pobres contra os ricos, mas não os meios violentos pelos quais essas lutas se desenrolariam, constituindo uma espécie de rosa sem espinhos. A marcha para o comunismo, por isso, seria uma dura caminhada, prenhe de escolhos, com avanços e recuos, com vitórias e derrotas, feita de pequenos passos, de etapa em etapa, constituída por pequenas revoluções, sim, mas daquelas aceites por todos, ou pela maioria, tidas como inevitáveis, portanto, longe das concepções leninistas mais ortodoxas que identificavam a revolução com a épica insurreição armada das amplas massas proletárias para a conquista do poder político. A revolução, para ele, era como que um contínuo “processo revolucionário em curso”, entrecortado por pequenos interregnos, numa versão de história interminável de que se conhecia o radioso final. Pelo caminho, as coisas poderiam ser elas e o seu contrário, o poder ser detido pela burguesia, mas a sociedade portuguesa não ser uma formação social capitalista. Bastava abstrairmo-nos da questão do poder e concentrarmo-nos na questão do Estado, afinal, para ele, em vez do poder, a questão central de toda a revolução. Daí que enquanto uma parte dos sectores essenciais da economia esteve nacionalizada a sociedade portuguesa fosse “rumo ao socialismo”. O PCP nunca teve uma linha política divergente destas concepções. Existiu escudado nas concepções políticas e nas capacidades de trabalho do Cunhal, e quando este lhe faltou foi pior a emenda do que o soneto. Como se viu, enquanto ele esteve politicamente activo, o PCP foi o partido do Cunhal, o partido do “filho do advogado”. Hoje, com alívio, pode-se dizer: para melhor, antes assim.

A concepção oportunista com que o PCP afirma pretender atingir o socialismo tem contribuído para as sucessivas derrotas do movimento operário e popular e para a perda de direitos que foram conquistados em períodos mais favoráveis. Desde sempre, estas derrotas e insucessos têm sido atribuídos pelo PCP à “traição” da social-democracia, vendida aos interesses da grande burguesia e do imperialismo. É um facto indesmentível, que entre nós a reiterada prática política do PS apenas confirma à saciedade. Mas outro facto indesmentível é que desde há muito o marxismo-leninismo tinha desmascarado a social-democracia e denunciado a sua característica de ala esquerda da burguesia e do imperialismo. Ora, o PCP não só calou essa denúncia como tratou de promover a social-democracia como aliado privilegiado, na sequência dos acordos de Paris (de Setembro de 1973 e de Março de 1974). Todos os que foram contemporâneos do evento se recordam da proposta da Intersindical nascente para que discursassem no Comício do 1.º de Maio de 1974 um representante do PCP e outro do PS, partido constituído um ano antes, na Alemanha, sem qualquer representatividade no movimento operário e sindical e albergando muitos trânsfugas e ultra oportunistas conhecidos, mas que o PCP necessitava de promover como interlocutor credível e aliado preferencial para o seu projecto político. Em vez da denúncia da social-democracia, do seu carácter burguês e de inimigo declarado dos interesses da classe operária e dos trabalhadores, devido às suas ilusões oportunistas o PCP ocultou aquele carácter reaccionário e promoveu-a. Depois, a custo, não sem ambiguidade, conforme lhe convenha, tem vindo a denunciar o PS e as suas políticas ao serviço do capital. O PCP, contudo, nunca fez qualquer autocrítica das suas próprias responsabilidades na ocultação da social-democracia como inimiga do socialismo. Não a poderia fazer, sob pena de se desmascarar, porque centrou a sua política de “rumar ao socialismo” numa aliança com a social-democracia, através duma almejada “maioria de esquerda” parlamentar.

Como pequeno partido, representando sectores minoritários da sociedade, uma parte do proletariado e da fracção mais radical da pequena-burguesia, num regime democrático burguês o PCP sempre teve e terá uma pequena expressão eleitoral. A forma de aumentar a sua representatividade social para além da expressividade eleitoral é exercer o controlo do movimento sindical e de outras organizações de massas (e, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, foi também infiltrar-se no aparelho do Estado e na gestão autárquica e das empresas nacionalizadas). Usando os movimentos de massas para provocar agitação social e contestação política, o PCP adquire e legitima uma representatividade social que ultrapassa a sua pequena expressividade eleitoral, e utiliza-a como meio de pressão para forçar alianças partidárias, tácitas ou expressas. A luta de massas, portanto, é uma componente essencial da táctica política dos partidos comunistas e do PCP. Embora a luta de massas não tenha em vista, no fundamental, defender verdadeiramente os interesses dos sectores sociais envolvidos, ela tem de assentar em lutas defensivas ou ofensivas, de protesto ou por reivindicações concretas, usando os meios que se mostrem mais exequíveis — desde os mais simples, como a petição e o abaixo-assinado, até à concentração, à manifestação, ao zelo, à paralisação e à greve — e tem de adquirir alguma credibilidade pela satisfação, ainda que parcial, dessas reivindicações, convencendo as massas de que lutando conseguem atingir os seus objectivos. A conhecida frase do Jerónimo de Sousa “lutando nem sempre se ganha, mas não lutando perde-se sempre”, parafraseando o ditado popular “quem não arrisca não petisca”, traduz o que constitui o instrumento táctico fundamental do PCP. Mesmo neste campo, porém, a sua política nunca é suficientemente consequente, de modo a obter a satisfação plena das reivindicações: umas vezes, por dificuldades decorrentes das próprias lutas, outras vezes, por incompetência e por incúria, mas em geral por opção deliberada. Se as reivindicações dos mais variados sectores sociais fossem atendidas, às tantas o PCP perderia clientela e ficaria sem volume significativo de massas descontentes mobilizáveis para a agitação social e para a contestação política. Usa, por isso, a política de ir acenando ao burro com a cenoura.

Enquanto partido que se reclama comunista e marxista-leninista, o PCP representa um embuste, porque nunca se comportou como um verdadeiro partido comunista, um partido que lutasse pela revolução socialista proletária, e, nesse sentido, a referência ao marxismo-leninismo é abusiva e representa uma usurpação mistificadora. Constitui o que designo por partido pequeno-burguês reformista radical para operários, que na sua longa existência se norteou pelo anti-fascismo e pela defesa de um regime de capitalismo não monopolista, com uma forte presença do Estado na economia e na sociedade. O seu revolucionarismo não ultrapassou o da “revolução democrática e nacional” ou “revolução anti-fascista”, como dizia o Cunhal, cujos objectivos mais radicais foram abandonados ainda em 1974, substituídos por uma Plataforma de Emergência mais recuada, aprovada no VII Congresso (Extraordinário), em Outubro desse ano, quedando-se depois pela conquista e consolidação duma “democracia avançada”, outra criação da inspiração cunhalista nas ideias alheias. Ainda desfruta de influência entre uma parte da classe operária e dos trabalhadores assalariados, porque mais nenhum partido tem aí raízes nem fala em nome dos seus interesses. Mesmo como partido reformista, porém, o PCP constitui uma fraude. O caso mais flagrante da sua política de trapaça acontece no movimento sindical. Aqui não é necessário lutar inconsequentemente, porque a burguesia dispõe dos instrumentos para tornar sempre insuficientes, precários e temporários os benefícios que o movimento operário vai conseguindo obter. Seja pela inflação dos preços, seja pela legislação laboral, seja pela abertura das portas à imigração, seja pela tributação, os governos burgueses têm a faca e o queijo na mão. Um verdadeiro partido reformista esforçar-se-ia por apoiar formas de luta consequentes e continuamente renovadas. Um movimento sindical forte seria até uma forma de contribuir para transformar o capitalismo de vão de escada que por aqui ainda prolifera à custa dos salários baixos, da desregulação das relações laborais e da teta do Estado num capitalismo mais desenvolvido. Todos ganharíamos com isso. Mas esse não é o interesse do PCP. Trabalhadores menos explorados, com melhor nível de vida, ficariam menos receptivos a esse mito do socialismo e do comunismo que o PCP afirma defender.

O que se tem verificado com a baixa progressiva da parte dos salários no rendimento nacional, a partir de 75-76, com a perda de direitos dos trabalhadores, com a manutenção dos salários baixos, e, nos últimos anos, com o corte significativo nos valores das pensões e das aposentações, é uma autêntica vergonha nacional. O que se prepara com a revisão do código do trabalho, com a instituição dum banco de horas e horários à medida, colocando o trabalhador à disposição do patrão e visando reduzir o pagamento do trabalho extraordinário, com o pagamento duma parte do salário em espécie, sem o acordo do trabalhador, com os extensos períodos de trabalho a prazo e a manutenção do falso trabalho independente a recibos verdes, ou com a caducidade das convenções colectivas, por exemplo, é uma regressão que vai para além do próprio “marcelismo”. É total despudor tais “reformas” estarem sendo instituídas por tecnocratas que antigamente se apresentavam como revolucionários socialistas, como é o caso do actual Ministro do Trabalho, Vieira da Silva, mas esse é o conhecido papel da social-democracia. Para esta situação, pode-se invocar o contributo dos sindicatos amarelos, pela função inqualificável que têm desempenhado, descaradamente ao serviço do patronato e dos governos e actuando como seus representantes no movimento sindical, mas uma parte das culpas cabe ao movimento sindical controlado pelo PCP.

O controlo do movimento sindical pelo PCP tem-no conduzido para sucessivas derrotas, que nem a propaganda mais esforçada consegue transformar em vitórias, com a consequente fragilização da capacidade reivindicativa do movimento operário. Chegou ao ponto de fazer uso de formas superiores de luta, como a greve sectorial e a greve geral, não como instrumentos de luta por reivindicações concretas, que lhe dessem capacidade para lutar e vencer, mas como meros instrumentos de protesto genérico contra as políticas governamentais e como meio de pressão ao serviço da política de aliança com a social-democracia que o PCP sempre almejou. Mudanças de políticas só se alcançam com derrotas dos adversários, não com as derrotas daqueles que afirmam lutar contra essas políticas e que são alvo dos seus efeitos gravosos, como tem acontecido. A utilização de formas de luta importantes para fins de mero protesto constitui até uma caricatura da luta política, que acaba banalizando e descredibilizando aquelas formas de luta. Por alguma razão, contudo, o movimento sindical nunca instituiu um fundo de greve, que pudesse ajudar a suportar lutas prolongadas, e tem consumido as quotizações no emprego duma chusma infindável de burocratas e de quadros partidários, aliviando as contas do partido. O seu horizonte nunca foi a defesa consequente dos interesses económicos dos trabalhadores. O seu lema parece ser “de vitória em vitória até à derrota final”.

Daí que a acusação de “obreirismo”, seja lá o que for que o termo designe, formulada por Jorge Nascimento Fernandes ao PCP me pareça totalmente infundada. O PCP, de há muito, é um partido pequeno-burguês reformista radical, “anti-monopolista e anti-imperialista”, pretendendo representar simultaneamente operários e outros trabalhadores, artesãos, agricultores e comerciantes, quadros, intelectuais e pequenos e médios patrões, e outros que aspiram a sê-lo. A sua linha política protestativa, clamando contra as “políticas de direita” e com a tónica na defesa dos interesses dos trabalhadores, é por isso deveras contraditória, como contraditórios são os interesses das classes e categorias sociais que alberga ou que afirma pretender defender. Podendo ser muitas coisas, nem chega ao economicismo, à defesa consequente dos interesses económicos dos trabalhadores, quanto mais ao que se queira designar por obreirismo. E se o PCP se transformasse num partido do trabalho, num partido que se pudesse dizer obreirista, abandonando o mito da missão histórica do proletariado e os demais da profecia marxista, a que diz continuar apegado; deixando de representar simultaneamente trabalhadores assalariados e pequenos e médios capitalistas que os exploram; largando a ridícula pretensão da “construção” do socialismo e do comunismo, que desde sempre se resumiu a simples liturgia retórica e que depois do abandono de qualquer referência à “revolução socialista proletária” não passa de hipócrita caricatura; substituindo o discurso justicialista dos pobres contra os ricos, baseado no ressentimento e inconsequente, pela luta económica e política a sério dos trabalhadores por uma melhor repartição do produto social; e reconhecendo que os vícios organizativos centralistas configuram uma autêntica ditadura do Comité Central, seria talvez um acontecimento importante para a vida política portuguesa.



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PCP: O DRAMA QUE CALHOU EM SORTE
À CLASSE OPERÁRIA



José Manuel Correia



Se até à chamada reorganização de 1941 o PCP era um partido operário com uma linha política oportunista que tinha como raízes a debilidade ideológica e política da direcção e das escassas dezenas de militantes, com a reorganização e a direcção alternada do Júlio Fogaça e do Álvaro Cunhal, intelectuais de origem burguesa, o partido foi conhecendo uma profunda mudança. De partido operário com uma política oportunista, em que grassavam o agitativismo e o espontaneísmo, transformou-se num partido oportunista pequeno-burguês reformista radical para operários. Existindo num regime ditatorial, reestruturou-se como partido clandestino, e essa sua característica fê-lo ser confundido com um partido revolucionário. A sua linha política, contudo, nunca chegaria a sair do quadro do reformismo radical pequeno-burguês, da luta anti-fascista e da restauração da democracia burguesa plena. Só nos anos sessenta a sua estratégia passou a fazer referência à revolução socialista proletária, mas relegada para uma etapa posterior a uma “revolução democrática e nacional” cujo programa era apenas ligeiramente mais radical do que as políticas levadas a cabo pelos partidos social-democratas em muitos países europeus. A revolução socialista proletária vivia nas aspirações dos militantes operários, mas nunca residiu nas mentes do seu ideólogo e dos dirigentes máximos. Daí a contradição entre o radicalismo e o sectarismo por vezes manifestados por muitos militantes e o oportunismo reformista desde sempre patenteado pelos dirigentes. Ao contrário do que tem sido repetidamente afirmado, a linha política oportunista do PCP saído da chamada reorganização de 1941 não advém da adesão ao revisionismo moderno, a partir de 1956, mas de muito antes, do tempo em que a etapa da revolução social em Portugal foi designada por “primeira fase da revolução democrático-burguesa”.

Desde a sua fundação, em 1921, apesar da adesão ao Komintern, a Internacional Comunista (IC), em 1922, da realização do I Congresso, em 1923, sob a condução de Jules Humbert-Droz, um delegado da IC, e do II Congresso, em 1926, interrompido pelas notícias da eclosão do golpe de estado militar de 28 de Maio que instaurou a ditadura militar que o ilegalizou em 1927, e mesmo depois duma primeira Conferência de Reorganização, em 1929, que o salvou da extinção, levada a cabo por iniciativa de Bento Gonçalves, um operário arsenalista e sindicalista, ali eleito para uma direcção provisória, só muito lentamente o PCP passou a seguir alguns dos princípios leninistas de organização. A quase total ausência de cuidados conspirativos, em violação das normas leninistas — que o Bento Gonçalves, com a ajuda de José de Sousa (militante do partido e sindicalista), do brasileiro Júlio César Leitão (fundador e militante do Partido Comunista do Brasil, expulso do seu país por ser um “indesejável agitador comunista”) e do espanhol Manuel Preciado, bem se esforçara por implementar a partir da Reorganização de 1929, de que saira com Leitão e Preciado integrando o órgão de direcção provisório do partido — a grande actividade das polícias políticas (várias, naquele tempo) e a delação dos militantes presos, que perante a brutalidade policial não resistiam a denunciar os seus camaradas de partido e de outras organizações que ele dirigia, provocavam autênticas razias nas suas fileiras e quase paralisavam a sua acção política. A prisão dos membros do secretariado do partido, Bento Gonçalves (regressado havia pouco de Moscovo, onde participara no VII Congresso da IC), José de Sousa e Júlio Fogaça, em 1935, e a sua deportação e encarceramento no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, fez crescer entre os comunistas ali presos, membros da Organização dos Comunistas Presos no Tarrafal (OCPT) que haviam constituído, as suspeitas de infiltração policial nas fileiras do partido.

Após a segunda fuga da prisão, em 1938, de Francisco Paula de Oliveira Júnior (Pável), um jovem operário, também arsenalista como Bento, dirigente da FJCP (Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas) com Álvaro Cunhal e Francisco Ferreira (o Chico da CUF) e que passara a integrar o secretariado do partido, essas suspeitas agravaram-se, estendendo-se à IC, a qual deixou de reconhecer o partido como sua secção (SPIC) ainda nesse ano. Perante as razias que o esvaziavam e colocavam em risco a sua existência, obrigando-o a vegetar numa quase inacção (por exemplo, o jornal do partido, o Avante! não se publicava havia meses, pela descoberta pela polícia da única tipografia em que era impresso), na OCPT foi reconhecida a necessidade duma purga no partido, a começar pelos órgãos dirigentes. O iniciador desse processo de purga congeminado no Tarrafal foi o anterior dirigente do secretariado Júlio Fogaça, libertado daquele Campo de Concentração pela amnistia concedida pelo regime salazarista por altura das comemorações dos centenários, em 1940, assumido delfim do Bento Gonçalves, que continuava preso. Embarcado do Tarrafal em Janeiro de 1940, Fogaça trazia não só a incumbência de correr com a direcção existente e de expurgar o partido dos elementos mais duvidosos, como era ele próprio um dos acérrimos defensores da tese da infiltração policial. O processo, iniciado em Dezembro de 1940, teve muito pouco de edificante, exemplo dos métodos do vale tudo típicos dos comunistas, que não se coibiam de denegrir a honradez e a dedicação de dirigentes honestos e empenhados que com as deficiências de organização (nalguns casos ainda constituída por núcleos de zona de residência, em vez de por células de empresa) e a exiguidade de recursos materiais e humanos pouco ou nada podiam fazer em tempos de refluxo do movimento operário, de grande repressão policial e de complexidade da conjuntura política internacional.

No meio de intrigas, de questiúnculas pessoais e de uma intensa luta fratricida pelo poder, cheia de golpes baixos, de acusações infundadas e de ignominiosas calúnias contra o que restava duma direcção que mal ou bem procurava assegurar a existência duma organização moribunda devido aos duros golpes infligidos pelas polícias políticas e à difícil justificação do tratado de paz firmado entre a URSS e a Alemanha nazi em 1939 (o chamado “pacto germano-soviético”), que entre outras coisas permitia dividirem entre si parte da Europa, face à recusa dos poucos dirigentes que restavam activos — Francisco Sacavém e Vasco de Carvalho, porque Firminiano Cansado Gonçalves se afastara do secretariado e outros estavam presos, casos de Alberto Araújo, Francisco Miguel Duarte e Ludgero Pinto Basto, ou fugidos no exilio, caso de Pável, em Paris, ou resguardados na inactividade — em renunciarem aos cargos e em entregarem contactos com os militantes e os bens do partido, a actividade fraccionista desenvolvida por Fogaça e os seus apoiantes evoluiu para a cisão, levando à criação de um outro partido, realmente novo, clandestino, aparentemente, em tudo semelhante a um partido revolucionário e a um verdadeiro partido comunista. O novo partido demarcava-se do partido comunista existente, que vegetava na inacção, passando a designá-lo por “grupelho provocatório”, e em alternativa ao jornal Em frente!, que o velho partido passara a publicar devido às dificuldades em imprimir o Avante! com um mínimo de qualidade, começou a publicar o seu jornal com o velho título Avante! em Agosto de 1941. Desde então e durante uns anos existiram dois PCP e dois jornais Avante! (já que o velho partido retomaria o título) cujos cabeçalhos se distinguiam por uns poucos pormenores gráficos. Com a refundação, o novo partido esperava arrecadar o pecúlio dos vinte anos anteriores de acção política dos comunistas, de que se considerava o legítimo herdeiro, e ganhar o prestígio necessário para participar por direito próprio e com credibilidade na grande política, assim como reconquistar o reconhecimento da IC, que o velho partido perdera.

Definidas as relações de forças a favor das teses dos tarrafalistas, vencidas as ambiguidades, as indecisões e as hesitações iniciais, Cunhal — um jovem que integrava a direcção da FJCP e que colaborava com o secretariado do partido nos tempos de Ludgero Pinto Pinto Basto, de Francisco Miguel e de Carolina Loff da Fonseca, sujeito a uma breve pena de prisão em 1937-38, acabando por ser preso de novo, com Carolina, em Maio de 1940, incorporado depois compulsivamente na tropa, como soldado raso numa companhia disciplinar, em Penamacor, em Novembro de 1940, passado à disponibilidade dois ou três meses depois — optou pelo campo que lhe prometia os maiores êxitos pessoais, aderindo ao novo partido. Integrado no CC, foi destacado para a construção do partido na região norte, onde o velho partido fora devastado por levas e levas de prisões. Passado um ano, em 1942, o Júlio Fogaça foi de novo capturado, preso, condenado e mandado de volta para o Tarrafal. Ou a purga fora muito incompleta, ou os cuidados conspirativos ainda não se encontravam afinados ou as polícias políticas, entretanto unificadas como PVDE (Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado), tinham adquirido já um conhecimento que lhes ia permitindo continuarem a desbaratar o novo partido. Com a prisão do Fogaça, o Cunhal é chamado do Norte para integrar o secretariado do CC, colmatando a falta de um intelectual com capacidade para escrever os textos de informação interna e de propaganda. O novo PCP que o Cunhal organizava, continuando o trabalho do Fogaça, por um lado, procurava dotar-se de uma sólida estrutura clandestina, para poder existir sem os sobressaltos e as descontinuidades que as investidas da polícia política frequentemente provocavam, e, por outro, ligar-se à classe operária de forma orgânica, de modo a implantar-se na classe cujos interesses pretendia representar e a ter um exército militante disponível para as tarefas que a luta política de massas requeria. Dotando-se de um corpo profissionalizado de funcionários, apoiando-se numa rede de “casas de apoio” e em mais de uma tipografia clandestina, fortalecendo a ligação aos militantes e aos trabalhadores através da imprensa partidária, difundida por uma ampla rede de distribuição clandestina, tendo uma direcção estável e uma orientação política bem definida, implantando-se no seio da classe operária preparava-se para adquirir a capacidade que até então faltara ao velho partido para dirigir a luta de massas.

Até ao início dos anos quarenta o PCP tinha uma fraca implantação no operariado e nos seus sindicatos. A hegemonia dos anarquistas e o seu anti-comunismo inviabilizavam um sindicalismo unitário, e as suas concepções de um sindicalismo de ofício também não se adequavam aos tempos futuros. Estas razões, de certo modo, poderiam justificar a criação de sindicatos paralelos, ditos revolucionários. Em consonância com as orientações emanadas da IC, que então defendia a chamada linha de “classe contra classe”, o partido tentou a criação de sindicatos paralelos e a constituição de uma central sindical (a CIS-Comissão Inter-Sindical) alternativa à central sindical anarquista (a CGT-Confederação Geral do Trabalho). Esta orientação, que poderia ter sido adequada quando os sindicatos operários se encontravam sob o domínio dos partidos social-democratas e, no caso português, sob o domínio do anarco-sindicalismo, não teve o sucesso esperado. Na nova situação criada pelo fascismo, com a extinção compulsiva do movimento sindical independente e a criação obrigatória em sua substituição de sindicatos corporativos, integrados na orgânica do regime e dirigidos maioritariamente por gente da sua confiança, a velha concepção de sindicatos paralelos poderia mostrar-se aliciante, mas a repressão tornava-a impraticável. Os trabalhadores afastaram-se inicialmente dos sindicatos corporativos, mas de algum modo continuavam a necessitar deles, e a repressão fascista inviabilizava totalmente a criação de sindicatos paralelos, que teriam agora de ser clandestinos e que por esse facto nunca poderiam ser organizações de massas, como eram os verdadeiros sindicatos. O desprezo pelo trabalho nos sindicatos corporativos, por isso, constituía uma orientação ainda mais errada do que a anterior recusa de participar nos sindicatos anarquistas, e a pretensão de criar sindicatos paralelos revelou-se um completo fracasso.

Sem implantação significativa no operariado das fábricas e das oficinas, devido à forte influência do anarco-sindicalismo no movimento operário português, e sem qualquer influência no novo movimento sindical controlado pelo fascismo, a actividade do partido ficava-se pela agitação e pela propaganda, fazendo apelos à luta económica dos trabalhadores contra a carestia da vida, contra a falta de géneros e o seu racionamento, contra os despedimentos e o desemprego, denunciando a ditadura fascista e a repressão e clamando pela amnistia dos presos políticos e pela liberdade. A defesa da União Soviética (URSS) e, depois da agressão nazi, a denúncia do alinhamento do fascismo salazarista com as potências do Eixo, parecia ser a sua única conotação com o comunismo, para além da designação que usava. A luta pela conquista do poder político e a implantação da ditadura do proletariado não passavam de proclamações, não constituindo verdadeiros objectivos. Aliás, como viria a verificar-se, a revolução socialista proletária não constituiria objectivo do partido nem no curto nem no médio nem no longo prazo. Não pelas fragilidades do movimento operário português e do próprio partido, que sempre lutou com extremas dificuldades para ir existindo nas duras condições da clandestinidade e que por isso nunca ultrapassou a condição de pequeno partido, mas porque as concepções ideológicas e políticas por que se foi orientando tinham um cariz oportunista, com a tendência, que se consolidaria, para se situarem ainda mais à direita do que o rumo de direita que a IC, nas novas condições de ameaça do nazismo à URSS, passara a adoptar no seu VII Congresso, em 1935.

Orientando-se para o seio da classe operária, organizando os simpatizantes do comunismo e promovendo acordos para as lutas concretas com operários ainda adeptos do anarco-sindicalismo, mas desorganizados, e com outros simplesmente receosos da repressão e por isso afastados da política, aproveitando o crescendo do descontentamento operário e popular com os magros salários e com as duras condições de existência, agravadas pelo desemprego, pela falta de géneros e pelo seu racionamento, que levavam ao surgimento de greves espontâneas; voltando-se para os sindicatos corporativos, procurando influenciar trabalhadores honestos que existiam nalgumas direcções e propondo outras; passando a dar atenção aos problemas concretos e empunhando algumas das bandeiras da defesa dos interesses do pequeno campesinato pobre que ainda proliferava por quase todo o país; organizando o proletariado agrícola dos campos do sul, em poucos anos o partido aumentou o número de militantes e consolidou a sua nova organização, caminhando para se transformar num partido de implantação nacional. E quando a segunda guerra mundial entrou numa nova fase, com a contra ofensiva soviética, e a derrota do nazi-fascismo começava a tomar forma, procurando o regime fascista bandear-se para o lado dos aliados, merecendo por isso um certo repúdio, o partido beneficiou da onda de simpatia pelo comunismo que crescia entre a juventude, entre a intelectualidade progressista e entre a pequena-burguesia urbana mais esclarecida, fruto da propaganda dos sucessos do comunismo, dos feitos heróicos do povo russo e do contributo decisivo do Exército Vermelho para a reviravolta do curso da guerra. No imediato pós guerra, o PCP tinha aumentado a sua influência social, crescido em número de efectivos, alargado a sua organização e a imprensa partidária atingia a maior expansão. Estivesse o novo partido dotado duma linha política proletária revolucionária e viria certamente a tornar-se um caso muito sério na vida política portuguesa.

Falhadas as tentativas revolucionárias proletárias durante o período mais agudo da crise do capitalismo a seguir à primeira guerra mundial, devido às fragilidades demonstradas pelos novos partidos comunistas e à sua incapacidade para formularem e conduzirem adequadas políticas de alianças, e infrutífera que se mostrara a tentativa de realização da táctica da “frente única” operária, adoptada depois, visando subtrair a classe operária à influência dos partidos reformistas social-democratas — tomados por principais inimigos da revolução, porque defendiam os interesses da burguesia e faziam o jogo da reacção e do fascismo, e em conformidade eram tratados como social-fascistas — a IC definira como orientação do movimento comunista internacional a luta pela "frente popular", a constituir com os partidos e os movimentos social-democratas e, nalguns casos, também com os partidos burgueses radicais. Esta viragem estava marcadamente influenciada pela necessidade de encontrar uma nova plataforma de alianças políticas que no curto prazo pudesse constituir um instrumento de defesa da URSS face à ameaça do nazismo e do militarismo expansionista japonês. Transformar a luta revolucionária em luta anti-fascista, e assim tentar suster a ascensão vertiginosa do nazi-fascismo, constituía um objectivo táctico de curto prazo perfeitamente admissível.

A nova orientação da IC, contudo, não era uma mera inflexão táctica. Seria, de resto, muito pouco provável conquistar as boas graças dos partidos reformistas, até aí combatidos como sendo social-fascistas, apenas com recurso a uma táctica mais flexível. Constituía, claramente, uma viragem estratégica sem precedentes, na qual o objectivo da revolução proletária era abandonado e em seu lugar era erigido como objectivo estratégico dos partidos comunistas uma chamada “revolução democrático-popular”. Não era proclamado abertamente o abandono da revolução socialista proletária, já que a nova “revolução democrático-popular” era apresentada como constituindo uma primeira fase da revolução socialista. E era também afirmado que a passagem ao socialismo, que se seguiria, seria então efectivada por meios pacíficos, através da expropriação dos monopólios e dos latifúndios. Tratava-se, é claro, de meter a revolução socialista proletária na gaveta, em completa e descarada ruptura com o leninismo, que sempre encarara a defesa da URSS baseada na eclosão da revolução proletária nos restantes países da Europa e não na colaboração do proletariado com a burguesia. Como partido comunista internacional, a IC tinha sido criada precisamente para acelerar a eclosão da revolução proletária por esse mundo fora.

Com a ascensão do Cunhal à direcção do partido, a revolução social em Portugal passou a ser caracterizada como uma “revolução nacional libertadora, uma primeira fase da revolução democrático-burguesa” ou “revolução nacional-democrática”, como era indistintamente designada (informe de Duarte ao I Congresso Ilegal, 1943, Unidade da Nação Portuguesa na Luta pelo Pão, pela Liberdade e pela Independência), e o centro da luta política passou a ser orientado para a unidade anti-fascista, com a qual o partido procurava aliar-se com o que restava dos velhos partidos da 1.ª República, com social-democratas que formavam novos pequenos grupos e com outros democratas independentes que desenvolviam escassa actividade política e nem tinham qualquer representatividade entre as fracções da burguesia e da pequena-burguesia que pretendiam representar. O partido, inclusivamente, tomou a iniciativa de propor a criação do MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista) e participou activamente nas suas estruturas, e, depois, quando o MUD (Movimento de Unidade Democrática) foi lançado por outros não se coibiu de nele também participar, alargando, por sua iniciativa, o MUD à juventude (o MUD-Juvenil). Estas organizações unitárias, do tipo frentista, ao mesmo tempo, permitiam ao partido enquadrar a parte da intelectualidade simpatizante do comunismo que não aceitava a militância num partido clandestino e fracções da pequena-burguesia e da burguesia liberal que não dispunham de representação política. Era o modo como um pequeno partido — de facto, o único partido existente, para além do partido fascista União Nacional — que começara a estruturar-se melhor para existir na clandestinidade e a lançar as primeiras raízes organizativas no seio da classe operária nas fábricas e nas oficinas, traduzindo a mera simpatia para com o comunismo em compromisso para com o partido do proletariado, e que tivera o seu primeiro baptismo de fogo no apelo e na organização das greves de Julho-Agosto de 1943, procurava entrar também na grande política e afirmar-se como a corrente organizada mais importante da oposição ao fascismo salazarista.

Este modo de entrar na grande política, contudo, fazia-se à custa de concepções direitistas, ainda mais à direita do que as saídas do VII Congresso da IC. Não se tratava de encarar a luta pelo derrube do fascismo como uma primeira fase da luta pela revolução socialista proletária, uma variante de “revolução democrático-popular” à portuguesa, através da constituição duma “frente popular”, mas de transformá-la em objectivo central da luta política do partido. O panorama político português, à época, era desolador. O fascismo conseguira concertar grande parte da burguesia e arregimentar quase totalmente o campesinato conservador e parte substancial da pequena-burguesia, assim como mostrava capacidade para neutralizar, de forma intermitente, é certo, o que restava destas classes sociais. Não existia, também, qualquer outra força política organizada no movimento operário com cujas bases se pudesse realizar a frente única operária, visto o anarco-sindicalismo ter praticamente desaparecido como corrente organizada. O pouco que existia na oposição ao fascismo eram restos dos velhos partidários republicanos, virados para a conspiração e o putschismo, pequenos grupos de gente que se apresentava como social-democrata e personalidades democráticas dispersas, com actividade política pouco mais do que irrelevante. Neste contexto, a política de alianças teria de ser realizada através de acordos de cúpula em novas instituições ou movimentos, cuja actividade se reduziria aos períodos eleitorais e a pouco mais, porque aquele tipo de pessoas dificilmente aceitaria trabalhar em organizações clandestinas. Trabalhos ciclópicos, talvez avassaladores para um pequeno partido acabado de renascer, existindo nas duras condições da clandestinidade e sujeito a forte repressão policial. A situação tinha uma grande vantagem: o partido não se confrontava com concorrentes à altura, susceptíveis de lhe disputarem a hegemonia na influência e na direcção das massas operárias e populares.

Para além das grandes dificuldades organizativas e logísticas e do enorme trabalho político que existia por fazer, o PCP deparava-se com um problema bem mais grave: estava dotado duma linha política de direita, resultante duma deformação grosseira do marxismo-leninismo. Segundo as concepções políticas do Cunhal, o jovem quadro dirigente que ascendia à condição de ideólogo do novo partido, além de atrasado no desenvolvimento capitalista o país mostrava ainda relações feudais no campo e encontrava-se dominado pelos grandes monopolistas, em estreita ligação com o capital estrangeiro, e pelos latifundiários, e era oprimido pelo imperialismo, ao mesmo tempo que oprimia os povos das colónias. Antes de se pensar em qualquer revolução socialista proletária ou sequer nessa nova “revolução democrático-popular”, faltava cumprir em Portugal a revolução democrático-burguesa que varresse as relações feudais, que libertasse a nação portuguesa da exploração dos monopolistas e dos latifundiários e da opressão do imperialismo e que levasse o Estado português a deixar de oprimir as nações das suas colónias. Um qualquer ideólogo burguês radical esclarecido não o diria melhor. A revolução portuguesa, portanto, seria uma “revolução nacional libertadora” ou “nacional-democrática”, como também era designada. Tão pouco seria a última fase da revolução democrático-burguesa, a que mesmo assim não pudéssemos escapar, mas apenas e só “uma primeira fase da revolução democrático-burguesa”. Nela, o proletariado teria como aliados o campesinato (que incluía o campesinato pobre, proprietário de pequenas parcelas, os seareiros e os rendeiros, e, estranhamente, também o proletariado agrícola ou assalariados rurais do Ribatejo e do Alentejo, como se houvesse uma distinção de interesses de classe entre esta parte do proletariado e a do proletariado industrial), a pequena-burguesia e, em consonância com uma tal revolução, até “certas camadas da média burguesia liberal e mesmo da grande burguesia”, além dos povos das colónias. Através destas concepções estratégicas, que falsificavam as características determinantes da realidade económica e política e a etapa em que se encontrava a revolução social em Portugal, estavam criadas as condições para que o partido do proletariado abdicasse totalmente dos interesses autónomos da classe operária e se colocasse a reboque dos interesses da burguesia liberal, funcionando como tropa de choque para o derrube do fascismo e para a restauração da democracia burguesa.

Perdido de vista o objectivo classista da revolução socialista proletária e mostrando-se difíceis e infrutíferas as alianças esporádicas com a burguesia liberal tendo em vista o eclodir da insurreição ou “levantamento nacional libertador” que derrubaria o fascismo salazarista, a política de “unidade de todos os portugueses honrados” abria as portas para guinadas ainda mais à direita. A Organização Comunista Prisional do Tarrafal (OCPT) — onde a par do Bento Gonçalves pontificara o Júlio Fogaça, um empregado bancário (real ou fictício, mas assim designado pela polícia política) oriundo duma abastada família da burguesia rural, que integrara o Secretariado do partido com o Bento e o José de Sousa até à prisão dos três em Novembro de 1935, e que em 1940, após a sua libertação daquele campo de concentração, iniciara o trabalho fraccionista que levaria à cisão e à constituição do novo partido — defendia posições ainda mais à direita, próximas do browderismo, com a linha da “política de transição”, que através de um governo com a participação de fascistas descontentes e de correntes moderadas levasse a cabo um programa mínimo de transição do fascismo para a democracia burguesa. E um outro quadro intelectual, membro do Comité Central (CC), Fernando Piteira Santos, com simpatias pelo putschismo, era não só um browderista convicto, bramando contra o marxismo petrificado, como chegava a pôr em causa a necessidade e as potencialidades da própria luta clandestina e a existência autónoma do partido. No final da guerra, as posições classistas proletárias não tinham qualquer expressão no partido, que além do mais deixara de ser um partido maioritariamente constituído por operários, se é que alguma vez o fora.

Os grandes dirigentes operários, ou tidos como tal, devido à pouca informação sobre a história do partido disponível no tempo do fascismo, o José Gregório e o Militão Bessa Ribeiro, não mostravam qualquer capacidade para defender uma política verdadeiramente proletária. A vida não permitira ao Gregório, um operário vidreiro pouco mais do que analfabeto, adquirir uma sólida formação marxista-leninista (apesar da sua passagem pela escola de quadros da IC, em Moscovo, e pelo Socorro Vermelho Internacional, em Espanha, durante a guerra civil), e o Militão, um pouco mais politizado, vinha do Tarrafal a defender a “política de transição” pacífica. Os restantes jovens quadros operários da direcção — ou assim designados, porque, por exemplo, o Manuel Guedes, do Secretariado do CC, fora anteriormente grumete, e o Pires Jorge, um pouco mais velho, tinha sido sargento-músico da Armada e depois taxista — atolavam-se no tarefismo que a construção do partido exigia, sem tempo para pensarem seriamente na linha política. Existira em tempos algum entusiasmo sobre as capacidades do movimento grevista para se transformar em movimento insurreccional, nomeadamente, por parte do Alfredo Diniz, um jovem quadro operário metalúrgico da construção naval, mas também ele não questionava o carácter de classe da revolução que essa hipotética insurreição serviria. O fiasco das greves de 8 e 9 de Maio de 1944, promovidas pelo partido e em que ele desempenhara papel de direcção, depressa lhe refreou essas veleidades derivadas do seu entusiasmo juvenil. Integrado no CC, não teve tempo para comprovar as suas potencialidades como dirigente que pudesse vir a defender uma linha verdadeiramente proletária, acabando pouco depois assassinado pela polícia política.

A “política de transição” foi derrotada no II Congresso Ilegal, em 1946. Num extenso informe ao congresso (Duarte, O Caminho para o Derrubamento do Fascismo), o Cunhal moveu-lhe uma forte oposição, que não chegaria a constituir um combate demolidor. Passadas as ilusões com a queda próxima do fascismo salazarista alimentadas, primeiro, pela euforia insurreccional criada com a amplitude dos movimentos grevistas de 1942 a 1944, e, depois, pela vitória das “nações unidas” na guerra contra o nazi-fascismo e pela emergência da URSS com o estatuto de grande potência, a linha política do partido inflectia para a moderação, centrando-se na “unidade anti-fascista”, tornando-se, em vários aspectos, não muito diferente da “política de transição”. Afastava o perigo da liquidação do partido, que resultaria da sua descaracterização para melhor ser aceite pela restante oposição ao regime, como preconizavam os defensores da “política de transição”, ou da sua diluição no “movimento unitário anti-fascista”, como sugeriam os browderistas, e afirmava a justeza do envolvimento nos movimentos grevistas, também contra a opinião dos tarrafalistas; mas, em contrapartida, alargava a unidade anti-fascista até gente insuspeita de anti-fascismo, por exemplo, com a política de “mão estendida” aos legionários, de modo a tornar genuíno o empenhamento do partido na luta da "nação portuguesa" contra os "traidores à pátria" salazaristas. Como anteriormente, aquando da reorganização, de certo modo, a oposição visava assegurar o ingresso dos presos, na expectativa da sua libertação próxima, na direcção do partido e noutros cargos de responsabilidade e deitar alguma água na fervura do entusiasmo da juventude que agora o dirigia. A natureza das divergências e o facto de serem subscritas por quadros experimentados e anteriores dirigentes impunham que fossem discutidas em congresso. A prisão de membros do CC e o assassinato do Diniz, ocorridos em 1945, assim como os assinaláveis progressos organizativos do partido e do movimento unitário anti-fascista que de certo modo ele influenciava, contudo, acabariam por criar o clima de apaziguamento em que decorreu o congresso, com a participação de alguns dos regressados do Tarrafal e com a sua integração no CC.

Vem daí, talvez, a transformação em domínio sobre a direcção e o partido da forte influência que o Cunhal então já exercia. Defendendo uma linha oportunista, consubstanciada na “unidade da nação para a conquista da democracia”, que confirmava o derrube do fascismo e a restauração da democracia burguesa como objectivo central do partido e erigia a política de unidade anti-fascista no instrumento estratégico principal, apresentava-se como defensor da linha justa contra uma linha ainda mais oportunista. À falta de posições proletárias à sua esquerda, defrontando uma linha ultra oportunista, como era a da “política de transição”, as concepções políticas de direita defendidas pelo Cunhal adquiriam o estatuto de linha de esquerda. Uma linha tão moderada permitia ao partido penetrar cada vez mais nas chamadas classes trabalhadoras não operárias, as dos empregados e dos funcionários, e ganhar simpatia até mesmo entre fracções da pequena-burguesia mais próximas do proletariado, como eram, por exemplo, a dos artesãos e outros trabalhadores independentes e a dos pequenos patrões, assim como entre a intelectualidade e a juventude estudantil universitária, membros ou filhos da pequena-burguesia e da burguesia. Com ela, a composição de classe do partido também se alterava, e progressivamente o proletariado passava a constituir uma inexpressiva minoria.

Quando concepções políticas de direita se mostram infrutíferas, ou os seus defensores se encontram momentaneamente impedidos, o terreno fica propício para o florescimento de concepções ainda mais à direita. Basta que a um político oportunista, como era o Cunhal, suceda outro ainda mais oportunista, como era o Fogaça, e que a restante direcção e o conjunto do partido não disponham de capacidade ideológica e política para apontarem o carácter oportunista da linha seguida e para lhe moverem combate. Foi o que aconteceu no PCP depois da prisão do Cunhal, em 1949. Com o Cunhal na cadeia e o Fogaça de novo na direcção do partido, a “política de transição” transformou-se em linha política oficial, ganhando com o tempo novos desenvolvimentos, sob a forma de “solução pacífica do problema político português”. A adopção da nova orientação foi antecedida de um período de purgas internas, a seguir às prisões de 1949, e dois ou três quadros que haviam abandonado ou pretendiam abandonar o partido foram sumariamente executados, por precaução de novas denúncias e traições, revelador do clima de desconfiança maniqueísta que se tinha instalado e da arbitrariedade com que era decidida a vida ou a morte de militantes caídos em desgraça. Divergências entre os membros da direcção, em torno da ascensão do Fogaça ao Secretariado do CC em 1952 e das suas posições, e entre aquela e os quadros, brandindo acusações mútuas, dificultaram o trabalho colectivo e obrigaram ao abrandamento da actividade partidária. Nesse período de desorientação, que ficaria conhecido por “sectarismo”, a actividade do movimento de unidade anti-fascista, que sempre fora frágil, pelos receios do controlo que o partido permanentemente procurou exercer, paralisou. O MUNAF acabou por extinguir-se, e o Movimento Nacional Democrático (MND), criado para substituí-lo, não teve futuro. Hostilizados, muitos militantes e simpatizantes intelectuais abandonaram o partido ou afastaram-se das suas actividades. Simultaneamente, o partido isolava-se das massas e das organizações e das personalidades democráticas. A correcção do “sectarismo” levaria ao abandono da linha do “levantamento nacional”, substituída pela da “solução pacífica”, com a qual o partido procurava relançar a unidade anti-fascista.

O PCP sempre se caracterizara por uma extrema debilidade ideológica e política e por um fraquíssimo domínio da ideologia marxista-leninista, devido a uma existência orientada pelo praticismo e, depois da reorganização, também muito virada para o seu interior, usando de mil cuidados conspirativos para que os quadros não fossem detectados pela polícia. O constante tarefismo dos quadros, que não lhes deixava tempo para a formação ideológica e política; as reuniões muitas vezes reduzidas a breves encontros, não possibilitando grandes discussões; o analfabetismo ainda elevado entre o operariado, que não permitia o estudo; e a tradicional preguiça para a leitura por parte dos militantes operários alfabetizados relegavam o conhecimento do marxismo-leninismo para plano secundário. Mais este contrabando, que constituía uma evolução da “política de transição” e encontrava agora novos fundamentos na orientação do movimento comunista internacional para a “transição pacífica” do capitalismo para o socialismo, que começara a ser traçada pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) após o seu XX Congresso, realizado em Fevereiro de 1956, por isso, não suscitou qualquer reacção de oposição na direcção e no partido; antes pelo contrário, dissipada a surpresa das críticas a Estaline e ao culto da personalidade, a nova orientação política encontrou um bom acolhimento, espelhado nas resoluções aprovadas no V Congresso (III Ilegal) do partido, em 1957. Seria necessário o Cunhal sair da cadeia para que a nova linha viesse a ser caracterizada como “desvio de direita”. Na sua boa-fé, operários voluntariosos, mas pouco preparados até para as actividades mais comuns da agitação e da propaganda pelos meios escritos, abriram os órgãos de direcção a intelectuais burgueses que aproveitaram a oportunidade para se assenhorearem do partido e para o transformarem num partido pequeno-burguês reformista radical para operários. Com uma orientação centrada na política de unidade anti-fascista, este partido pequeno-burguês reformista radical para operários, que ainda mantinha uma maioria nominal de trabalhadores nos órgãos de direcção, caminhava para se transformar, com o tempo, num partido pequeno-burguês reformista radical com operários.

Passada a segunda guerra mundial, a “revolução democrático-popular” ganhou carta de alforria como etapa intermédia e como forma de alcançar o socialismo por via pacífica. A constituição de regimes de democracia-popular nalguns países da Europa de Leste ocupados pelo Exército Vermelho, onde os partidos comunistas locais, isolados ou aliados a outros pequenos partidos, conquistavam o poder democraticamente ou passavam a dominá-lo através de golpes de Estado (como fora o caso na Checoslováquia, em Fevereiro de 1948), assim o demonstrava. Constituído o “campo socialista”, a guerra-fria movida ao comunismo pelo imperialismo americano emergente crescia de agressividade. O lançamento do Plano Marshall, designação por que ficou conhecida a ajuda norte-americana à reconstrução europeia ao abrigo do Programa de Recuperação Europeia (PRE), e a criação da CIA, tendo em vista suster o avanço do comunismo, eram dois dos instrumentos da ofensiva imperialista. Procurando subtrair os países de democracia-popular às ajudas para a reconstrução proporcionadas pelo Plano Marshall, o Kominform (Bureau de Informação dos Partidos Comunistas e Operários, a nova estrutura criada em 1947 para suceder à IC, extinta em 1943) instituiu o Comecon, o acordo de assistência económica mútua, através do qual a União Soviética acudia às necessidades mais prementes dos países do “campo socialista”; e, temendo uma eventual agressão militar à URSS, lançou a bandeira da “luta pela paz”. Entretanto, necessitando conquistar as massas internas para as duras batalhas da reconstrução e do desenvolvimento de um país devastado pela guerra, o PCUS afrouxava a férrea ditadura dos anos precedentes e concedia novas autonomias aos gestores das empresas estatais.

A criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1949, a que o “campo socialista” mais tarde (em 1955) respondeu com o Tratado de Amizade, Cooperação e Assistência Mútua ou Pacto de Varsóvia; a invasão da Coreia do Sul e a intervenção militar americana e chinesa no conflito, em 1950; e o crescente radicalismo do Partido Comunista da China (PCC) após a vitória da revolução democrática e nacional no seu país, em 1949, prenunciava uma escalada da conflitualidade militar e uma nova corrida aos armamentos, que consumiria recursos vultuosos desviando-os de outros sectores mais carenciados de investimento. Neste quadro, falecido Estaline, nos primeiros dias de Março de 1953, a troika de colaboradores de longa data que lhe sucedeu, passada a dor genuína causada pela perda de um grande dirigente, tratou de começar a assacar-lhe as culpas pela difícil situação em que o país se encontrava. Três anos depois, no XX Congresso do PCUS, em sessão reservada aos membros do partido, vedada aos muitos convidados estrangeiros, irrompem a denúncia do “culto da personalidade” e as críticas a Estaline e ao estalinismo, transformados em bodes expiatórios que permitiam limpar o passado dos novos dirigentes. Distribuído a alguns dirigentes de partidos comunistas europeus de países do campo socialista, e, a partir da Polónia, rapidamente conhecido dos serviços secretos americanos, que pouco tempo depois o tornaram público pelo jornal The New York Times, e logo amplamente difundido pela imprensa de outros países ocidentais, o relatório apresentado por Khrushchov no XX Congresso caiu como uma bomba no movimento comunista internacional.

Dando continuidade a um certo desanuviamento nas relações internacionais, devido ao nascimento de novos Estados, oriundos de antigas colónias que alcançaram a independência, e à formação do movimento dos países não-alinhados (saído da Conferência Ásia-África que reuniu representantes de países na maioria antigas colónias britânicas e holandesas, realizada em Bandung, na Indonésia, em Abril de 1955), tendo a URSS adquirido alguma capacidade militar com o desenvolvimento de armamento nuclear é adoptada uma política de “coexistência pacífica” entre o comunismo e o capitalismo, para que tempos de paz pudessem permitir a recuperação da depauperada economia soviética. Para ser aceite como orientação credível, a “coexistência pacífica” não poderia ficar confinada à diplomacia, teria de estender-se ao movimento comunista internacional, dirigido pelo PCUS através das Conferências Internacionais dos Partidos Comunistas e Operários, a nova estrutura organizativa mais informal que entretanto substituíra o Kominform (extinto em 1956). Compreende-se, portanto, a sua transposição para a linha geral do movimento comunista internacional sob a forma de “transição pacífica” do capitalismo para o socialismo. A URSS, deste modo, mostrava ao mundo aceitar o jogo democrático da concorrência entre sistemas económico-sociais diferentes, e os partidos comunistas, abandonando as concepções marxistas-leninistas da revolução socialista proletária e da via insurreccional para a conquista do poder, integravam-se plenamente na vida política parlamentar das democracias burguesas.

A ascensão do nazi-fascismo produzira a “revolução democrático-popular” anti-fascista, anti-monopolista e anti-imperialista; a agressividade do imperialismo conduzira ao lançamento da “luta pela paz”; e o desanuviamento dera lugar à “coexistência pacífica”. Com a “coexistência pacífica” surge a “transição pacífica” e, com ela, uma nova revolução intermédia, a “revolução anti-monopolista e anti-imperialista”. Ambas as etapas intermédias entre a revolução burguesa e a revolução proletária teriam a virtude de efectuar a “transição pacífica” do capitalismo para o socialismo. Deste modo, o desvio oportunista de direita do VII Congresso da entretanto extinta IC era consolidado num desvio ainda mais à direita, no que ficou conhecido, e bem, por “revisionismo moderno” (por distinção em relação ao revisionismo bernesteiniano e kautskista do início do século). Quem conheça minimamente o marxismo-leninismo, a teoria e a prática da revolução proletária moderna, não pode deixar de caracterizar a teorização duma nova etapa da revolução entre a revolução burguesa e a revolução proletária — uma dita “revolução anti-monopolista e anti-imperialista”, baseada numa suposta comunhão de interesses entre o proletariado e camadas não monopolistas e nacionalistas da burguesia, com o consequente abandono das concepções insurreccionais e com a defesa duma “transição pacífica” para o socialismo — como despudorado revisionismo do marxismo e do leninismo. O realismo político dos interesses da URSS, uma vez mais, sobrepunha-se à ortodoxia ideológica, ou ao dogmatismo na interpretação da ortodoxia, como viria a ser designada a interpretação que dela faziam os opositores da adopção do novo contrabando oportunista, e os interesses do proletariado mundial eram relegados para plano secundário.

A derrota das potências do Eixo nazi-fascista não implicou a queda do fascismo salazarista, e a actividade expectante da oposição não conduziu ao seu derrube. Na nova política internacional da guerra-fria contra o comunismo o regime encontrou até um novo fôlego, passando a beneficiar do apoio anglo-americano e a funcionar como esteio do anti-comunismo na Península Ibérica (em detrimento do regime franquista, maculado pelo apoio que prestara às potências do Eixo), o que lhe permitiu fazer admitir o país na fundação da OTAN, em 1949, e na ONU (Organização das Nações Unidas), em 1955. Passada a euforia da ilusória promessa de realização de eleições livres em Novembro de 1945, logo desfeita, e da tolerância da existência por um curto período do MUD (entre 1945 e 1948), numa situação indefinida de ilegalidade consentida, e do MUD Juvenil (entre 1949 e 1957, mesmo após uma primeira declaração judicial de ilegalidade em 1955), só anos depois o salazarismo viria a deparar-se com forte contestação, aquando da candidatura do general Humberto Delgado, um dissidente do salazarismo, às eleições presidenciais de 1958. O destemor do candidato, afirmando pretender afastar o Salazar do poder caso fosse eleito, galvanizou toda a oposição ao regime e mostrou a existência dum amplo movimento de massas à escala nacional esperando por ser convenientemente enquadrado e mobilizado para a luta política. No rescaldo, em Março de 1959, é abortada uma conspiração maioritariamente civil, a chamada “revolta da Sé”, integrada por elementos católicos que haviam estado envolvidos na campanha eleitoral do Delgado, e o início da década de sessenta foi marcado pela instabilidade política, que alastrava à pequena-burguesia e às hostes do próprio regime.

Em Janeiro de 1961, um grupo de aventureiros portugueses e espanhóis, pertencentes a um chamado Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), de que fazia parte o ex-salazarista capitão Henrique Galvão, tomou de assalto em pleno Atlântico e desviou para o Brasil o paquete Santa Maria, operação caucionada depois pelo Delgado, exilado naquele país; em 4 de Fevereiro, tem lugar o assalto à prisão militar de Luanda, e em Março irrompe a insurreição nacionalista no norte de Angola, desencadeada pela União dos Povos de Angola (UPA), com o massacre de dezenas de colonos brancos (incluindo mulheres e crianças), dando início à guerra colonial; em Abril, o ministro da Defesa Nacional, general Júlio Botelho Moniz, com o beneplácito da diplomacia americana em Lisboa, tenta um golpe palaciano para o afastamento do Salazar (que ficaria conhecido por “abrilada”, no qual estava envolvido o subsecretário de estado do exército, o então tenente-coronel Costa Gomes, e que abortaria pela denúncia e mudança de campo do subsecretário de estado da aeronáutica, o então coronel Kaúlza de Arriaga); o Salazar sai reforçado do golpe abortado, assume a pasta da Defesa e decide a mobilização militar “rapidamente e em força” para Angola; na campanha das eleições para a Assembleia Nacional, em Novembro, é morto em escaramuças com a polícia, em Almada, o jovem operário corticeiro Cândido Capilé; em 10 de Dezembro, um avião da TAP é tomado em pleno voo, e dele são lançados sobre a capital panfletos anti-salazaristas, numa operação patrocinada pelo irrequieto Henrique Galvão; uma semana depois, em 18 de Dezembro, a União Indiana invade e ocupa os territórios sob administração portuguesa de Goa, Damão e Diu (o chamado Estado Português da Índia); e, na noite de passagem de ano, um grupo de aventureiros, novamente com o beneplácito do Delgado, tenta um golpe militar, muito mal alinhavado, procurando tomar de assalto o quartel de Beja. Entre Outubro de 1961 e Abril de 1962, ocorrem greves dispersas do operariado industrial da capital; em Março e Abril, a juventude universitária entra em greve às aulas e aos exames, em torno da reivindicação da autonomia das Universidades e da comemoração do Dia do Estudante, e é alvo da repressão policial; no 1.º de Maio, tem lugar uma ampla manifestação de protesto na baixa da capital, envolvendo grandes confrontos com a polícia e tiroteio, de que resultou um morto, manifestação que se repetiria, com muito menor amplitude, uma semana depois, no 8 de Maio; e ainda nesse mês ocorrem extensas lutas dos assalariados rurais do Alentejo pela jornada de trabalho de oito horas.

Durante a década de cinquenta, o PCP conheceu tempos difíceis, devido aos insucessos acumulados e aos duros golpes sucessivos infligidos pela polícia política nos meios da organização, nos militantes, no corpo de funcionários e nos órgãos de direcção, agravados por múltiplas traições, incluindo de quadros que recentemente tinham ascendido ao CC. Debilitado organicamente, o partido teve a sua actividade reduzida, isolando-se das massas; hostilizado por parte da oposição com a qual antes se coligara, que agora assumia declaradamente o seu anti-comunismo, perdeu capacidade de a liderar; e orientando-se por uma linha política ultra-oportunista não se mostrou à altura de aproveitar e de desenvolver as potencialidades que o movimento operário e popular evidenciava possuir. Naqueles anos de extremas dificuldades, o partido não só não apoiava o recurso a formas de luta violentas como se apegava à linha da “unidade de todos os portugueses honrados” (plasmada no informe de Fogaça ao V Congresso, Ramiro: A unidade das forças anti-salazaristas, factor decisivo para a libertação nacional), e ainda descia a posições mais oportunistas, apelando a uma jornada de luta pacífica para o afastamento do Salazar do poder. A política de “transição pacífica” do capitalismo para o socialismo, defendida abertamente pelo PCUS a partir de 1956, constituiu o terreno propício para a consolidação das anteriores concepções da “política de transição”, cujo principal mentor, o Júlio Fogaça, passara a integrar o Secretariado do CC em 1952. Nesta situação, desiludidos e desesperados, muitos militantes caíram na inactividade ou abandonaram o partido, enquanto outros mais radicais se envolveram, à sua revelia, na aventura militar do assalto ao quartel de Beja.

Após a fuga colectiva do Forte de Peniche, em 3 de Janeiro de 1960, a retoma do controlo do partido pelo Cunhal foi coisa rápida — facilitada pela destituição do Fogaça do Secretariado e pela sua posterior prisão em Agosto desse ano — começando com a reintegração no CC e no Secretariado, logo em Fevereiro, e culminando com a nomeação para Secretário-Geral (cargo até então inexistente no partido), em Março de 1961. Sob sua orientação, no curto período de um ano que se seguiu à fuga, o estilo de trabalho e a linha política do partido foram alvo de crítica e de rectificação. O estilo de trabalho adoptado desde 1955 foi designado por “anarco-liberal”, incidindo a rectificação no reforço do centralismo, na alteração de regras conspirativas e na transferência de quadros; e a linha política ultra oportunista da “solução pacífica do problema político português”, dos anos de 1956-59, foi designada por “desvio de direita”, sendo abertamente criticada (sem que os seus mentores, procurando demarcar-se dela atribuindo a principal responsabilidade ao Fogaça e passando a repudiá-la, sofressem qualquer sanção e fossem mantidos nos cargos). Apesar da revolução portuguesa continuar caracterizada como uma revolução democrático-burguesa, o “levantamento nacional libertador” que a levaria a cabo era entendido como um levantamento armado, com recurso à violência, que envolveria não só o proletariado e a sua vanguarda como forças da burguesia viradas para o putschismo, incluindo, por isso, uma parte das forças armadas. A anterior linha política do partido, desde que fora traçada no I Congresso Ilegal, em 1943, e reafirmada no II Congresso Ilegal, em 1946, não contemplava abertamente o derrube do fascismo por via pacífica. Como regime repressivo que se mantinha pela força, o fascismo só cairia pela força, era uma constatação elementar. Mas a concepção adoptada era suficientemente ambígua para permitir ao partido apoiar todas as soluções que visassem o derrube do fascismo — desde o golpe palaciano e o pronunciamento militar no interior do regime até ao putsch oposicionista — vincando embora que defendia como via própria o “levantamento nacional”, a “insurreição nacional”. Retomando a linha política que anteriormente traçara para o partido, caucionada por dois congressos, o Cunhal tinha uma base onde se apoiar para apelidar de “desvio de direita” a concepção da transição pacífica do fascismo para a democracia-burguesa consagrada pelo V Congresso (III Ilegal), em 1957.

Aos seus conselheiros soviéticos, agora a par da linha política do PCP pela convivência diária com o seu dirigente mais qualificado desde que se instalara em Moscovo (em Setembro de 1961), não deve ter passado despercebido o grave desvio do marxismo-leninismo que constituía a caracterização da revolução portuguesa como uma “revolução democrático-burguesa” (e como sua primeira fase, imagine-se!). Que raio! até as lutas de libertação nacional nas colónias passavam a ter um cunho socialista, e enquanto revoluções democráticas e nacionais integravam-se como variantes na chamada “revolução democrático-popular”. Em Portugal, um país capitalista, embora atrasado, integrado como membro fundador numa das duas uniões aduaneiras existentes na Europa (a EFTA; a outra era a CEE, resultante do alargamento da CECA, por sua vez resultante do alargamento da BENELUX), a luta anti-fascista não ultrapassava as fronteiras da democracia burguesa? Nem à “revolução democrático-popular” chegava? Alguma coisa estava errada. Isto não batia certo; nem batia certo com o desvio oportunista do VII Congresso da IC, de 1935, nem com a linha geral do movimento comunista internacional em que aquele se transformara, o designado revisionismo moderno. Pura e simplesmente, uma tal concepção estava à direita, era ainda mais oportunista. Apesar de tudo, também não deixava de surpreender toda a gente, indo contra a corrente dominante das soluções pacíficas, o partido defender um “levantamento nacional” e uma “insurreição nacional”, ainda que apenas nalgumas passagens sobre a estratégia em escassos documentos. Aqui ao lado, por exemplo, esgotada a sua experiência guerrilheira, o Partido Comunista de Espanha (PCE) não ia além duma solução pacífica para o derrube do franquismo.

Contra as veleidades e ilusões duma parte da burguesia liberal, o Cunhal — tal como alguns oficiais-superiores inicialmente apoiantes do salazarismo, depois descontentes com o poder pessoal do Salazar, reconvertidos em democratas conservadores e transformados em impenitentes conspiradores — apercebera-se de que o regime fascista se mantinha pelo apoio das forças armadas, que soubera conquistar. A sua queda, portanto, só aconteceria com a sublevação da tropa. Foi esta componente militar, necessária para o derrube do fascismo, que conduziu o Cunhal para a concepção do “levantamento nacional”, juntando-lhe uma componente civil, não restrita à participação dos tradicionais conspiradores reviralhistas, mas alargada ao envolvimento do movimento de massas, justificadora da sua qualidade de “nacional” e popular e do apoio do partido. O “levantamento nacional”, que o Cunhal qualificava, abusivamente, de “insurreição nacional”, porém, não tinha em vista a luta pelo socialismo, mas apenas a restauração da democracia burguesa. Para além da definição duma via insurreccional ou duma via pacífica, eram os objectivos da luta política anti-fascista e a etapa da revolução em que ela se inseria que estavam em causa. Esses objectivos, contudo, integravam-se numa inventada “primeira fase da revolução democrático-burguesa”, como se para o restabelecimento dum regime democrático-burguês não fosse suficiente uma “revolta” e implicasse a necessidade duma “revolução”, ou a existência dum regime ditatorial fascista colocasse a revolução portuguesa numa etapa diferente da revolução socialista proletária, ainda que tivesse de envolver a luta pelo socialismo noutra política de alianças, mais restritiva, e em maiores dificuldades. O socialismo, porém, não passava duma distante aspiração, não constituía objectivo da luta política concreta do partido durante o regime fascista, nem viria a constituir nunca.

O Cunhal está em Moscovo quando as divergências sino-soviéticas vão já avançadas e quando o PCC apelida de “revisionismo moderno” a linha geral da transição pacífica do capitalismo para o socialismo saída do XX Congresso do PCUS. Como político oportunista, defensor de concepções ainda mais à direita do que as do PCUS, facilmente o Cunhal adoptou os pontos de vista dos soviéticos. Entre 1961 e 1963, participa em vários eventos políticos e intervém nas disputas ideológicas e políticas então em curso, tomando posição contra as posições do PCC e do Partido do Trabalho da Albânia (PTA) e a favor da reabilitação da Liga dos Comunistas da Jugoslávia e do titismo. Oriundo dum partido onde não tinha havido qualquer luta ideológica e política de grande envergadura, nem mesmo contra o browderismo, o Cunhal adquire um repentino protagonismo no seio do movimento comunista internacional como homem de mão dos soviéticos. Os principais documentos da polémica que então se trava, e em que ele intervém, não são de imediato divulgados no interior da direcção nem do partido. É neste contexto das disputas pela liderança do movimento comunista internacional, com base na luta ideológica em torno das críticas a Estaline e das teses da “coexistência pacífica”, que surgem, em 1963, as divergências no seio da Comissão Executiva, órgão criado para dirigir o partido no interior do país quando três dos quatro membros de um novo Secretariado do CC estão no exterior (o Cunhal, em Moscovo, e o Sérgio Vilarigues e o Joaquim Gomes, em França), levantadas pelo Francisco Martins Rodrigues, então um jovem quadro, cooptado para membro suplente do CC em Maio de 1961, depois da fuga colectiva da prisão de Peniche, em que participou, e, em Janeiro do ano seguinte, promovido a membro efectivo para integrar aquele órgão de direcção juntamente com o Alexandre Castanheira e o Blanqui Teixeira (o único dos seus três membros pertencente ao Secretariado).

As críticas formuladas pelo Rodrigues, centrando-se no abandono da luta armada e da via insurreccional para o derrube do fascismo, sofriam a influência da propaganda chinesa, de que teria alguns ecos. As críticas eram justas, mas não atacavam o essencial, e nesse sentido falhavam o alvo e eram insuficientes. Depois da correcção do “desvio de direita”, o partido voltara a defender o “levantamento nacional libertador”, com recurso à “insurreição nacional”, que envolveria, naturalmente, a luta armada. Não embarcava era nas diversas formas do aventureirismo, fosse o putschismo, que sempre tinha caracterizado o reviralhismo, fossem as ilusões fanfarroneiras de transformação das greves em simulacros de insurreições quando não estavam reunidas as condições de crise geral que o Cunhal definira para o “levantamento nacional libertador”, fossem as novas concepções, então em voga, do guerrilheirismo castrista, ou do que depois veio a ser o foquismo guevarista, as quais começavam a ganhar alguns adeptos no partido. Embora, na prática, fosse patente o abandono da via insurreccional, porque o partido não constituía os seus próprios destacamentos de combate nem os seus equivalentes do movimento unitário anti-fascista (os Grupos Anti-fascistas de Combate, GAC, anteriormente criados para actuarem como instrumentos da “insurreição nacional”, não passaram do papel, por falta de empenhamento do partido e porque assustavam a burguesia, tendo sido extintos há muito), as críticas do Rodrigues acerca do abandono da via insurreccional podiam ser facilmente refutadas, no plano formal, à conta do repúdio do aventureirismo (ainda que o Cunhal, condimentando-as, as tenha alcunhado de terrorismo). O desvio oportunista da linha política do PCP não residia, fundamentalmente, em questões de táctica, no abandono da luta armada para o derrube do fascismo quando as condições estivessem reunidas; residia, sim, em questões de estratégia e de programa, no abandono da luta pela revolução socialista proletária e na caracterização da luta anti-fascista como estando integrada numa “revolução nacional libertadora” ou “revolução nacional-democrática”, que constituiria nem tão pouco a última mas a primeira fase da revolução burguesa em Portugal.

As concepções do Francisco Martins Rodrigues baseavam-se em apreciações ligeiras e de certo modo eclécticas. Ele criticava o abandono da luta armada sem se aperceber de que para a restauração da democracia burguesa a luta armada não constituía o instrumento decisivo. Nesse aspecto, a concepção do Cunhal, deixando a porta aberta a todas as soluções, considerava-a um mero instrumento integrado numa táctica mais ampla e flexível. Além do mais, as suas críticas baseavam-se num optimismo excessivo, que sobrevalorizava a receptividade do movimento operário e popular à adopção de formas de luta mais radicais do que a greve reivindicativa e do que a manifestação pública de protesto. O Rodrigues confundia a predisposição de sectores avançados da classe operária da zona industrial da capital com a das massas operárias por esse país fora, e também não tinha em conta a insipiência do trabalho político entre o campesinato pobre (e as dificuldades com que o partido se debatia para desenvolvê-lo), nem a inexistência duma organização comunista significativa nas forças armadas (devido à fraca influência nas juventudes operária e camponesa, que constituíam a maioria dos soldados e dos marinheiros, e à extrema dificuldade com que o partido se defrontava para penetrar entre a oficialidade do quadro), nem a relação das forças em presença, nem a inexistência duma crise política geral ou de condições para que viesse a ocorrer no curto prazo, muito menos a ausência duma situação revolucionária ou sequer pré-revolucionária. Durante o regime fascista, por mais de uma vez, em greves acompanhadas de manifestações, sectores avançados da classe operária se tinham envolvido em pancadaria com a polícia, fartos de apenas apanharem, e esse fora o caso das greves de 1961-62, que atingiria o seu ponto alto na memorável jornada do 1.º de Maio de 62 na baixa da capital. O movimento grevista, contudo, não apresentava condições para se transformar em movimento insurreccional, porque esse clima mais radical não se alargava às grandes massas nem existia noutras regiões para além de Lisboa. Neste contexto, as suas concepções facilmente resvalavam para reduzir a luta armada a acções de sabotagem e a confrontos com a polícia levados a cabo por pequenos focos de guerrilha urbana, que teriam o condão de despertar a adesão das massas. É claro, tais concepções não passavam de puro aventureirismo guerrilheiro e não se enquadravam na concepção marxista-leninista da insurreição armada das grandes massas operárias.

Por muito apelativas que fossem as suas concepções para o derrube do fascismo através da luta armada, o Francisco Martins Rodrigues não encontrou quaisquer apoios para elas, nem enquanto esteve no partido, nem depois de o abandonar. O Cunhal edificara o partido como uma organização totalitária, que cuidava dos seus quadros e das suas famílias nas condições de adversidade, ainda que com os parcos recursos de que dispunha, e que exigia uma dedicação sem limites e uma fidelidade a toda a prova. O sectarismo, manifestado antes e depois do 25 de Abril de 1974, de que o PCP é frequentemente acusado, não é resultado de qualquer radicalismo político exacerbado, com o qual muitas vezes tem sido confundido, mas do fanatismo que os militantes devotam ao seu partido e da estrita obediência e do zelo (por vezes, do excesso de zelo) com que cumprem as ordens emanadas da hierarquia partidária. Num partido leninista, o centralismo democrático e o inerente dever de obediência às decisões da direcção são propícios para o desenvolvimento deste tipo de comportamentos; num partido caracterizado por um baixíssimo nível ideológico e político, como sempre foi o PCP, os militantes facilmente perdem a sua condição de homens livres e se transformam em meros servos, incapazes de pensarem pelas suas cabeças, ou temem ofenderem com as suas opiniões pessoais as do colectivo partidário, sempre lembradas como as únicas justas e correctas.

A constante exaltação do partido, ao qual os militantes deveriam entregar as suas vidas, de que o próprio Cunhal era o melhor exemplo presente, e a invocação dos deveres leninistas de obediência à linha oficial e às decisões da hierarquia, aliadas à débil formação ideológica marxista-leninista, dificilmente dariam azo ao surgimento de qualquer movimento de dissidência política no PCP nos tempos do fascismo. Se acaso surgisse, ainda mais dificilmente faria vencimento, tendo em conta o controlo do partido exercido pelo corpo de funcionários, por sua vez escolhido pela direcção e por ela distribuído pelos diversos organismos intermédios, e o culto da personalidade de que o Cunhal era alvo, como resultado do exemplo de dirigente devotado, da aura de mistério que pacientemente soubera criar acerca da sua pessoa, da grande capacidade de trabalho que sempre demonstrara e da fama de grande teórico que granjeara. O partido que existia, afinal, era em grande parte obra do Cunhal, era o seu partido, que a ele praticamente devia quase tudo, desde uma nova concepção organizativa, uma linha política claramente definida, a orientação do trabalho para uma permanente ligação às massas e às suas reivindicações concretas, até ao prestígio que já gozava, no país, entre a intelectualidade progressista e as personalidades democráticas que iam participando na vida política, assim como aquele que começara a usufruir no movimento comunista internacional.

Apesar do curto período de pouco mais de seis anos em que estivera na direcção do partido antes de ser preso, em 1949, a autoridade política do Cunhal era indiscutível, por isso nunca fora posta à prova. Por diversas vezes, no CC, e até no seu Secretariado, o órgão executivo, conviveram posições divergentes, embora restritas a apreciações sobre a acção do partido na conjuntura, sobre a organização e sobre os quadros. Lutas ideológicas e políticas internas de envergadura, no seio da direcção, são desconhecidas e eventualmente nunca aconteceram. Por alguma razão o Cunhal soube ir rodeando-se na direcção de um núcleo coeso e estável de admiradores e de seguidores fiéis. Expulsões e outras sanções graves só esporadicamente tiveram origem em divergências políticas de fundo, e raramente aconteceram enquanto ele dirigira o partido (pode-se apontar o caso do José de Sousa, antigo membro do Secretariado, na altura preso no Tarrafal, mas poucos mais). As muitas expulsões que foram ocorrendo ao longo dos anos, em geral, ficaram a dever-se a traições na polícia, comprovadas ou meramente suspeitadas; a ocultação de declarações prestadas sob sevícias e torturas, cujo desconhecimento punha em risco a segurança das instalações e dos quadros; ao não cumprimento de tarefas, por desleixo ou por desmotivação, e a não prestação de contas dos fundos e bens do partido; a reiterada quebra das regras conspirativas, levantando suspeitas de provocação; a questões de carácter ou de personalidade, geradoras de tricas e de questiúnculas pessoais, perturbando o funcionamento dos organismos; assim como a disputas afectivas e passionais, derivadas do enclausuramento e do clima claustrofóbico da vida na clandestinidade, propiciadas pelo pequeno número de mulheres existente na organização e pela frequente mudança de parceiros a que a transferência de sector ou a prisão de quadros obrigava, que interferiam no trabalho partidário. Até o "afastamento" (eufemismo com que eram designadas as suspensões por tempo indeterminado e as expulsões arbitrárias, que não resultavam de decisões conhecidas do CC) do Júlio Fogaça, o iniciador da reorganização de 1941 e o dirigente que rivalizava em dedicação e em qualidades intelectuais com o Cunhal, fora motivado, ao que se dizia, mais pela violação de regras de segurança conspirativa nos relacionamentos amorosos homossexuais em que se envolvia (que lhe valeram a acusação durante muito tempo sussurrada de “mau porte moral”, explicitada depois, aquando da formalização da sua expulsão das fileiras do partido, em 1961, como prática de “actos imorais”) do que pelas suas persistentes posições políticas de direita.

O levantamento de divergências por parte do Francisco Martins Rodrigues, portanto, constituiu um marco singular na história do PCP. Elas foram apresentadas como divergências de fundo em relação à linha política, mas inicialmente não tinham verdadeiramente essa dimensão. Havia descontentamento com a orientação do partido, é certo, mas sem a consciência fundada do desvio que a linha política representava em relação ao marxismo-leninismo, constituindo mais um eco das críticas do PCC ao PCUS e a sua transposição para a vida interna do PCP do que outra coisa. O desenvolvimento daquelas críticas, pouco depois do seu abandono, levá-lo-ia a uma melhor caracterização da situação interna e a uma crítica mais fundamentada da linha política do partido. Nessa questão, não há muito a apontar de errado às críticas do Rodrigues, que assumiram então a condição duma denúncia pioneira do carácter oportunista das concepções políticas do Cunhal. As insuficiências das suas críticas residem muito mais nas alternativas que apresentava. Desde logo, em relação à etapa em que se encontraria a revolução portuguesa, que ele caracterizou inicialmente como uma ambígua “revolução popular” ou “revolução democrático-popular”, caminhando depois para a sua melhor definição como uma primeira fase da revolução socialista proletária, em quase tudo semelhante à concepção saída do VII Congresso da IC, assim como em relação à apreciação da situação política e às prioridades do trabalho partidário.

Designando a aliança operário-camponesa como a política de alianças fundamental para os interesses do proletariado, ele criticava a ausência de trabalho do partido entre o campesinato pobre, mas não compreendia as dificuldades do relacionamento directo dos comunistas com essa camada social, na ausência de organizações políticas que a representassem, e não aceitava que se tomassem como seus interlocutores apenas a média burguesia proprietária rural, uma das suas exploradoras. Conhecedor dos anseios e das reivindicações do campesinato, através das informações oriundas de alguns desses proprietários, membros ou simpatizantes do partido na qualidade de profissionais liberais, e dos contactos que estabelecia com outros nos órgãos políticos do movimento unitário anti-fascista, ou que lhe chegavam por outras vias, o partido não dispunha de meios para cativar a simpatia da fracção mais pobre do campesinato se não pela exploração das contradições dos seus interesses com os dos proprietários rurais e os das burguesias industrial e financeira, usando-as na defesa das suas reivindicações e no apoio às suas lutas concretas espontâneas, o que fazia com maior ou menor sucesso pela agitação e pela propaganda na sua imprensa. Na ausência duma sua representação política, o partido influenciava-o, onde era possível, pela proximidade dos seus interesses com os dos jornaleiros e os do proletariado agrícola, e, no sul, também pelo contacto e pelo convívio entre estes proletários e aqueles não proletários, mas, para além do apoio conjuntural e das promessas dos benefícios que lhe adviriam da revolução, não lhe cabia inventar organizações para representarem aqueles interesses. O Rodrigues, porém, não apontava alternativas exequíveis para além da retórica dos desejos. As suas propostas, aliás, pouco diferiam das do partido.

Em relação à realização da frente única operária, o Rodrigues também apresentava alternativas incorrectas. Naquela época, os trabalhadores procuravam o apoio dos sindicatos corporativos para a resolução de muitos problemas práticos, e algumas direcções eram constituídas por trabalhadores honestos. Desde os anos quarenta, o partido procurara trabalhar nos sindicatos, ainda que com pouco sucesso, e fazia da luta pela eleição de direcções representativas dos trabalhadores um objectivo concreto. Na nova situação dos anos sessenta, fermentavam as condições para se intensificarem as contradições entre as direcções vendidas ao patronato e ao corporativismo fascista e os trabalhadores, e essa constituía uma importante frente a desenvolver para alargar a luta reivindicativa às mais amplas massas. Ao contrário desta perspectiva, o Rodrigues defendia o abandono do trabalho nos sindicatos corporativos e a criação de sindicatos paralelos clandestinos, revolucionários, que quando muito podiam colher a adesão de operários simpatizantes do comunismo, mas não possibilitavam o alargamento da influência do partido às grandes massas operárias. Não assimilara o insucesso que uma tal orientação, já adoptada nos anos trinta, se revelara na prática. Privilegiando as acções armadas de pequenos grupos, de certo modo menosprezava o desenvolvimento do trabalho nas múltiplas e variadas organizações do movimento de massas, conjugando as formas de luta legais com as semi-legais e com as ilegais, partindo da iniciativa e da coordenação de militantes na legalidade e sob a direcção da organização clandestina, em torno de objectivos concretos diversificados, que tanto tinham ajudado o partido a existir, lançando raízes no movimento operário e conquistando simpatia entre as massas populares. Estas concepções ilustravam sobejamente não só o eclectismo como a fragilidade das suas críticas.

O mais grave das concepções do Rodrigues, porém, residia no plano ideológico, com a adopção acrítica da caracterização da etapa da revolução portuguesa como “revolução democrático-popular”, anti-monopolista e anti-imperialista, só porque o partido já a teria defendido em 1954 (o que parece não se confirmar, porque no projecto de Programa então posto à discussão é referida uma Revolução Democrática de Libertação Nacional) e porque correspondia a uma antiga orientação da IC. Nessa época, ele não se apercebia do carácter oportunista da chamada “revolução democrático-popular”, e quando a adoptou nem tão pouco a expurgou da concepção ultra-oportunista da passagem pacífica da democracia popular para o socialismo. Por outro lado, enquanto conferia a esta “revolução democrático-popular” uma política de alianças mais restritiva, própria da revolução socialista proletária, ao mesmo tempo, atribuía-lhe alguns objectivos recuados, meramente democrático-radicais. A ambiguidade ideológica era por demais evidente, nada de valor continha de original e não ia além da adopção, no plano interno, da defesa das posições veiculadas pelo PCC nas suas críticas ao PCUS na disputa pela liderança do movimento comunista internacional. As suas propostas políticas caracterizavam-se pelo radicalismo idealista, que confundia os desejos com as reais capacidades dos comunistas, organizados num pequeno partido, para dinamizarem e liderarem o movimento operário e popular.

O afã radical, a pressa e a falta de quadros comunistas levá-lo-iam à criação da Frente de Acção Popular (FAP), um simulacro de um pequeno partido frentista, para levar a cabo a aventura guevarista da “revolução popular” com que sonhava, antes mesmo da constituição de um novo partido comunista revolucionário. À míngua de quadros, a organização dos comunistas ficou reduzida a um pequeno Comité Marxista-Leninista Português (CMLP), constituído por pouco mais de uma dúzia de gatos-pingados que se arrastavam na imigração, em França. A FAP foi desbaratada pela polícia política quando os seus dirigentes procuravam aliciar os primeiros militantes no país e tentavam arranjar pontos de apoio, em 1965, e a aventura guerrilheira terminou praticamente antes mesmo de ter começado, com a detonação de um petardo à porta de uma esquadra de polícia. Decapitado dos seus dirigentes, presos no rescaldo do assassinato que cometeram de um informador da PIDE infiltrado, e com a prisão de grande parte das suas poucas dezenas de militantes, delatada na polícia pelos dirigentes, e com os restantes, receosos, a mergulharem na inactividade ou a escaparem para o exílio, o CMLP navegaria infrutiferamente, na imigração, à procura dos meios para se transformar num verdadeiro partido comunista, tendo vindo a originar, directa ou indirectamente, a corrente do grupismo esquerdista marxista-leninista-maoista constituída a partir dos anos setenta.

A oposição esquerdista acabou por funcionar como pretexto para a correcção do desvio ultra-oportunista que as concepções da luta anti-fascista como parte integrante da revolução democrático-burguesa representavam. Confrontado com uma crítica pela esquerda, que certamente apontava também os receios de que o partido abandonara a luta pela revolução socialista proletária, o Cunhal, eventualmente ajudado pelos seus conselheiros soviéticos, fez uma inflexão para a esquerda. O meio utilizado foi o seu informe Rumo à Vitória, As Tarefas do Partido na Revolução Democrática e Nacional, apresentado ao CC, em Abril de 1964, no âmbito dos trabalhos preparatórios dum próximo Congresso. Desse relatório viria a sair o novo programa do partido, tido por aprovado no VI Congresso (IV Ilegal), realizado em Setembro de 1965, em Kiev, com a presença duma trintena de quadros escolhidos pela direcção. A “revolução nacional libertadora” ou “revolução nacional-democrática” era por fim abandonada, e em seu lugar surgia uma “revolução democrática e nacional”. Sem que resultasse de qualquer análise consistente da realidade social e política, a nova etapa da revolução era definida como uma “revolução anti-monopolista, anti-latifundista e anti-imperialista”, nem anti-capitalista nem anti-feudal, nem uma revolução proletária nem também uma revolução democrático-burguesa, ainda uma revolução democrática, mas uma “revolução popular”. Uma etapa da revolução tida como apropriada para a época do domínio mundial do imperialismo, que tomava como inimigos principais o capital monopolista e o imperialismo seu aliado e os latifundiários, e que através dum ambicioso programa de expropriações e de nacionalizações abriria o caminho para a revolução socialista proletária, da qual era parte constitutiva.

A etapa da revolução, porém, não era definida em função das relações de produção dominantes, da contradição principal que as caracterizava e dos interesses das classes sociais que as protagonizavam. Constituía uma ideia previamente concebida, sem qualquer fundamentação, a não ser a sua implícita coerência com a linha da “revolução anti-monopolista e anti-imperialista”. Depois, era justificada identificando como inimigo principal não a classe social dominante, mas a sua fracção que deteria o poder e que congregaria contra si o maior número de classes e de camadas sociais; não em função dos objectivos que desbloqueariam o desenvolvimento económico e social, mas em função daqueles que seriam susceptíveis de colherem o maior número de aliados. A política dos pequenos passos e das amplas alianças, própria da táctica para ganhar batalhas, era transposta para a estratégia, que deveria ser concebida para ganhar a guerra. Para poder ser credível, esta etapa da revolução continha, à mistura, um cunho de radicalidade, consubstanciado num extenso e profundo programa de expropriações, de nacionalizações e de reforma agrária, muito dificilmente aceitável pela média burguesia e por largas fracções da pequena-burguesia, de realização só possível no quadro da revolução socialista proletária. Uma revolução que contém no seu programa objectivos que transformam presumíveis aliados em inimigos declarados está condenada à partida e não passa duma imaginária revolução.

Assim acontecia com a “revolução democrática e nacional”. Se fosse expurgada da sua componente mais radical, que tendo em conta a política de alianças definida constituía um obstáculo intransponível e lhe ditava a sua impossibilidade, a nova revolução ficaria confinada à restauração da democracia burguesa e à descolonização, objectivos plenamente aceitáveis por todos os apontados aliados. A revolução socialista proletária bem poderia esperar, continuando tão distante como dantes, já que constituía uma guerra que o Cunhal não se mostrava disposto a travar. A ironia resultante desta nova concepção da revolução portuguesa é a de que com ela o Cunhal procurava sanar o que estivera na origem duma parte das críticas, precisamente a de que o partido abandonara a luta pela revolução socialista proletária. Para compor o ramalhete, tal como a revolução mudava no nome, também o “levantamento” e a “insurreição” sofriam ligeiros ajustamentos na designação. O “levantamento nacional libertador” e a “insurreição nacional armada”, próprios duma revolução “nacional-libertadora” ou “nacional-democrática”, eram por isso abandonados, dando lugar a um “levantamento popular armado” e a uma “insurreição popular armada”, adequados a uma “revolução popular”. A partir de então, a linguagem do partido mudava ligeiramente, aqui e além polvilhada de referências ao marxismo-leninismo e condimentada com citações do Lenine, acompanhando a evolução ideológica do Cunhal e as novas tarefas que passara a desempenhar no seio do movimento comunista internacional como ajudante dos seus conselheiros soviéticos.

A nova concepção denotava uma certa evolução ideológica, um maior amadurecimento das ideias do Cunhal em relação às suas concepções enquanto jovem dirigente do partido, vinte e um anos atrás, o que não admira. A estadia na União Soviética permitira-lhe recuperar, no plano ideológico, num curto período, os longos anos passados na cadeia, durante os quais fora impedido de participar na luta política nacional e de adquirir um conhecimento aprofundado das transformações ideológicas e políticas que ocorriam no movimento comunista internacional. As concepções da “coexistência pacífica” entre sistemas económico-sociais diferentes e da “transição pacífica” do capitalismo para o socialismo tinham-se reflectido na teorização duma “revolução anti-monopolista e anti-imperialista”, apresentada como antecessora necessária da revolução socialista proletária na situação de domínio mundial do imperialismo, mesmo nos países desenvolvidos, levada a cabo pelo proletariado, sob a direcção do seu partido revolucionário, tendo como aliados as classes e camadas não monopolistas do povo. Vendo bem, uma revolução de quase todo o povo, deixando de fora apenas as fracções monopolista e latifundiária da burguesia, como se a contradição entre o proletariado e a burguesia tivesse desaparecido como contradição principal. Tais concepções não constituíam uma genuína novidade, já existiam mesmo no tempo em que o Cunhal era jovem, oriundas do VII Congresso da IC. Agora, cristalizadas, tinham uma fundamentação mais elaborada, e de desvio oportunista transformaram-se em desvio revisionista do marxismo-leninismo. Constituíam, além do mais, um fundamento teórico inestimável para o Cunhal poder continuar a defender a linha política oportunista centrada na unidade anti-fascista em que o partido desde sempre se empenhara.

Reconhecendo o desenvolvimento capitalista nos campos e a existência dum extenso proletariado agrícola, em 1943, o Cunhal usou as relações de produção semi-feudais que ainda subsistiam nalgumas regiões do país, embora apenas como resquícios (foros, parcerias e outras formas de menor submissão ao proprietário das terras), assim como o fraco nível do desenvolvimento das forças produtivas, para caracterizar a revolução portuguesa como anti-feudal, como “uma primeira fase da revolução democrático-burguesa”. Contraditoriamente, essa “revolução anti-feudal”, simultaneamente, era também uma “revolução anti-monopolista e anti-imperialista” e tinha como objectivos centrais a luta contra os monopolistas, os latifundiários e o imperialismo, tidos como suportes do regime fascista, além do abandono do colonialismo. A esta “revolução anti-feudal, anti-monopolista, anti-imperialista e anti-colonialista”, “primeira fase da revolução democrático-burguesa”, ele atribuiu a designação de “revolução nacional libertadora” ou “revolução nacional-democrática”. Os objectivos duma tal revolução, porém, passaram a constituir os objectivos da nova “revolução democrática e nacional”. As novas concepções do Cunhal, portanto, não se distinguiam muito das de antigamente, expurgadas dos erros grosseiros e das contradições que então apresentavam, que inexplicavelmente ninguém apontara — nomeadamente, a caracterização da revolução portuguesa como sendo a “primeira fase da revolução democrático-burguesa” — resumindo-se a passar a caracterizá-la como “revolução popular”.

Se anteriormente tivesse adoptado o desvio oportunista da “revolução democrático-popular”, introduzido pela IC, teria de referi-la como primeira fase ou parte integrante da revolução socialista proletária. Nessa época, isso não deixaria de ter reflexos nos militantes operários mais esclarecidos, fortalecendo as ideias insurreccionais que fervilhavam nas suas cabeças, e de afectar a linha da unidade anti-fascista. Então, a “revolução nacional-democrática” que inventara permitira-lhe defender uma linha política oportunista sem ter de invocar a luta pelo socialismo. Agora, a “revolução democrática e nacional”, por seu lado, permitia-lhe defender a mesma linha oportunista invocando que constituía uma etapa própria, e necessária, mas integrada na luta pelo socialismo, que preparava a etapa da revolução socialista proletária. Deste modo, alentava algumas consciências mais desanimadas e sossegava outras porventura mais exaltadas. Era também a concessão necessária às críticas pela esquerda, com as quais nunca se vira confrontado antes, e a adaptação aos novos tempos em que a URSS construíra o socialismo e se preparava para entrar no comunismo, a sociedade de todo o povo. As suas novas concepções apenas passaram do erro de apreciação ou da deturpação intencional para um patamar superior, escorando-se no revisionismo do marxismo-leninismo que se implantara no movimento comunista internacional.

Enquadrada por um minucioso estudo sobre a realidade portuguesa, repleto de pormenores, como era timbre da meticulosidade do Cunhal, que fixada nas árvores o impedia de vislumbrar a floresta, esta nova “revolução democrática e nacional” foi acolhida como mais um seu contributo teórico original da maior relevância. Rumo à Vitória vinha dar um novo alento a um partido que até aí, em mais de vinte anos de luta anti-fascista, acumulara insucessos políticos atrás de insucessos. Passando o socialismo a fazer parte dos objectivos expressos do partido, como etapa seguinte, e não apenas como longínquo objectivo, pressupunha-se que a nova linha seria para rumar à vitória no derrube do fascismo e na implantação do socialismo. Tal como antes ninguém se interrogara sobre as razões que levaram o partido a definir a revolução num país capitalista, embora atrasado, como “uma primeira fase da revolução democrático-burguesa”, também agora — vinte anos passados desde 1943, durante os quais tinham sido desenvolvidas as forças produtivas e se acentuara a concentração capitalista promovida pela ditadura fascista — ninguém se interrogava por que continuava a revolução portuguesa numa etapa intermédia entre a revolução burguesa e a revolução proletária, ainda que preparadora do terreno para a revolução socialista proletária. Do mesmo modo, também ninguém no partido se apercebeu de que esta nova revolução, tal como a anterior, constituía mais um contrabando revisionista do marxismo-leninismo, que diferia do desvio oportunista da “revolução democrático-popular” inventada no VII Congresso da IC apenas na designação “original” de “revolução democrática e nacional”. A grande originalidade teórica do Cunhal, portanto, residia naquele simples pormenor do nome com que baptizava a nova revolução. De “nacional-libertadora” ou “nacional-democrática”, a revolução passava agora a “democrática e nacional”.

O relatório apresentado pelo Cunhal ao VI Congresso em nome do CC (estranhamente intitulado Relatório da Actividade do CC) confirmou que o objectivo do partido, apesar da aparente mudança de linha política, continuava restringindo-se à luta anti-fascista, e que agora, como antigamente, o derrube do fascismo visava a implantação da democracia burguesa e pouco mais. Esse congresso consolidou o revisionismo do marxismo-leninismo como ideologia do partido, e confirmou o PCP como partido pequeno-burguês reformista radical, que aspirava a dirigir a “revolução anti-fascista, anti-monopolista e anti-imperialista”. Estas concepções ideológicas e políticas, que nada tinham a ver com o marxismo-leninismo, não suscitaram qualquer reacção de reprovação no partido. As críticas vieram de fora, inicialmente, do Francisco Martins Rodrigues — já afastado e, depois, expulso — e, mais tarde, também de pequenos grupos de dissidentes ou de jovens esquerdistas influenciados pelo maoismo. A tradicional debilidade da formação ideológica e política que continuava a caracterizar a direcção e os militantes tornava-os incapazes de questionarem a linha política adoptada. Os abandonos voluntários do partido, por isso, foram em geral causados pela desilusão com o comunismo ou por divergências com o apoio incondicional à política da URSS (o pacto germano-soviético, de 1939, as invasões da Hungria, de 1956, e da Checoslováquia, de 1968, por exemplo), divergências meramente políticas e conjunturais, assumidas por quadros e militantes intelectuais, de origem burguesa ou pequeno-burguesa. Apenas o caso do Francisco Martins Rodrigues teve por base divergências ideológicas e políticas de fundo. Além do mais, ninguém se sentia suficientemente preparado para questionar a nova linha ou tinha a ousadia de colocar em dúvida a autoridade que o Cunhal gozava como grande dirigente e ideólogo. Essa situação tornara o partido vulnerável e facilmente permeável a todo o tipo de contrabando ideológico e político que ele introduzira. Acontecera no passado, com a linha da “revolução nacional-libertadora” ou "revolução nacional-democrática", e acontecia novamente, com a linha da “revolução democrática e nacional”.

Tendo deixado a pátria do socialismo e fixado residência em Paris, em 1966, para mais fácil e atempadamente aceder às notícias oriundas do país e do mundo e comunicar com a estação de rádio que o partido passara a dispor desde 1962 na Roménia, a Rádio Portugal Livre, que controlava pessoalmente, o Cunhal apercebia-se das críticas de que a linha política do partido era alvo, oriundas de pequenos grupos de dissidentes constituídos entre a emigração intelectual. Num texto de crítica às posições daqueles grupos (Radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, de 1970), viria a terreiro justificar uma vez mais a etapa da “revolução democrática e nacional”. Era reafirmado o recurso à insurreição para o derrube da ditadura fascista, e a “revolução democrática e nacional” era caracterizada como “uma revolução profundamente popular”, cujos objectivos correspondiam “aos interesses imediatos das classes e camadas anti-monopolistas”, uma revolução democrática de novo tipo, diferente da revolução democrático-burguesa anti-feudal e própria da época do capitalismo monopolista. Dirigida pelo proletariado, a sua realização aproximaria a etapa socialista, tornando desnecessária outra insurreição para desencadear a etapa proletária da revolução, sendo possível e suficiente a via pacífica, como se a burguesia oferecesse maior resistência a abandonar o fascismo do que a aceitar o socialismo. E a aproximação desta nova etapa da revolução à etapa socialista era justificada com citações do Lenine. Enquanto este defendera que a participação do partido comunista na revolução democrático-burguesa anti-feudal constituiria um instrumento para acelerar a passagem à revolução socialista proletária, possibilitada pela fase imperialista do capitalismo, para o Cunhal, em consonância com o desvio revisionista do marxismo-leninismo, o domínio do país pelo capital monopolista, aliado ao imperialismo, impunha ao invés a necessidade duma nova etapa da revolução, intermédia entre a revolução democrático-burguesa e a revolução socialista proletária — precisamente a sua “revolução democrática e nacional”, anti-monopolista, anti-imperialista e profundamente popular — cuja concepção constituía um afastamento e não uma aproximação da revolução socialista proletária.

Tais habilidades argumentativas, que chegavam ao despudor de usar citações do Lenine para justificar concepções contrárias ao leninismo, denunciavam o carácter de político oportunista do Cunhal, mas os cegos não só não vêem a luz do dia como também não vêem o Sol de onde emana. E a falsa originalidade com que a nova linha política do partido era apresentada fazia também cair a máscara de probidade de carácter e de honestidade intelectual que ele meticulosamente construíra e com que se ornamentava. Quem tivesse olhos de ver facilmente enxergava que o dirigente máximo do partido não fugia ao modelo do político cínico e astuto, no seu caso, bastante mais refinado. Perdera-se, talvez, um artista mediano, que não tivera tempo de desenvolver as suas potencialidades, por todos reconhecidas, e, eventualmente, um grande intelectual. Os trabalhadores ganharam para dirigente um político pequeno-burguês radical de esquerda, que ao longo da vida tem mantido pelo proletariado um fascínio estético incomensurável e uma adesão moral genuína à triste sina dos explorados, mas que não se mostrou à altura de dirigi-los na luta revolucionária mais consequente e, por isso, não ultrapassou o estatuto de político oportunista.

Todos se contentaram em ter o seu partido dirigido por uma personalidade prestigiada pelas suas singulares capacidades, respeitada pelo seu comedimento político e admirada pelo ascetismo em que vivia, pela completa dedicação ao partido e pela aura de mistério que cultivava. Esse sentimento de admiração — fortalecido pela deficiente formação política e ideológica da generalidade dos militantes e pela notória diferença de capacidade intelectual e de trabalho entre a direcção e o Cunhal, que a colocava na sua dependência para a elaboração da linha política e para a redacção dos principais documentos do partido, falsamente apresentados como sendo fruto do trabalho colectivo — originou um profundo culto da personalidade, que se manifesta até pela familiaridade do tratamento pelo nome próprio. Aliada ao fascínio que o Cunhal despertava, esta peculiar situação não permitiu aos militantes aperceberem-se de que embora ele fosse um exímio organizador as suas parcas qualidades de ideólogo, de estratego e de táctico não condiziam com as requeridas para quem fosse o principal dirigente dum partido proletário revolucionário. Apesar de tudo, o partido era diferente dos partidos burgueses tradicionais. Também por isso, julgaram que um partido com operários seria, naturalmente, um partido operário e, além do mais, comunista. Não pensaram que um partido que se designa por comunista fosse um partido burguês, mais concretamente um partido pequeno-burguês radical, e que este PCP não passasse de uma fraude, de um partido pequeno-burguês radical para operários.

O drama que calhara em sorte à classe operária portuguesa ficou bem claro logo a seguir ao golpe de estado militar de 25 de Abril de 1974. O regime fascista confrontava-se com um levantamento militar levado a cabo por um grupo de oficiais de baixa patente, que o apanhara e ao partido de surpresa. O movimento operário e popular, que não participara na preparação daquela acção, veio para a rua espontaneamente, contra os repetidos apelos que lhe lançavam, antes mesmo de saber o carácter do golpe, e rapidamente se colocou ao lado dos militares revoltosos. Com a sua iniciativa, as massas populares não só viabilizaram o golpe como forçaram a tomada de medidas imediatas que escapavam às intenções previamente delineadas pelos golpistas, mostrando que queriam tomar parte activa no rumo dos acontecimentos. A obrigação de um verdadeiro partido comunista revolucionário, que tivesse a pretensão de ser considerado a vanguarda organizada do proletariado, seria canalizar para objectivos audaciosos a torrente impetuosa do entusiasmo, da mobilização e da criatividade populares, que atingiam formas e dimensões nunca vistas, começando por reclamar a aliança do MFA (Movimento das Forças Armadas) com o movimento operário e popular. Ao que se assistiu foi a uma inversão completa dos papéis. Em vez de assumir as responsabilidades que caberiam a um partido proletário revolucionário, no sentido de procurar transformar um golpe militar no início duma verdadeira revolução, o PCP amarrou o movimento operário e popular à tutela do ecléctico MFA, que se arrogava ser “o motor da revolução”, e não desempenhou o papel que lhe competiria. De facto, não o poderia desempenhar. Nunca fora um partido proletário revolucionário, um verdadeiro partido comunista, e a conquista do poder para a instauração da ditadura do proletariado nunca esteve nas suas perspectivas.

(A partir de um texto de 25 de Setembro de 1988, revisto e ampliado).


2 Comentários:

Às 1:12 da manhã, setembro 10, 2009 , Anonymous MS disse...

Um pequeno reparo.

"(...) tudo isso não impediu o PCP de declarar, no seu VII Congresso, em Novembro de 1976, que “a democracia portuguesa tomou o rumo do socialismo”.

O VII Congresso realizou-se no dia 20 de Outubro de 1974. O VIII Congresso realizou-se de 11 a 14 de Novembro de 1976.

 
Às 11:08 da manhã, setembro 10, 2009 , Blogger JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Tem razão. O VI, da "revolução democrática e nacional", foi em 1965, e o VII, para adaptar estatutos e programa, teve lugar ainda em 74. Tratou-se de qualquer lapso involuntário. Foi já corrigido.

Obrigado pelo seu reparo.

JMC.

 

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