segunda-feira, 9 de julho de 2007

Esta nódoa de governo desaparecerá com a benzina da risota, porque é uma anedota


A cada dia que passa, acumulam-se os sintomas de mal-estar na sociedade portuguesa. Aos efeitos das medidas políticas impopulares tomadas pelo governo, tantas vezes aplaudidas pelo patronato e pela ala direita do espectro partidário, juntam-se agora a perseguição a funcionários públicos não afectos ao partido do governo, a coberto da invocação de incumprimento dos deveres de lealdade, e as tentativas de limitação da liberdade de impressa e da independência dos jornalistas. A denúncia, através da sinistra figura do “bufo”, o delator servil movido pela inveja, pela vingança ou pelo fervor partidário, constitui um dos instrumentos para a instauração do clima de intimidação e de medo que vem medrando na sociedade portuguesa democrática; o outro é a codificação, a queixa judicial e a investigação policial, judiciária ou mais secreta.

A ofensiva contra as liberdades, e contra a liberdade de expressão e de informação à cabeça, não está sendo travada com base numa ideologia repressiva de contornos bem definidos. Ao contrário, está sendo desencadeada em nome duma “cultura tecnocrática”, dando-se ares de modernidade, veiculada por políticos sem grandes convicções democráticas, sem sólidos valores éticos, muitos deles nascidos e criados nas juventudes partidárias, que fizeram carreira como profissionais da tecnoburocracia à sombra dos aparelhos dos partidos e se foram governando à conta do Estado como funcionários, como gestores ou como fornecedores de obras ou de serviços os mais diversos, da avaliação à fiscalização, da assessoria ao comissionismo, dos pareceres avulsos à consultoria permanente, para quem tudo deve ser regulado, no caso, até a liberdade. A ameaça assume forma nos códigos, e paira sobre as cabeças disfarçada de regras de boa conduta e de conselhos fraternos: juízinho, portem-se bem, não incomodem!

Para os tecnoburocratas, quais iluminados das modernas sociedades complexas, o povo apenas serve para conferir-lhes legitimidade em regulares liturgias eleitorais. Para o mais, o povo não passa de chusma de analfabetos sem alcance para compreender os grandes problemas da governação, muito menos para decidir sobre eles. Só a técnica permite compreender tais problemas, e só aos tecnoburocratas, como seus detentores, deve estar reservado o poder de decisão. A técnica deve comandar a política, e a esta resta-lhe subordinar-se à evidência das fundamentações técnicas. Já em tempos, um contabilista austero com semelhantes concepções afirmava “deixem-nos trabalhar”, que é como quem diz “não estorvem os tecnoburocratas”. Como não se tinha em conta de profissional da política, ficou-se pelo desabafo. Mas não há muito voltou a lembrar-nos os benefícios da técnica para o entendimento entre pessoas civilizadas. Esperemos, ao menos, que saiba distinguir entre a técnica e a trapaça, entre o respeito e a mordaça.

O tecnoburocratismo comunga de preconceitos quanto à capacidade do povo para deter o poder e fiscalizar a governação muito semelhantes aos do despotismo iluminado. Também este usurpa o poder ao povo. Se o déspota iluminado tem carisma, coragem e sabedoria, o povo aceita e aprecia; se lhe resta somente a tirania, o povo apupa e repudia. O tecnoburocratismo julga a técnica suficiente para justificar a usurpação. Mas se o tecnoburocrata não tem carisma, nem coragem, nem sabedoria e se revela mero charlatão incompetente, o povo faz-lhe chacota. Esta inadmissível insolência irrita o tecnoburocrata, que ameaça para intimidar. Mais tarde ou mais cedo, o tecnoburocrata embusteiro acaba ridicularizado. De nada lhe valerá a cólera, pois ao governo do tecnoburocrata está reservada a sentença do Eça: “Este governo não cairá, porque não é um edifício. Sairá com benzina, porque é uma nódoa”. Esta nódoa de governo desaparecerá com a benzina da risota, porque é uma anedota.

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