domingo, 8 de julho de 2007

"Foi assim", mas há sempre alguém que não deseja acreditar


A longa entrevista de Zita Seabra na RTP, a propósito do lançamento do seu livro de memórias “Foi assim”, constituiu um bom testemunho do que foi a sua fé no comunismo e a sua militância empenhada, bolchevique, no PCP, durante os vinte e quatro anos que por lá andou. Desde os tempos do PREC, não nutro simpatia por Zita Seabra. Não mudei de opinião quando entrou em dissidência e foi expulsa, nem quando foi publicando outros testemunhos, nem mesmo agora. Passei a admirar-lhe a coragem. Ouvi-la permitiu corroborar o que de há muito se sabe sobre o PCP, o PREC, o 25 de Novembro e o comunismo.

A entrevista e o livro de memórias agora editado servirão de pretexto a muitos para continuarem a não acreditar. A não acreditar que o PCP possa ser uma seita de fanáticos revolucionários, que o Cunhal pudesse ter sido um dirigente cínico e implacável, que os comunistas sejam como ela os retratou, que o comunismo pudesse ter sido um regime totalitário e concentracionário. Hoje, como ontem, os apóstatas e os hereges são suspeitos, e os trânsfugas não passam de reles traidores ao serviço do inimigo; não podem falar verdade. Por muito que digam, por muitos factos que apontem, e que outras vozes também o façam, uma realidade tão escabrosa não pode ter existido. Há sempre alguém que mesmo vendo, ouvindo e lendo prefere ignorar, há sempre alguém que não deseja acreditar.

Para muitos da sua idade ou um pouco mais velhos, o seu testemunho não trouxe grandes novidades, apenas amargas recordações. Para os mais novos, foi talvez um relato incompreensível, porque não imaginam sequer o que foi ter sido revolucionário profissional, pertencente a uma seita de fanáticos, detentores do conhecimento certo, sabedores como ninguém do passado histórico e do futuro por acontecer, totalmente hierarquizada e exigindo a obediência absoluta, que se considera a vanguarda iluminada destinada a conduzir o proletariado à revolução redentora. Parecer-lhes-á coisa inverosímil, mesmo inconcebível, face à liberdade que usufruem. Enganam-se redondamente. Bastará conversarem com militantes activos, convictos e doutrinados das juventudes comunistas para compreenderem que esse mundo de fantasia do fanatismo redentor ainda existe. E continuará existindo, porventura em menor escala, como todos os fanatismos baseados na fé, seja a fé na mensagem das religiões sagradas, seja na das utopias profanas.

Zita Seabra falou de si própria, das suas memórias, na primeira pessoa, não de outras pessoas nem por interpostas pessoas. Apresentou-se como exemplo do comunista empenhado, do revolucionário bolchevique, que decerto foi ao longo dos vinte e quatro anos que esteve no PCP. Aderiu, ainda muito jovem, por idealismo, mas não foi comunista por engano, foi-o por formação ideológica, por convicção e por acção, tendo permanentemente presente o desejo de se tornar numa verdadeira comunista, uma construtora do homem novo e duma sociedade sem servos nem amos. Abdicou da segurança da vida burguesa para correr todos os riscos, enfrentando todos os escolhos, a começar pela mágoa dos pais, que assim viam fugir-lhes, tão nova, o fruto das suas vidas e esboroar-se o mundo de sonhos que lhe haviam destinado. Poderão os estranhos compreender tais mágoas, as saudades pela longa ausência, os cuidados pelos riscos imaginados, a tristeza pelos sonhos desfeitos, o vazio pela vida não partilhada. Não, os estranhos não poderão compreender.

Tal como não poderão compreender a amargura de quem vê os próprios sonhos tão sublimes abalarem a cada choque da realidade e, depois, ruírem com fragor perante a crueza da maldade revelada em toda a sua plenitude. Que sentido teve, então, a vida como fora passada, a juventude não vivida, o empolgamento na defesa de causas tão absurdas, o mal que se fizera? O receio da culpa, o medo do veredicto da consciência adquirida tem levado muitos a meias rupturas, à feitura de balanços de compensação, e outros à auto-negação. Afinal, ao longo da vida, toda a gente se engana, todos erramos, justificam-se no seu íntimo. Continuam enganando-se, pensando que uma utopia tão bela não pode ter semelhante desfecho, que uma ideologia tão humanista não pode conter em si tamanha perversidade, não pode ser a raiz do mal absoluto, do controlo totalitário da vida de toda a gente. Saindo da igreja, despojam-se do proselitismo de outrora, mas mantêm-se fiéis à mensagem, procurando outros caminhos para chegarem ao mesmo céu. A ilusão não atinge a hipocrisia, é tão-só a necessária compensação para não perderem o equilíbrio e reencontrarem um sentido para a vida sem renegarem o passado.

Zita Seabra arcou com as suas próprias culpas e compreendeu que a libertação de tamanho pesadelo só poderia acontecer cortando cerce os laços ideológicos e políticos. Teve a coragem de assumir o passado e o presente. Mas não lha reconhecerão. Não serão o comunismo e o fanatismo revolucionário do PCP que irão ser tema de conversa. Hoje, como amanhã, será a própria Zita Seabra quem estará em julgamento. Foi assim, mas há sempre alguém que não deseja acreditar.

2 Comentários:

Às 10:54 da manhã, setembro 05, 2007 , Anonymous Anónimo disse...

“Foi Assim”, de Zita Seabra, constituiu já objecto de comentário e crítica abundante, oriunda dos mais diversos quadrantes de opinião, desde antigos correligionários, que não se coíbem de lhe notar imprecisões e até mesmo mentiras, ao aplauso incondicional mas discreto dos seus amigos de hoje; passando pelos que, protagonistas de trajectos idênticos, distanciando-se num ou noutro particular menos abonatório do seu testemunho lhe protestam o seu apoio solidário, e também pelos visados que a repudiam com veemência.

O anátema que nos primeiros tempos que se sucederam ao PREC pesou sobre os então chamados “VIRA CASACAS”, foi posteriormente transferido para os burros, depois de Mário Soares ter transformado em aforismo filosófico a sua célebre expressão: “SÓ OS BURROS NÃO MUDAM DE OPINIÃO”. Por mim rejeito os termos da dicotomia – mudar ou não mudar – quando tomados com sentido absoluto de positivo/negativo, ou vice-versa, e tenho constatado vício e virtude quer em exemplos do lado dos que mudam, quer no dos que permanecem. Não me parece pois que, como critério absoluto para sustentar juízos de valor, seja o algoritmo de alguma valia.

Mas a questão principal que o testemunho de Zita Seabra mais uma vez me suscita, para além das que já foram realçadas, é outra. Refiro-me à animosidade – mais apaixonada do que racional – utilizada por um sector significativo de opinião que vai de ex-PC(s) a ex-marxistas em geral, para criticarem o que foi anteriormente o objecto do seu credo. Por mim, não tendo, nem nos momentos de maior empolgamento de uma efémera aproximação ao ideário marxista cedido a Marx o espaço vago deixado por Deus, tenho alguma dificuldade em compreender – ao menos da parte de algumas pessoas – que o juízo lúcido não seja capaz de se impor à emoção. Zita Seabra é apenas um exemplo extremo de um mesmo fenómeno, entre outros menos evidentes mas que poderiam igualmente ser referidos.

Com excepção de um ou outro crítico da velha direita assumida, os ex tornaram-se no mais acérrimo adversário do que antes tinha sido a sua – em muitos casos exclusiva – referência cultural. E o discurso que utilizam não se encontra longe daquele de que em tempos foram alvo, e do qual então diziam, com a mesma convicção com que hoje dizem o contrário, ser de “anti-comunismo primário”. Nunca fui militante, simpatizante, ou sequer eleitor do PC. Mas nem por isso – ou talvez por isso – me deixa de continuar a causar um lúgubre espanto, este espectáculo de ver os que já foram soldados do mesmo lado da trincheira, alimentarem-se dos cadáveres dos últimos que restaram da batalha perdida. – Por uns e por outros.

Apenas aparentemente – para campanhas de momento – o ex-fumador convertido em militante fanático da luta anti-tabágica, é a arma mais eficaz contra o mal. Na maior parte dos casos arrisca mesmo que a sua intervenção tenha efeito contrário ao pretendido e que os não fumadores passem até a nutrir alguma simpatia pelos fumadores pelo modo como são atacados.

Podemos encontrar explicações de origem diversa para o fenómeno. Desde algumas evidentes manifestações de ressaibiamento e ajuste de contas à posterior, por desavenças internas, até à necessidade de reabilitação junto da sociedade, passando eventualmente também por um sentimento de responsabilidade exacerbado pela denúncia de erros e de práticas que conhecem melhor que ninguém. Dois mil anos de cultura judaico-cristã deixaram também um pesado legado de práticas de exorcisão de demónios, autos de fé, actos de contrição, confissão, penitência. Talvez estes ex-comunistas sejam afinal apenas bons cristãos em processo de catarse. Se for o caso, no que respeita a Zita Seabra desejo veementemente que tenha encontrado finalmente o seu canto de paz. Mas não gostei do seu livro.

Independentemente da justeza das críticas, que no que seria essencial são poucas – prendendo-se a dissidência principalmente com questões de ordem formal – o registo predominantemente emotivo e repetitivo diminui-as ainda assim em credibilidade. Se é verdade que uma mentira dita muitas vezes corre o risco de se transformar em verdade, não é menos verdade que uma verdade dita outras tantas corre o risco de se transformar em mentira.

Mas, para além desta questão suscitada pelo “caso Zita”, gostaria de referir ainda outro aspecto que não tem que ver com ela. Refiro-me à estranha assimetria com que alguns ex-PC, que dizem não ter passado propriamente para o outro lado da barricada, vêm tratando a outra face dos males. Com efeito, o fervor crítico que colocam na análise quer de partidos que se reclamam de esquerda, quer da experiência falhada do socialismo real, quer ainda do próprio marxismo, está longe de ter correspondência com igual medida no combate ao modelo que informa quase que exclusivamente as sociedades de hoje. Que é muito mais efectivo e actualmente único responsável pelos males sociais do mundo. Parece estar-se aqui perante um monumental equívoco. Ou seja, a mesma fé e esperança clandestina que o autor do post julga ver ainda nalguns ex-marxistas - o que admito seja verdade - parece-me apesar de tudo muito mais evidente naqueles que, embora não o dizendo, lá no fundo, e à pala de que estamos agora numa sociedade democrática, sentem que por aí é que é o caminho. E o tal fim da história vislumbrado pelos marxistas, que a sociedade comunista sem classes não conseguiu, talvez o modelo capitalista – com uns arranjozinhos, quem sabe! – o consiga.

Para além do mais, estou com JMC quando admite – noutro texto – que uma crítica mais consequente e mais profunda aos fundamento do marxismo, eventualmente não deixará também pedra sobre pedra neste mundo capitalista que os tais críticos fervorosos vêm tratando com o que me parece ser uma calada mas esperançosa deferência.

 
Às 8:31 da manhã, setembro 06, 2007 , Blogger JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Agradeço o seu lúcido comentário, pelas questões pertinentes que coloca.

Não poderei falar sobre o mérito do livro de memórias da Zita Seabra, ou a falta dele, porque não o li, nem tenho curiosidade para vir a lê-lo. O meu post tem como referência a entrevista televisiva de Zita Seabra a propósito do lançamento, então próximo, desse seu livro. Por isso, e por não conhecer em pormenor os factos que nele sejam referidos, não posso aquilatar da fidelidade do relato memorialista.

Logo que tenha disponibilidade, responderei, de modo a dar um contributo para a melhor compreensão de algumas das questões que aborda no seu comentário.
JMC.

 

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