sábado, 17 de agosto de 2019

A corja: descaradamente ao serviço do capital


A greve decretada pelo Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), a que veio a aderir um outro pequeno sindicato de motoristas de mercadorias (SIMM), para ter início no passado dia 12 do corrente teve um longo pré-aviso. Durante esse período, o Governo teve tempo para elaborar os devidos planos de contingência e para tentar persuadir as entidades envolvidas ou, até, para intervir na mediação do conflito entre trabalhadores e patrões. Uma parte desse trabalho fê-lo, como já acontecera na greve de Abril, entretanto desconvocada por as partes terem chegado a acordo por sua mediação (curiosamente, através do ministro das Infra-estruturas e não do ministro do Trabalho, mas também curiosamente um acordo não cumprido pelo patronato e que terá motivado a nova greve).

Em vez de se inteirar das razões invocadas pelo SNMMP para a marcação desta greve e, por exemplo, pôr em campo a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) na fiscalização das condições de trabalho destes trabalhadores, o Governo acabou por deixar correr o marfim, como se essa fiscalização não lhe dissesse respeito. E quiçá ressabiado por um pequeno sindicato ter a veleidade e a ousadia de voltar a marcar nova greve passado tão pouco tempo, agora num período estival e por isso com maior repercussão, o Governo também mudou de táctica, optando por dramatizar a situação e por apostar forte na hostilização dos grevistas e na sabotagem da greve. Bem antes da data marcada para o início foi lançada a lebre da necessidade da alteração do direito de greve, com alguns ministros, em coro com políticos de partidos de direita, a aparecerem a afirmá-lo; à medida que o início se aproximava foi a difusão de todo um ror de calamidades que seriam causadas pela falta de combustíveis, da perda de colheitas às prateleiras vazias nos supermercados.

Depois de terem vindo a público os baixos salários e as condições de trabalho a que habitualmente estes trabalhadores estão sujeitos (períodos diários de trabalho de 12 a 14 horas e salário base pouco acima do salário mínimo, complementado por uma componente correspondente a duas horas diárias de trabalho extraordinário, mais o pagamento de subsídios por cargas e descargas das mercadorias, por trabalho nocturno e por risco), fixados no CCT acordado há menos de um ano entre o patronato da ANTRAM e a federação sindical do sector dos transportes FECTRANS/CGTP, que o patronato em muitos casos nem cumpria e que poderá ter sido um dos motivos que levaram à marcação das greves, mais se impunha que o Governo se empenhasse na mediação do conflito. Sintomaticamente, o ministro do Trabalho, Vieira da Silva, várias vezes referido afectuosamente pelo caceteiro habitual por “Zé António trata deles”, com um longo historial na feitura da legislação anti-laboral dos últimos vinte anos, não esteve disponível para mediações nem para enfrentar as organizações sindicais.

O que se passou foi algo até aqui inédito quanto à utilização do aparelho do Estado ao serviço do patronato e contra os trabalhadores grevistas. O precedente foi tal que provavelmente nada voltará a ser como dantes. Rodeando-se de estrategos em comunicação e em acção subversiva, o Governo afiou facas e empenhou-se a fundo na sabotagem da greve. Com o intuito de isolar os grevistas, chamou a negociações a FECTRANS/CGTP, e quando o anúncio de concessões do patronato não surtiu os efeitos imediatos esperados de suspensão ou de termo da greve passou a agir de acordo com as pretensões patronais, nalguns momentos de forma descarada, violando princípios constitucionais e legais e subvertendo por completo o exercício do direito de greve e até normas do próprio estado de direito democrático. Embora tenha afirmado repetidamente que o conflito era entre privados, entre trabalhadores e patrões, estava claro que sendo esse o conflito principal os seus efeitos excediam em muito a esfera privada, pelas repercussões no normal abastecimento público de combustíveis.

Alguns dos seus apoiantes poderão ter achado que o Governo apenas se terá excedido na dramatização da situação, nos serviços mínimos (que nalguns casos foram máximos) que se apressou a impor e, depois, na requisição civil dos grevistas, assim como na intimidação pela ameaça de prisão dos que se recusassem a cumpri-la, e na mobilização de forças militares, militarizadas e de polícia para substituí-los. Um ou outro poderá, talvez, ter-se apercebido da excessiva consonância entre as acções governamentais e as exigências da associação patronal dos transportadores. Ao nível do comum das pessoas, perante o racionamento do combustível e a escassez e falta em muitos postos de abastecimento, que assim viu a sua vida habitual perturbada, o Governo também terá colhido algum aplauso. Eventualmente, para além de pôr os sindicatos na ordem, este era o outro dos seus grandes objectivos imediatos, tendo em vista a ambicionada maioria absoluta nas próximas eleições.

Ao longo deste processo, deu para ver com clareza que o Governo não se comportou como mediador e se colocou abertamente ao lado do patronato. Em vez de cuidar de contribuir para a resolução do conflito e para assegurar o abastecimento do país, chamando às negociações as refinadoras e as principais comercializadoras de combustíveis, que são, afinal, quem tem a obrigação de manter o país regularmente abastecido, estranhamente o Governo tomou como principal objectivo sabotar a luta dos motoristas e derrotar os sindicatos dos grevistas, eximindo das suas obrigações as refinadoras e as principais comercializadoras. A responsabilidade do abastecimento público de combustíveis não é dos transportadores, mas, em primeira instância, das refinadoras e grandes comercializadoras. Porque, que se saiba, o patronato dos transportes (ANTRAM), não era, nem é, revendedor de combustíveis.

Os vendedores de combustíveis e fornecedores dos milhares de postos de abastecimento espalhados pelo país são as companhias refinadoras e comercializadoras por grosso (a GALP, a REPSOL, mais umas quantas de menor dimensão). São elas, em princípio, que terão como obrigações contratuais na concessão pelo Estado assegurar o abastecimento dos seus revendedores, em cujos contratos certamente não faltarão cláusulas indemnizatórias por atrasos ou faltas no fornecimento, como acontecerá em qualquer país medianamente desenvolvido. Dantes, as refinadoras e as comercializadoras por grosso tinham as suas próprias frotas de transporte e albergavam nos seus quadros muitos motoristas qualificados. Em princípio, cumpriam a legislação em vigor quanto a condições de trabalho e praticavam salários, comparativamente, muito superiores aos que os motoristas das transportadoras auferem.

Ao subcontratarem o transporte, as refinadoras e as comercializadoras reduziram os custos e aumentaram os lucros, mas não eliminaram as suas obrigações e responsabilidades. Sendo chamadas a cumprir essas suas obrigações, é claro que mantendo-se a greve elas não as poderiam cumprir. Daí que, para além dos motoristas e dos transportadores, o conflito englobasse também as refinadoras e as principais comercializadoras de combustíveis. Mas o Governo da corja não é apenas de vistas curtas e de navegação à vista, ele é um servidor do capital; e até entre o capital mostra ter preferências. Ao grande capital da refinação e da comercialização optou por deixá-lo de fora do conflito, como se nada fosse com ele; aos transportadores acabou por suportar-lhes as despesas, usando o trabalho compulsivo da requisição civil e o das forças militares e militarizadas envolvidas na substituição dos grevistas.

A actuação dos sindicatos dos grevistas, por seu lado, foi pouco menos do que desastrosa, marcada por um notório amadorismo e por alguma incompetência, pondo a nu as fragilidades da sua organização e funcionamento. Não basta defender reivindicações justas contra salários baixos e condições de trabalho gravosas; nem basta promover a unidade dos associados em torno das formas de luta adoptadas. Quando uma greve, para além de afectar o patronato contra quem é dirigida, produz efeitos imediatos na vida habitual do comum das pessoas é necessário explicá-la muito bem à população afectada, se não para conquistar o seu apoio ao menos para não despertar ou para conter a sua animosidade. E para que pequenos sindicatos assegurem a sua representatividade e consolidem a sua organização para além da acção imediata esporádica a direcção das lutas deverá ser encabeçada por dirigentes genuínos e capazes, não por consultores jurídicos (ainda que caricaturalmente disfarçados de dirigentes). Comunicação deficiente e direcção ambígua, para além de erros na táctica negocial e na reacção às acções do Governo, contribuíram decisivamente para a derrota dos grevistas.

Do Governo do PS não era de esperar grande decoro na gestão da situação política criada pela greve dos motoristas. Com a aprovação em comissão parlamentar da contagem do tempo de serviço dos professores, a corja no poleiro ensaiara a ameaça de crise política, encenando a dramatização dos custos incomportáveis para o equilíbrio das contas públicas, para conquistar apoio entre o eleitorado de direita; e com as anteriores greves dos estivadores, dos enfermeiros e dos motoristas já se apercebera de que a dramatização dos seus efeitos reais e imaginários na economia ou na população e o recurso à violação do direito de greve, ao autoritarismo e ao isolamento e derrota dos grevistas dá frutos, que agora seriam susceptíveis de lhe trazerem ganhos entre o eleitorado em geral. Serviços mínimos próximos dos serviços habituais, requisição civil, intimidação pela ameaça de prisão, uso da tropa, da GNR e da polícia na substituição de grevistas, nesta greve assistiu-se a um exercício de autoritarismo cuja amplitude há muito não se via. Tudo em nome da “lei e ordem”.

Os partidos apoiantes do Governo da corja nem ousaram repudiar a sua actuação; do BE apenas se ouviram reparos timoratos (salvaram-se os seus deputados Pedro Soares e, num artigo de ontem no Expresso, José Soeiro), enquanto do PCP, dizendo embora apoiar as justas reivindicações dos motoristas e criticando os excessivos serviços mínimos decretados, as críticas mais contundentes foram para a “greve por tempo indeterminado”, “impulsionada por exercícios de protagonismo e por obscuros objectivos políticos”, que “procura atingir mais a população que o patronato”, “acção cujos promotores se dispõem para que seja instrumentalizada para a limitação do direito à greve”. Não admira, portanto, que a CGTP, no mesmo registo, não tenha manifestado qualquer solidariedade com os grevistas e que a sua federação do sector, ao invés, se tenha prestado desde Abril, a pretexto da revisão do actual CCT, a ser usada na sabotagem da greve. Na ausência dos tradicionais sindicatos amarelos da UGT, coube à CGTP o desempenho desse abominável papel. Isso não lhe terá causado grande incómodo, sabendo-se que um sindicalismo de frete, "responsável" e “a bem da economia nacional”, é o que tradicionalmente o PCP lhe tem destinado.

Os meios de comunicação comportaram-se como meros amplificadores da propaganda governamental. Uma geração de jornalistas maioritariamente jovem mostrou não ter consciência do que estava em jogo, apesar de ela própria ser uma das vítimas dos baixos salários, da precariedade e das condições de trabalho sem regras que se vão implantando impunemente. O comentariado político, maioritariamente entregue a gente de direita e de centro-direita, entreteve-se na contabilidade dos ganhos e perdas do Governo e da Oposição, aproveitando para clamar da orfandade da representação partidária de parte da direita face à ocupação de algum desse espaço pelo PS. À “sociedade civil” a actuação do Governo parece não ter suscitado grandes reparos. Salvaram-se uma ou duas dúzias de vozes, tendo como paladino o advogado Garcia Pereira, denunciando a intolerável violação da Constituição e da lei por parte do Governo e a conivência do Presidente da República. O resto, quase tudo calado que nem ratos.

Resolvida a “grave situação” a contento do capital, “sem necessidade de alteração da lei da greve, bastando aplicá-la”, porque no limite poderá não haver distinção entre os serviços mínimos e o serviço normal e a requisição civil poderá ser usada sempre e até preventivamente, como chegou a ser aventado, o demagogo e malabarista Tó gosta do poleiro prepara-se, lampeiro, para retomar o gozo das suas merecidas férias. Em tempos tivemos um demagogo que prometia ao povo “bacalhau a pataco”, também Costa de seu nome e igualmente “progressista”, cujo ódio aos trabalhadores e às suas lutas justificou a carinhosa alcunha de “racha sindicalistas” por que ficou conhecido; o de agora já vai merecendo o título de “arrebenta greves”. É caso para dizer-se: não se ponham a pau com o artista, não…

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