quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Descriminalização do aborto


O texto que se segue está datado. Infelizmente, nos seus fundamentos permanece ainda actual, razão por que o publico. Enviado, na altura, para o jornal Público, com o pedido de publicação, não foi aceite. De então para cá, a situação alterou-se um pouco: a maior visibilidade social do aborto fez com que mulheres que o praticaram fossem levadas a tribunal, tendo sido ilibadas umas, condenadas outras, obrigando os juízes a fazerem interpretações folgadas da legislação em vigor para que não fossem sujeitas a penas de prisão efectiva; a pílula abortiva é já uma realidade e a pílula contraceptiva de emergência foi introduzida no mercado em regime de venda livre.

Apareceram na imprensa ou noutros meios de comunicação, entretanto, duas ou três reflexões muito interessantes sobre o assunto. O mais importante, contudo, foi a cínica rejeição sistemática de resolução da questão através da iniciativa legislativa parlamentar, com o argumento de que havia que respeitar o resultado do referendo, para mais, tratando-se de um referendo que pela insuficiente votação, para além do escasso resultado, não era vinculativo, não obrigando a ninguém. Pelo meio, situações hilariantes, por surrealistas, em que excelsos parlamentares surgiram a defender a manutenção da criminalização e, simultaneamente, a não aplicação da lei por parte dos juízes. Mais uma vez, o PCP se destacou, defendendo a única posição correcta sobre o assunto, batendo-se para que o Parlamento usasse legitimamente do poder que dispõe para a resolução duma situação arcaica e degradante.

Aprovada que foi a realização dum novo referendo — com o voto contra do PCP, num erro táctico totalmente desnecessário — assistimos a uma situação caricata: a do Ministro da Saúde a defender a descriminalização do aborto, não na qualidade de cidadão, mas na de Ministro, e a confirmar a realização dos abortos voluntários — que podendo ser actos médicos não são propriamente cuidados de saúde inevitáveis — através do serviço nacional de saúde, quando tem andado a cortar despesas e a eliminar serviços indispensáveis, piorando as condições de assistência a velhos e a doentes em regiões carenciadas.

Esperemos que desta vez a campanha de esclarecimento consiga mobilizar para a participação referendária — porque é disso que se trata e não do esclarecimento do óbvio, nem da discussão da ética ou da moral — uma população displicente, de entre a qual a maioria das mulheres, que constituem o grosso dos que têm direito a voto e a quem o assunto deveria interessar directamente, se está borrifando para que a lei mude ou fique na mesma, seja porque a lei da vida já lhe levou a possibilidade de emprenhar, seja porque uma primeira mezinha cómoda e eficaz se encontra acessível no mercado, na farmácia do bairro, seja ainda porque não está para sacrificar um Domingo de lazer ao incómodo duma votação.

Conviria que os opositores do aborto, para bem da sua sanidade mental, usassem como argumentação coisas simples e claras — como sejam as consequências físicas e psicológicas que poderão advir para a mulher pelo recurso ao aborto como método de planeamento familiar e os perigos acrescidos que a sua banalização e repetição poderão acarretar — que lhes dão todo o direito de rejeitarem o aborto e de tentarem persuadir as mulheres para a sua não realização, em vez de continuarem a persistir na mais falaciosa fé religiosa e em arcaicas concepções sobre o momento em que o embrião se transforma em feto e em ser humano. Só lhes ficaria bem deixarem de pretender alcançar os seus legítimos objectivos através da criminalização e da repressão penal de quem o praticar. Ao menos, poderiam conceder às mulheres o direito de decidirem, tentando atingir os seus objectivos pelo conselho e pela persuasão. E, se não conseguissem demovê-las, deveriam comportar-se como bons cristãos, perdoando-lhes. Insistirem em pretender castigá-las conduz ao mal maior do aborto clandestino e constitui um duplo pecado, que o seu Deus dificilmente lhes perdoará.

A bênção da sensatez nos agracie a todos.



DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO:
ENTRE FÉ E RACIONALIDADE A FRONTEIRA DA LIBERDADE



José Manuel Correia



O recente referendo sobre o aborto trouxe ao de cima uma série de questões interessantes, merecedoras de reflexão, sobre as representações que os portugueses, meros cidadãos ou políticos, têm da política num campo em que interesses de grupo se confundem com as crenças culturais.

Durante a campanha, ficou claro que para os partidários da opção “não” do referendo estava em causa não uma mera despenalização do aborto até às dez semanas, antes se traduzia na sua liberalização até àquele prazo, tratando-se neste caso de uma verdadeira descriminalização e da aquisição de um direito. Sendo contra o aborto, localizaram a sua argumentação no campo dos princípios, da ética, e transformaram a campanha do “não” numa campanha contra o aborto, mesmo o aborto nalgumas das situações já admitidas pela legislação actualmente em vigor (ressalvando apenas o aborto em caso de perigo de vida para a mulher grávida). “Em defesa da vida”, lema de que comungavam os vários movimentos cívicos dos partidários do “não”, traduz com clareza o que para eles estava em jogo.

Ficou também claro que para os partidários da opção “sim” do referendo estaria em causa essencialmente despenalizar, para eliminar um problema de saúde pública (as sequelas de abortos mal sucedidos) e acabar com a prática do aborto remetida à clandestinidade (que embora de impossível contabilidade teria a sua gravidade reflectida nos milhares de casos de abortos mal sucedidos atendidos nos estabelecimentos públicos de saúde). Estes acabaram, assim, por localizar a sua argumentação no mesmíssimo campo em que Álvaro Cunhal o fez há cinquenta anos atrás, quando o tomou como tema de uma tese académica — um mero problema de saúde pública, eventualmente grave. Afirmando-se, em geral, também contrários ao aborto, mas admitindo-o como último recurso e um mal menor para evitar o nascimento de filhos não desejados, principalmente, por quem não os poderia sustentar dignamente, a designação que adoptaram — “sim, pela tolerância” — espelha bem o campo do compromisso da sua opção.

Aos argumentos dos partidários do “sim”, os partidários do “não” responderam sempre com alternativas (viáveis umas, ilusórias outras). Dizendo compreender e perdoar as mulheres que abortavam, afirmavam não poder despenalizar o seu acto, mesmo se a inacção policial e judicial corrente, reflectindo a tolerância social à prática do aborto, se traduzem numa efectiva despenalização. Um pouco paradoxalmente, os partidários do “sim” afirmaram-se contrários à prática do aborto (aparentemente, só o defenderiam para os outros...), e os partidários de cada uma das opções mostraram concordância quanto à necessidade da educação sexual dos jovens e do planeamento familiar gratuito — os do “não” para evitar o aborto, os do “sim” para evitar a necessidade de recurso ao aborto como método de planeamento (!) familiar.

Para além de alguns excessos de linguagem ou de fundamentalismo intolerante, este mais por parte de membros do clero católico, algumas das correntes dos partidários do “não”, até então contrárias à mera contracepção (e é conhecida a oposição da hierarquia católica mais conservadora e dos seus seguidores ao uso do vulgar preservativo), declararam agora aceitá-la. Esperemos que a novidade não tenha sido um mero expediente oportunista ou que não se resuma à hipocrisia da reafirmação das prescrições tradicionais: abstinência, coito interrompido ou o coquetail temperatura corporal+boa dose de fé+q.b. de resignação.

Interessantes foram também as posições expressas por alguns técnicos (biólogos, médicos, farmacêuticos, juristas) e políticos da nossa praça acerca do que estaria em causa no referendo. Invocando as dificuldades da ciência para classificar o embrião de oito semanas, tudo se resumiria a um problema de consciência pessoal do domínio do foro íntimo de cada um, que a uns legitimava a opção pelo “não” e a outros a opção pelo “sim”. Confundindo liberdade com o seu exercício, escolheram o facilitismo oportunista para ficarem bem consigo próprios e com os outros. Mas pode um crime, se disso se tratar, ser uma questão de consciência pessoal?

Por fim, de entre os argumentos marginais, ouviram-se algumas vozes, indignadas, que se escudavam na atribuição exclusivamente à mulher da decisão sobre o aborto para legitimarem a sua opção pelo “não”, enquanto outras afirmavam, desinteressadas, não compreender porque eram os homens chamados a pronunciarem-se sobre uma questão que respeitava exclusivamente às mulheres. Estas indignações e perplexidades contraditórias sobre o que poderia parecer uma questão menor espelhavam o que era talvez o cerne da questão — a liberdade da mulher decidir sobre o seu próprio corpo e sobre a sua capacidade singular para a gestação. Apesar de só as mulheres engravidarem, enquanto uns parecem pacificamente reconhecer-lhe essa singularidade e o direito de dispor dela, outros persistem em negar-lhos, como se a condição de parceiro na cópula e na fecundação dela resultante permitisse ao homem invocar direitos quanto à gestação!

Deve o aborto até às dez semanas de gravidez, praticado sobre um embrião que em termos médios terá oito semanas de gestação, ser considerado crime ou direito? Esta a questão que se decidia no referendo, independentemente dos matizes dos argumentos invocados pelos partidários das diferentes opções. Que é um embrião com oito semanas de gestação? Um ser humano, como o consideravam os partidários do “não”, ou apenas um ser vivo a caminho de se tornar num ser humano? A esta questão os partidários do “sim” apenas responderam com evasivas, quando era ela que permitiria clarificar o debate e ajudar a decidir com a razão. Em que critérios nos devemos basear para classificar aquele ser, em grande parte com formas humanas, como invocaram também os partidários do “não”? Na crença, pela fé, de que é já um ser humano, ou pela razão, que por analogia nos permite desligar as máquinas que mantêm vivo na sala de um hospital um corpo humano no qual o tronco cerebral deixou de funcionar? A razão, escudada na ciência, diz-nos que a vida ou a morte do tronco cerebral decide a vida ou a morte dos seres humanos (embora não dos corpos humanos), por muita dor que nos cause, por muita esperança que tenhamos na fé que professamos. O que decide a existência de um ser humano é não só a actividade eléctrica do tronco cerebral, mas a sua capacidade para regular as funções vitais. Não pode haver duplicidade de critérios para decidir da morte ou da vida de um ser humano, e a ciência permite afirmar com segurança que com oito semanas de gestação um embrião humano ainda não é um ser humano.

Se este embrião sobre o qual se exerce o aborto ainda não é um ser humano não deve ser-lhe conferida qualquer protecção jurídica, e o aborto até às dez semanas só pode ser considerado um direito da mulher grávida, não um crime. Os partidários do “não” compreenderam perfeitamente que era a conquista deste direito que se jogava no referendo. Alguns esforçaram-se denodadamente por equiparar o embrião de oito semanas, e de menos, a um ser humano, e por reclamar para ele a protecção jurídica (por isso, sempre lhe chamaram bebé). Não custa admitir que muitos de entre estes o tenham feito com profunda e genuína convicção de que a variabilidade do ritmo do desenvolvimento contínuo do embrião não permite à ciência classificá-lo com precisão, em cada caso, senão por meios sofisticados, custosos ou que poderão acarretar perigo para o próprio embrião — embora, para aumentar a segurança e conquistar o apoio dos mais cépticos ou enduvidados, o promotor da lei tenha baixado o limite máximo do prazo geralmente admitido (as doze semanas de gravidez). Mas argumentos confundindo vida humana, que existe em qualquer célula humana e, obviamente, no ovo e no embrião de oito semanas que a partir dele se desenvolveu, com vida de um ser humano são produto da ignorância ou de crenças mágico-religiosas que engrossam o caldo cultural. Talvez por reconhecerem o excesso, outros partidários do “não” optaram por se referir ao embrião apenas como forma de vida humana, mas nem por isso deixaram de reclamar para ele a mesma protecção jurídica concedida ao ser humano, crentes na vida como dádiva divina de um qualquer Deus que vedaria ao homem destruir o que ele criara. Só que para escaparem a umas contradições acabavam por cair noutras ainda mais radicais, que os levariam, em coerência, a rejeitar o aborto em quaisquer situações, ónus que não quiseram assumir.

São essas mesmas crenças mágico-religiosas que estão na base da rejeição da contracepção, entendida como ilegítima interposição humana, que perverte a sagrada função procriativa da sexualidade em profanos prazeres carnais, e na do paradoxo da atribuição à mulher da culpa do pecado original da procriação (a tal ponto que para mãe de um dos seus deuses mais humanos tiveram de encontrar uma virgem imaculada, que concebera sem pecado). E são nelas também que parecem escudar-se os que recusam aceitar a necessidade de outros instrumentos para lidarmos com uma realidade social mais complexa — em que a maturidade sexual cada vez mais precoce, concomitante com uma mais tardia maturidade psíquica, e a crescente justificação da existência pela realização do desejo pessoal através do consumo fazem com que a sexualidade seja vivida de forma mais despreconceituosa e, quiçá, mais banal — de onde resultam muitas gravidezes indesejadas, que não são fruto apenas da falta de educação sexual. Daí que por detrás da sua oposição ao aborto estejam também outras inquietações sociais, atribuídas ao que designam por degradação dos costumes, que julgam poder travar através de arcaicas e desajustadas concepções conservadoras (nomeadamente, a repressão legal, que em seu entender constituiria um dissuasor bastante para evitar condutas motivadas por forte necessidade). Bastaria tão só olharem para o passado para perceberem que a moderna e crescente prática do aborto, em detrimento do infanticídio e do abandono dos nascituros, acompanha a valorização do ser humano, e que apesar das proibições legais, implantadas em grande parte para salvaguarda das taxas de natalidade exigidas pelo desenvolvimento económico, é a defesa da vida, e da vida com um mínimo de qualidade para os filhos, que a justifica para muitas mulheres que a ela recorrem, mesmo arrostando com o ónus da culpa e do pecado a que as suas próprias crenças as mantêm prisioneiras. É que mesmo nesse mundo irreal mágico-religioso de crime ou pecado elas sabem que é preferível não deixá-los vir à luz, e esperam que o julgador, seja quem for, comungue da sua dor absolvendo-as.

A prática do aborto é uma questão política da maior relevância, visto o seu objecto ser um ente em processo de desenvolvimento que levaria à formação e ao nascimento de um ser humano (e este é o aspecto da questão com que todos concordamos), que envolve três domínios: o da ética, o da moral e o da técnica. No domínio da ética, a ajuda da ciência permite demonstrar que um embrião de oito semanas que se desenvolveu numa gravidez de dez semanas ainda não é seguramente um ser humano. Assim sendo, a prática do aborto até às dez semanas de gravidez não pode constituir qualquer crime e deve ser entendida como um direito da mulher grávida. Após este prazo, embora no período das dez às doze semanas possivelmente ainda não estejamos perante um ser humano, mas porque diminui esta segurança, é legítima a sua criminalização. A definição de um prazo não é, assim, um aspecto despiciendo, visto tratar-se de um ser em desenvolvimento que a cada instante adquire novas qualidades. Embora tenham centrado a sua campanha no domínio da ética, os partidários do “não” iludiram não só as novas qualidades que o embrião vai adquirindo ao longo do seu desenvolvimento, atribuindo ao próprio ovo a qualidade de ser humano, como escamotearam também os restantes domínios da questão. E se nos domínios da ética e da moral pública o aborto até às dez semanas só pode ser classificado como um direito, no domínio da moral privada esse direito pode não ser exercido por parte daqueles cujas crenças pessoais, pela fé mágico-religiosa ou pela aceitação das tradições, lhes dêem outro entendimento. Por fim, no domínio da técnica, o aborto até às dez semanas é, já hoje, uma intervenção de pequena cirurgia (ou nem isso), e, num futuro próximo, constituirá uma intervenção ao alcance da química hormonal com eficácia e segurança (através da pílula do dia seguinte e da pílula abortiva, que preservam o anonimato e melhoram a comodidade, embora possam não dispensar eventualmente a receita e o acompanhamento médicos). No domínio da técnica, é até previsível que os seus reflexos negativos na saúde pública tendam a diminuir de incidência e de gravidade, à medida que se generalizem novos métodos.

A clarificação ética permitiria localizar as opções pessoais baseadas na moral onde elas devem estar, no domínio do exercício de um direito; decidir de forma mais pacífica, desdramatizando a consequente descriminalização; favorecer o desenvolvimento das técnicas susceptíveis de limitar as suas repercussões na saúde pública; repensar seriamente o aborto eugénico e o aborto por violação até às dezasseis semanas (como previstos na lei em vigor); questionar se o aborto voluntário, nos casos em que não haja perigo para a vida da mulher, deve ser custeado pelo serviço nacional de saúde; e aliviar a auto-culpabilização das mulheres que a ele recorrem com criminalização ou sem ela. A manutenção da criminalização do aborto nas condições da lei vigente vai continuar a permitir que à sombra da tolerância judicial para com o aborto de embriões de poucas semanas se pratiquem impunemente abortos de fetos de quatro e de cinco meses.

A questão não se encerrou com este referendo, porque se as crenças individuais ou de grupos nos hábitos, nas tradições ou nas religiões, por muito que colidam com o conhecimento racional dos factos ou com o mero cepticismo, devem ser respeitadas como legítimas e não apenas toleradas, o mesmo valor deve ser dado ao conhecimento racional. A lei não pode legitimar a fé e proibir a razão, e, no caso do aborto até às dez semanas, não pode proibir a liberdade. Legitimando o direito ao aborto até às dez semanas, a lei deixaria à consciência moral e religiosa de cada um o seu exercício em plena liberdade.

A frontalidade dos partidários do “não” sobre o cerne do que estava em jogo no referendo foi a que os partidários do “sim” não souberam ou não quiseram assumir. Se o movimento “sim, pela tolerância”, que albergava correntes heterogéneas, defensoras desta opção pelas motivações mais diversas, teve um discurso susceptível de alargar a abrangência a personalidades mediáticas e se ficou pelo compromisso da tolerância e da compreensão, sem atacar a questão de fundo, o mesmo não era de esperar das esquerdas partidárias — principalmente do PCP, que sempre se distinguiu pelo pioneirismo neste campo. Reclamando-se do progresso, o PCP mostrou continuar, afinal, agarrado a velhos estereótipos ultrapassados, tanto na táctica como nos princípios, e preferiu o discurso da tolerância para com os pobres e os desfavorecidos, susceptível de não afrontar as consciências mais conservadoras e as crenças mais tradicionalistas, à defesa intransigente da liberdade. Porque o que se travava era um combate pela liberdade e não pela tolerância.

Sendo múltiplas as motivações para o recurso ao aborto, quer como método de controlo da natalidade, quer para a interrupção de uma gravidez indesejada — mas mal prevenida, apesar dos meios cómodos e eficazes já disponíveis — em geral ele foi e continua um fenómeno marcadamente moderno e urbano, praticado por quem vive do salário e sabe que este não cresce com o aumento da família, e para quem o aparecimento de mais uma boca para alimentar é sinónimo de mais pobreza e de redobradas preocupações. São as mulheres dessas famílias que o praticam por razões económicas, mesmo arrostando com a culpa e o pecado das suas próprias crenças; são elas que a ele se sujeitam sobre a mesa da cozinha de uma qualquer habitação, às mãos de curiosas e de parteiras anónimas, porque mesmo o mercado clandestino tem os seus preços diferenciados; e são elas também que preferem o anonimato, porque conhecem bem o peso da crença religiosa na censura popular. Ora, elas são parte da base sociológica natural de apoio do PCP, e seria suposto que na sua campanha autónoma este usasse em sua defesa a racionalidade para lutar pela liberdade, não se quedando pelo problema de saúde pública gerado pelo aborto clandestino. Além do mais, porque o aborto clandestino continuará existindo, apesar da descriminalização, quer pela pressão da crença pessoal e da censura popular, quer para matar fetos, casos em que só a clandestinidade poderá assegurar o anonimato e a impunidade.

Mas, para além de um combate pela liberdade no domínio da ética, a descriminalização do aborto tem mais vastas repercussões políticas e sociais. Juntamente com o direito à contracepção, entretanto conquistado, ela insere-se na luta pela conquista da efectiva igualdade de direitos entre os sexos e pela libertação da mulher do fatalismo da subalternização social a que as suas singularidades biológicas a têm condenado através dos tempos. Se a evolução da produção dos meios de subsistência e das condições de existência têm permitido a libertação dos seres humanos de muitos dos instrumentos de dominação social, verifica-se que apesar delas persiste uma notória desigualdade social entre os sexos, independentemente da sua pertença de classe. Esta discriminação baseada no sexo, que remete a mulher para papéis secundários e é transversal a toda a sociedade, tem sido legitimada pelos mais variados instrumentos ideológicos, que só muito lentamente têm caído na obsolescência. E, qual paradoxo, a sua singular capacidade para a gestação, ao invés de merecedora de qualquer forma de reconhecimento social, é usada, através da negação do direito de dispor dela, precisamente como um dos últimos argumentos dessa velha panóplia ideológica legitimadora da dominação social de que é alvo.

Era também por este aspecto de luta pela libertação social da mulher que a descriminalização do aborto até às dez semanas de gravidez deveria ter sido abordada, eventualmente noutros meios de comunicação, que não os tempos de antena da campanha, e para outros públicos, mesmo correndo o risco de ser mal interpretada. Surpreende, por isso, que um movimento cívico feminino que tem por objectivo a emancipação da mulher — a UMAR — não tenha tomado a iniciativa de levantar pelo menos a ponta do véu, já que os partidos políticos, enquanto organizações maioritariamente masculinas, são eles próprios atravessados por interesses contraditórios mal resolvidos no que respeita à igualdade de direitos entre os sexos. A luta política pela defesa coerente do progresso social pressupõe uma vasta luta ideológica, que a alicerce e impulsione com audácia para a ruptura com os interesses mais recônditos que fundamentam a discriminação, mesmo com o risco da perda temporária da harmonia entre aliados. Embora os contornos sociais resultantes da complexidade da luta de classes não se possam conhecer antecipadamente, na ausência de luta ideológica consequente, neste campo, não será de estranhar se o progresso tecnológico inevitável, movido pelo lucro, acabar por fazer mais pela libertação da mulher do que as inconsequentes lutas políticas, com o inconveniente de naturalizar as novas práticas sociais escamoteando os interesses de classe e de grupo que retardaram ou impediram a sua legitimação.

Pese embora as limitações da abordagem e da clarividência do discurso, o PCP revelou-se a única força partidária que fez jus a essa qualidade, não enjeitando as dificuldades do combate político pela transformação cultural e pela modernização das mentalidades, contra a influência do tradicionalismo e da fé mágico-religiosa. É, por isso, da mais elementar justiça reconhecer os seus méritos. Ele foi a única força das esquerdas partidárias que se empenhou nesta batalha com pioneirismo e persistência, desde a iniciativa que conduziu à aprovação da legislação actualmente em vigor, aos esforços desenvolvidos para a manutenção desta nova iniciativa legislativa confinada ao parlamento e a recusa do referendo, até à realização de uma campanha autónoma pelo “sim”.

Algum mérito, apesar das mesmas limitações, é também devido ao proponente desta iniciativa legislativa para a descriminalização do aborto, Sérgio Sousa Pinto, já que o partido a que pertence, o PS, confirmou os piores prognósticos que seriam de esperar da sua caminhada firme do centro-esquerda para o centro-direita do espectro político, desde a liderança guterrista. É que apesar do vociferar surdinoso dos mandaretes, da intriga das facções ou do protesto genuíno, pouco alegre e já sofrido, das personalidades de esquerda que por lá definham, na hora da verdade todos parecem vergar-se ao reconhecimento de que os lugares que desfrutam, e a sua conservação à sombra do poder, o devem a este personagem estranho — um leigo católico praticante, que tem um frade confessor por conselheiro, e cuja concepção da política como dever de servir lembra irónicas, quanto incómodas, semelhanças entre um novo e afável zambujeiro viandante e uma antiga e sisuda oliveira sedentária, apesar das inevitáveis diferenças nas opções, na solidez cultural e na perspicácia política — que parece revelar-se susceptível, por si só, de atrair mais votos do que toda a máquina partidária.

Se no tempo de Mário Soares como secretário-geral — a quem, curiosamente, esta nova orientação política faz parecer uma personalidade de esquerda — o PS abandonou o marxismo como inspiração e meteu o socialismo na gaveta, na era de António de Oliveira Guterres é a própria conotação com a esquerda que é jogada borda fora, emergindo em seu lugar uma retórica fluente, embora oca — baseada no pragmatismo, na necessidade do consenso para o “bem comum”, no apoio efectivo aos grandes grupos económicos e na caridade cristã para a correcção das desigualdades — servida na oratória por cândida prosódia de entoação levemente clerical, que baloiça ao sabor dos ventos da popularidade. Não admira, por isso, que o actual PS, tão distante daquele que nas suas origens se afirmava apostado na transformação social, ao ponto de levar militantes a interrogarem-se publicamente sobre a natureza do partido, não pudesse esconder o embaraço que lhe causou a iniciativa legislativa da descriminalização do aborto, que apesar da inconveniência não pôde conter, e haja optado por ceder ao referendo e por não participar na campanha (nem mesmo para esclarecer o significado, os efeitos e a importância de um instrumento político da democracia participativa, que era usado pela primeira vez, e apelar ao voto, ainda que veiculando a posição do líder, que remetia a opção para a consciência de cada um).

A incomodidade foi também notória nos partidos da direita do espectro político, mas neles era compreensível. Derrotados na votação parlamentar que aprovou na generalidade o projecto legislativo, usaram, com a aquiescência do PS, a alternativa referendária, na esperança de que a votação popular lhes fosse favorável. Tal como o PS, não se envolveram na campanha, deixando aos militantes a liberdade de se integrarem nos diferentes movimentos cívicos, de acordo com a opção pessoal, e, também como ele, não se dignaram a apelar à participação cívica no referendo. Feitas as contas, bastaria o “não” de 25% dos eleitores inscritos, score possível pela mobilização dos seus adeptos mais tradicionalistas, para saírem vitoriosos, e pouco mais de 50% de abstenções, qualquer que fosse o resultado de cada uma das opções, para usarem o desinteresse dos cidadãos como argumento contra a prossecução do processo legislativo no parlamento. A derrota da descriminalização do aborto estava, portanto, previsivelmente ao seu alcance, como veio a confirmar-se, e bastou para isso, perante quase 70% de abstenções, a opção pelo “não” de pouco mais de 16% do eleitorado.

Mais do que a pequena diferença da votação no ”sim” e no “não”, o que parece ter surpreendido toda a classe política foi a grande taxa da abstenção, a mais elevada até ao presente em qualquer votação, precisamente no primeiro acto referendário desta novel 3.ª República, que ironicamente fora reivindicado e defendido pela direita parlamentar como forma aceitável de democracia participativa. A surpresa, porém, não a impeliu para qualquer reflexão, preferindo justificar a abstenção com grotescas e mirabolantes hipóteses sobre as motivações dos abstencionistas, quando bastava olhar para o primeiro e mais simples dos seus significados — a inconsciência cívica — para tirar umas quantas ilações necessárias.

Por confusa que fosse a pergunta referendária, os eleitores sabiam perfeitamente o assunto que se referendava; por muitas que fossem as dúvidas, os eleitores dispunham de quatro opções; por grande que fosse o cepticismo quanto à eficácia do referendo como instrumento de poder, os eleitores sabem que não lhes concedem mais do que a legitimação, pelo voto, do poder estabelecido. Elogiar o desinteresse pela participação na votação do referendo como manifestação inequívoca da sabedoria popular, e assim desvalorizá-lo, pode convir de momento a fracções populistas da classe política, mas pode custar-lhes caro se esta apatia vier a consolidar-se no ancestral alheamento dos portugueses face à res pública e a pôr em causa a legitimidade do próprio sistema de legitimação eleitoral instituído.

Seria suposto que as elites políticas compreendessem que a ética, e os direitos e deveres que dela decorrem, não se pode referendar, e que a elas caberia contribuir para a transformação dos padrões culturais vigentes. Infelizmente, o nível cultural e político das elites institucionalizadas é o que é, e, ao demitirem-se das suas responsabilidades legislativas usando o referendo como recurso minimizador de derrotas parlamentares, no jogo do taticismo partidário do “perdes tu, ganho eu”, elas passaram a si próprias um atestado de menoridade, que desacredita ainda mais a prática da política à portuguesa.

Almada, 16 de Julho de 1998.

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