quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O "sindicalismo de classe", a CGTP e o PCP


O “sindicalismo de classe”, a CGTP e o PCP:

de vitória em vitória até à derrota final



José Manuel Correia


Os coordenadores da CGTP-IN, desde os tempos em que era apenas Intersindical, têm primado por serem políticos reformistas disfarçados de sindicalistas, curiosamente, todos membros do PCP. Nem por isso, fartaram-se de encher a boca com a defesa de um dito “sindicalismo de classe”, que nada tem que ver com o verdadeiro sindicalismo, o que existe para defender e lutar pelos interesses económicos dos trabalhadores. O tal “sindicalismo de classe” é suposto ser um “sindicalismo revolucionário”, cujas lutas favoreçam a criação das condições necessárias para a insurreição e cuja capacidade mobilizadora ajunte rapidamente as massas operárias para a porradaria necessária. É claro, esse “sindicalismo de classe” de boca nada tem de “classe” nem, muito menos, de revolucionário. É apenas um “sindicalismo” subordinado aos interesses tácticos do PCP, o partido que de si próprio diz ser um partido revolucionário (ou dizia, porque um partido que se afirma a vanguarda da classe operária e dos trabalhadores e já com a vetusta idade de quase cem anos, num país com a tradição, ou o fado, de trabalhadores pobres, que a cada ano ficam mais pobres e são explorados até ao tutano, e ainda não fez revolução nenhuma, já vai tendo alguma vergonha em se apresentar como um partido revolucionário).

O último dos ex-coordenadores da CGTP, o Carvalho da Silva, um católico piedoso rapidamente convertido ao comunismo depois do 25 de Abril de 1974, foi talvez o caso mais notório de um político “reformista de direita”, conciliador até dizer chega, defensor de um sindicalismo de frete ao patronato e aos Governos, “responsável” e “a bem da economia nacional”. Antigo operário com pretensões a intelectual (com capacidades suficientes para acabar licenciado e não sei se mestre ou doutor, embora pela universidade dos amigalhaços do PS, o ISCTE, mas o que não lhe retira qualquer mérito pessoal, e de há anos colunista e professor universitário), não era tão palavroso quanto o que lhe sucedeu, e também era mais comedido a mentir (lembrar-se-ia ainda de que era pecado, ou o ateísmo tardio já lhe permitira desmascarar a mistificação da culpa e do pecado?). Valeu-lhe, no seu longo consulado de coordenador (25 anos, de 1987 a 2012), a existência da UGT, uma dita central sindical amarela criada pelos “amigos” social-democratas (de uma altura em que a social-democracia ainda não corava pelo uso dessa designação e aqui até preferia ser chamada de “socialista”) para fazer os fretes mais escabrosos ao patronato e aos Governos, que assim lhe permitiu passar por “sindicalista responsável”, não vendido ao patronato (porque nada acordava), mas que também não lutava por nada (por feitio ou por sujeição à táctica do seu partido) e pouco conquistava.

O seu tempo foi também o das “grandes jornadas de luta” e das “grandes vitórias” proclamadas com ufania pela CGTP — as greves gerais de 1988, 2002, 2010 e 2011 — fazendo jus ao lema: “de vitória em vitória até à derrota final!”. Os resultados dessas “grandes jornadas de luta” e dessas “grandes vitórias” dos últimos vinte anos aí estão, de algum modo, também espelhados na pobreza actual: a acentuada redução do número dos trabalhadores do sector privado da economia sindicalizados, a degradação dos níveis dos salários e das pensões de reforma e de aposentação, o aumento da idade da reforma, a incapacidade reivindicativa do movimento sindical e o empobrecimento geral dos trabalhadores, o retrocesso sem paralelo da legislação laboral (que faria o fascista de juventude Marcelo Caetano, na tumba, dar umas sonoras gargalhadas se a comparasse com a legislação laboral aprovada no seu breve governo de pouco mais de cinco anos), a continuidade do escape da emigração para muitos milhares dos trabalhadores mais qualificados, a divergência cada vez maior do desenvolvimento do país em relação aos seus parceiros da União Europeia (UE), incluindo os do grupo dos atrasados saídos do comunismo soviético. E fiquemos por aqui, que o rol é extenso.

O actual coordenador da CGTP, Arménio Carlos, é também antigo operário quanto o outro, tão “reformista de direita” quanto o outro, tão defensor do “sindicalismo de classe” quanto o outro, tão empenhado no sindicalismo de frete ao patronato e aos Governos, “responsável” e “a bem da economia nacional” quanto o outro, mas, ao contrário do outro, é um pequeno verdadeiro artista. É mais palavroso do que o outro, mais mentiroso do que o outro, mais pateta do que o outro e mais etc. e tal do que o outro. Ao que me dizem, é membro do Comité Central (CC) do PCP, que isto de antigos operários nos órgãos de direcção dá sempre jeito para compor o ramalhete da tão glosada maioria operária, e quanto mais toscos e de cabeça dura melhor. Se não fosse este o caso, não seria novidade integrar um qualquer outro órgão intermédio, especializado nos sindicatos, e nessa qualidade participar nas reuniões do CC, tais foram os antecedentes: o Canais Rocha (paz à sua memória, também antigo operário, que se não era devera-se a culpa própria, pois capacidades intelectuais e experiência da política reformista do partido não lhe faltavam), o Armando da Silva e o Carvalho da Silva, que entravam pela porta dos fundos ou apenas estavam presentes depois das fotos da praxe e da saída dos jornalistas (na denúncia da Zita Seabra, nunca desmentida).

O PCP tem entre os seus militantes alguns milhares de operários e de outros trabalhadores assalariados qualificados nas suas profissões, com capacidades suficientes para dirigirem qualquer organização de qualquer tipo e dimensão, e com uma crença genuína na utopia do comunismo. Eventualmente, terá também algumas centenas verdadeiramente empenhados na luta pela defesa dos interesses dos trabalhadores, que no dia-a-dia darão provas disso. Desde há muitos anos (embora nem sempre tenha sido assim), o PCP acolhe a militância ou a simpatia do operariado em maior número do que qualquer outro partido do espectro político português, sem margem para qualquer dúvida. Mas o PCP, também desde há muitos anos, acolhe milhares de trabalhadores não assalariados e muitas centenas de “intelectuais”, de quadros técnicos, de agricultores, de comerciantes e de pequenos e médios empresários artesanais e industriais, numa amálgama classista mais próxima da de um partido social-democrata (à moda antiga) do que da de um verdadeiro partido de operários e de outros trabalhadores e comunista. Uma tal realidade do PCP não é muito diferente da que foi a dos partidos comunistas dos países desenvolvidos nos últimos cinquenta-sessenta anos, e não teria grande significado se esses partidos, e o PCP, se orientassem pela defesa clara dos interesses dos trabalhadores (do operariado e dos outros trabalhadores por conta de outrem).

A realidade, sempre a maldita realidade, mostrou que a generalidade desses partidos, primeiro, abandonou a crença no comunismo soviético, depois, perdeu a fé no marxismo-leninismo e na revolução (de democracia-popular, proletária, socialista ou de qualquer outra designação), depois, renegou o próprio marxismo, gradualmente perdeu a relação que havia mantido com a defesa dos interesses dos trabalhadores, misturando-os com os interesses do “povo”, transformando-se em partidos social-democratas sem credibilidade (porque os genuínos são sempre melhores e preferíveis às imitações), e, por fim, acabou descaracterizada, reduzida a pequenos grupelhos, acabando a maioria por desaparecer. O mais importante para um tal desfecho nem terá sido a descrença no marxismo-leninismo nem o abandono da profecia comunista nem o repúdio da revolução, porque os partidos comunistas poderiam ter mantido essas retóricas como património da sua história, parte do seu folclore e ilustração da sua compreensão da realidade dos tempos em que foram intervindo; o mais importante, certamente, foi o abandono da luta pela defesa dos interesses dos trabalhadores assalariados, disfarçado de luta pelos interesses do “povo”.

Quando abandonaram a crença no comunismo, a fé no marxismo-leninismo e na revolução e acabaram a renegar o próprio marxismo, os partidos comunistas mostraram à saciedade que o que os movera na sua longa existência não fora a luta política pela defesa dos interesses dos trabalhadores, mas a ilusão de que sobrevinda a revolução, qualquer que fosse, eles se transformariam em parte da nova elite governante, e, no caso de vitoriosa a revolução socialista proletária, como ditava a profecia marxista, na nova elite governante. A ruína e a queda fragorosa dos regimes comunistas pelo falhanço do capitalismo de Estado monopolista que constituíam e que apresentavam como alternativa ao capitalismo privado, e a profecia marxista da revolução socialista proletária não se concretizava nem nos mais avançados e desenvolvidos países do mundo capitalista privado, fizeram ruir também as suas pretensões a nova elite governante, e trataram de ajeitar as suas políticas ao modo de alcançarem algumas migalhas num qualquer Ministério de um qualquer Governo burguês de gestão do capitalismo. O modo como abjuraram o comunismo realmente existente, que desde sempre haviam louvado como modelo, foi no caso de muitos desses partidos macabro e até vergonhoso. E abandonaram o marxismo invocando os argumentos mais estapafúrdios, sem nada que ver com qualquer crítica teórica dos equívocos e dos erros do pensamento marxista, que durante tantos anos também haviam louvado como explicação certa da realidade económica e social e tinham transformado em profecia segura sobre o futuro por acontecer.

Os partidos são apenas organizações políticas que existem para defenderem os interesses da classe ou das classes sociais que pretendem representar e são livres de adoptarem os ideários que mais se coadunem com as ilusões que enformam os desejos e as visões do mundo e do seu porvir da classe ou das classes suas representadas. Actores num mundo em permanente mudança, estudiosos apenas das tácticas próprias e das alheias, de modo a adoptarem as que julguem melhor servir os interesses dos que pretendem defender e representar, não são propriamente instituições científicas que possam caucionar uma qualquer ideologia como teoria científica. Apesar disso, muitos partidos comunistas — mesmo os fora do poder e que por isso usufruíam das liberdades das democracias burguesas, através da miríada de intelectuais especialistas em economia, em filosofia, em sociologia, em ciência política que os enxameavam na condição de militantes e de “companheiros de jornada”, que ensinavam nas melhores universidades e até beneficiavam de financiamentos para pesquisa, participando na difusão do pensamento marxista — proclamaram o marxismo-leninismo como uma teoria científica, sendo assim os autores da formação e da difusão de um verdadeiro embuste político e intelectual, talvez o mais grave dos embustes intelectuais das últimas décadas. Uma história a todos os títulos desprezível, qual autêntica vergonha, que acabou descredibilizando irremediavelmente esses partidos.

Durante um tempo, os partidos comunistas ainda transformaram a luta revolucionária em luta anti-imperialista, louvaram as lutas nacionalistas de libertação do colonialismo, mesmo das colónias das suas metrópoles, glorificaram o simulacro de revoluções socialistas com que os novos Estados soberanos transformavam etnias em nações e nações em Estados organizando o Estado como dirigente do desenvolvimento acelerado a que tinham direito, reproduzindo o que fora o desenvolvimento acelerado que ocorrera outrora na Rússia ou na China, ficando a grande maioria desses novos Estados independentes que romperam com as antigas potências colonizadoras totalmente dependente das ajudas do comunismo soviético ou chinês. Depois, mais claramente quando passaram a questionar a orientação emanada do partido-guia da URSS e sofreram a concomitante redução dos financiamentos com que dantes aquele lhes retribuía a fidelidade e o apoio, os quais ajudavam a suportar parte dos seus avultados custos de funcionamento — apesar da grande abnegação que sempre caracterizou os seus militantes, das dádivas e dos legados de adeptos e de "amigos" ricos e endinheirados e das subvenções estatais que auferiam pelos seus resultados eleitorais — esses partidos operaram grandes transfigurações. De partidos operários, comunistas, revolucionários, defensores dos interesses dos trabalhadores assalariados transformaram-se em partidos interclassistas, progressistas, defensores dos “interesses populares”, capazes de serem aceites sem pingo de receio pelas burguesias nas sociedades desenvolvidas em que existiam e desejosos de participarem no banquete do poder. Nem assim conseguiram fazê-las ultrapassarem arreigados receios e foram desprezados. O resultado é conhecido.

À maioria dos militantes desses partidos a realidade acabou entrando-lhe pelos olhos dentro, desmoronando antigas erradas crenças transformadas sem qualquer fundamento em profecias, vencendo o voluntarismo que tinha regido as suas vidas de abnegação ao serviço da transformação social, após o que sobreveio o desânimo e, para os mais idealistas, a grande desilusão das suas vidas. Ainda hoje, muitos desses velhos militantes não fazem ideia do que falhou da sua adorada utopia e impediu a concretização da anunciada profecia. Confortam-se com a crítica da perestroika e do reformador Gorbatchov, que tentou reformar o irreformável, a quem apelidam de traidor, com as transformações malévolas do capitalismo actual, que designam por neo-liberalismo quando é apenas um ultra liberalismo guiado pela ambição desmedida e pela ganância sem escrúpulos, com o fomento da guerra por tudo quanto é lado que tenha cobiçadas matérias-primas e com a instauração do caos político sempre que Governos hostis ponham em causa os interesses dos capitais estrangeiros aí estabelecidos ou entravem a implantação de outros erigidos como instrumentos políticos banais pelo imperialismo norte-americano. Próximos do fim das suas vidas, não lhes dá para questionarem as crenças que lhes deram sentido; para dor, chega o que é, pouco importa qual seja a verdadeira causa, já basta o que basta! Em quase tudo, menos na defesa acérrima da liberdade para todos e contra o Estado, fazem lembrar-me esses outros idealistas de antanho, os anarquistas (em Portugal, na sua versão mais notável de idealismo abnegado e corajoso de anarco-sindicalismo), por cujos deslumbrantes ideais começou a minha formação ideológica juvenil aos 15 ou 16 anos.

O PCP ainda não trilhou a parte do caminho de abandono das retóricas das crenças no marxismo-leninismo, na utopia comunista e na profecia marxista seguido pelos seus antigos congéneres estrangeiros. Que me tenha apercebido, abandonou a retórica revolucionária, mas isso é muito pouco relevante num partido que na sua já longa história de perto de cem anos nunca lutou pela revolução socialista proletária, quedando-se, nos períodos mais favoráveis internamente pelos reflexos da política internacional da luta contra o nazi-fascismo, pelas retóricas de pseudo revoluções intermédias. Nos anos quarenta, uma chamada revolução “nacional-democrática”; nos anos sessenta, uma outra revolução “democrática e nacional” ou revolução “anti-fascista”; e, por fim, após a revolução política anti-fascista ter sido levada a cabo pela tropa (e pela tropa do Quadro Permanente, o que não deixa de ter a sua piada, por capitães e majores fartos da guerra colonial a que os compromissos políticos marcelistas não permitiam pôr fim à vista), que a imediata movimentação popular espontânea ajudou a vencer e a consolidar na capital e depois por todo o país, uma mais recuada “democracia avançada”, todas a serem levadas a cabo de etapa em etapa (o famoso “etapismo” que sempre caracterizou as diversas linhas políticas do PCP e lhe permitiu ir disfarçando a sua característica fundamental de partido reformista). O PCP terá de prosseguir aquele caminho, sem vergonha do seu passado e sem cometer os erros dos seus congéneres, para poder ir continuando a existir. O passado foi o que foi, e assim também as ideias que se tiveram sobre o que pareciam ser os presentes que o foram constituindo e sobre o que era desejado que o futuro fosse. Mas deverá assumi-lo nessa perspectiva, e tentar compreender o presente com as ideias do presente, não com as ideias velhas do passado, nomeadamente, porque se mostraram erradas e meras ilusões. O tempo dos profetas passou com as mitologias, já acabou, e as profecias deram no que deram.

Nos últimos quarenta e poucos anos, a própria “democracia avançada”, adoptada da similar do Partido Comunista Francês (como as outras foram adoptadas de outros partidos congéneres que também seguiam as orientações reformistas de direita saídas do VII Congresso da Internacional Comunista (IC), em 1935), foi tendo as suas evoluções, à medida que o futuro, de radioso (porque a URSS se preparava para a instauração do comunismo e o Partido Comunista da União e os das Repúblicas federadas se transformavam em partidos de todo o povo), se tornou inesperadamente negro, com o verdadeiro terramoto político que ficou constituindo a transformação e a queda dos regimes comunistas por todo o lado, a reunificação da Alemanha, o fim da URSS e o renascimento da velha Rússia e a autonomia e a conquista da independência pelas antigas repúblicas federadas; e depois se foi tornando cada vez mais negro, com a expansão do capitalismo privado por todo o mundo, ocupando os mercados outrora fechados ou condicionados dos países de regimes comunistas, e o imperialismo americano, a partir de então sem adversário à altura para dissuadi-lo, aumentou de agressividade sem pudores e sem qualquer necessidade de a disfarçar. Uma das evoluções da “democracia avançada” foi uma chamada “democracia avançada no limiar do século XXI”, limiar que já lá vai; e, desde há uns poucos de anos, “uma política patriótica e de esquerda com os valores de Abril”, defendida como parte integrante da tal “democracia avançada” que não se sabe bem o que seja. Ou, melhor, sabe-se muito bem o que seja e só não vê quem não quer ver: a implantação do comunismo, por qualquer variante das velhas formas conhecidas ou por formas novas por inventar, relegada para “dia-de-São Nunca, à tarde”, e uma táctica política “reformista de direita”, procurando chamar à razão a social-democracia, em continuidade com uma sua antiga política de alianças designada inicialmente por “maioria de esquerda” (do tempo, logo a seguir ao 25 de Abril, em que o partido ainda considerava o PS um partido de “esquerda”, embora com uma política de direita) que nunca deu os frutos imaginados pelo PCP.

Esta evolução da linha política do PCP foi acompanhada da identificação de um novo inimigo externo como sendo o causador dos grandes males que atingem a sociedade portuguesa. Ao contrário do que acontecia dantes, em que esse inimigo era o imperialismo americano, que permanentemente provocava a URSS ameaçando a sua existência e suportava o fascismo salazarista, o novo inimigo foi identificado com a UE, essa “aberração política”, faz de conta que democrática, resultante da transformação da união aduaneira CEE (Comunidades Económicas Europeias) em organização supra nacional do grande capital europeu, dirigida por uma chusma de gestores sem legitimidade representativa e sem controlo, que usurpou parte da soberania dos países aderentes e criou uma moeda própria gerida por um banco central dotado de autonomia face aos seus órgãos políticos (a Comissão Europeia, a Presidência da União, o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu), que não constitui prestamista de último recurso dos países aderentes que substituíram as moedas nacionais por aquela moeda (aos quais não empresta directamente e, apenas em situações especiais, recompra no mercado interbancário parte das suas dívidas aos bancos comerciais privados, que assim ganham sem qualquer risco) e cuja política financeira é determinada pelos interesses das burguesias dos países membros mais desenvolvidos. Se a denúncia do que representa a UE é correcta, a forma como tem sido efectuada tem-se mostrado contraproducente, porque da adesão não têm resultado, para os países de capitalismo dependente, apenas malefícios. Tanto assim que não foi nem é contestada, e até era de há muito desejada, pelos capitalistas portugueses (grandes, médios e pequenos, porque todos mamam da teta dos fundos comunitários que desde a adesão jorram aos muitos milhões e têm à disposição um mercado livre ampliado), que dela tiram os maiores proveitos e da qual os trabalhadores portugueses também têm beneficiado, ainda que em muito menor escala (basta lembrar as baixas taxas de inflação dos preços, as baixas taxas de juros e o emprego que esses fundos têm permitido manter ou criar). Os problemas que impedem ou entravam o desenvolvimento do país e agravam as condições de vida dos trabalhadores não advêm da adesão à UE, mas do carácter parasitário da burguesia dependente portuguesa e das políticas levadas a cabo pelos seus sucessivos governos.

A identificação de um inimigo externo causador de todos os males que nos afligem é um conhecido subterfúgio, uma velha táctica dos partidos comunistas (e do PCP desde há muito), que com ele desviam as atenções dos graves problemas internos que não se mostram capazes de transformar ou de resolver. E dos principais desses males internos são os salários baixos, a precariedade do emprego, o desemprego e a deliberada desregulação do mercado do trabalho pelo retrocesso da legislação laboral. Os trabalhadores não precisam de subsídios do Estado da burguesia para tudo e mais alguma coisa, precisam de ser respeitados na sua condição, de ter emprego com um mínimo de regras, de estabilidade e de direitos e, acima de tudo, necessitam de salários dignos que os retirem do fado português de serem os que mais horas trabalham por semana e os que menos ganham, enfim, que acabe a sina de terem de ser trabalhadores pobres, dos mais pobres da Europa, que parece não querer abandoná-los. E essa luta persistente e difícil na defesa dos interesses económicos dos trabalhadores foi o que sempre caracterizou o sindicalismo, não o “sindicalismo de classe” que subordina os sindicatos à táctica política do PCP, mas o verdadeiro sindicalismo. Pela situação a que chegámos, com cada vez maior número de trabalhadores pobres, a fazer lembrar os tempos da “primavera marcelista”, dá para ver o que tem sido o “sindicalismo de classe”: um sindicalismo de frete ao patronato e aos Governos, “responsável” e “a bem da economia nacional”. Os trabalhadores já não frequentam a “sopa do Sidónio”, a “sopa dos pobres”, que nos tempos de Guterres, “o pio”, quiseram substituir pelo “rendimento mínimo garantido”, mas vêem-se forçados a recorrer aos esquemas mais indignos (da ida aos bancos alimentares contra a fome, a outras formas de ajuda mais expeditas e encapotadas e ao endividamento permanente) a que a sobrevivência os obriga.

O que as retóricas etapistas do PCP encobrem traz algum mal ao mundo? Nenhum. Traz, inclusive, algum mal aos trabalhadores portugueses? Igualmente nenhum. Para os seus militantes e adeptos, apesar das gritantes contradições que reflectem, poderão até ser motivo de orgulho no idealismo que representam e na “clarividência” táctica do seu partido para fazer cumprir a profecia marxista. E para o próprio partido poderiam até constituir uma forma de espelhar a sua já longa história e o folclore que a tem acompanhado, que apesar dos fracassos persiste ir existindo (e oxalá que continue por muitos e bons anos). O grande problema do PCP não é, nem nunca foi, as suas retóricas, que hoje se mostram caricatas quando confrontadas com a maldita da realidade: é, e sempre foi, o seu “reformismo de direita”, que além de não fazer jus à sua designação de há muito abandonou a defesa dos interesses económicos e políticos dos trabalhadores assalariados. Dantes, durante os tempos negros da repressão do fascismo salazarista e, depois, na chamada “primavera marcelista”, ainda se compreendiam as fraquezas de um pequeno partido perseguido e reprimido, as cautelas organizativas e a exiguidade da formação ideológica e política dos militantes e os medos do arbítrio e da brutalidade da polícia política e da privação da liberdade durante longas penas, assim como a moderação táctica, na ânsia de ampliar a frente anti-fascista. Mas depois do golpe de Estado que derrubou o regime corporativo-fascista, senhores, depois de a tropa ter feito a revolução política que cabia ao partido tido como vanguarda da classe operária e dos trabalhadores desencadear dirigindo as amplas massas que a fariam? E é daí, de há quarenta e cinco anos a esta parte, que aparece às claras, sem subterfúgios, o “reformismo de direita” que desde há muitos anos tem caracterizado a linha política do PCP.

A táctica política do PCP é uma desgraça (chamo a este partido, desde há anos, “o drama que calhou em sorte à classe operária”). O “reformismo de direita” que a tem caracterizado passou a ser prosseguido há uns anos de forma clara, desde então, por uma direcção onde pontuam alguns operários, uns mais velhos e outros menos, mas que não sabem traçar para o partido uma linha política autónoma, que defenda os interesses dos trabalhadores. Um partido classista não tem de ter um programa para o País, como teima em apresentar o PCP; tendo um programa que defenda os interesses dos trabalhadores nos múltiplos aspectos da vida social defenderá certamente os principais interesses do País. Um partido que se afirma classista, mas que defenda, ao invés dos interesses dos trabalhadores, os interesses do “povo” e dos pequenos e médios capitalistas que os exploram, que aponta como verdadeiro inimigo não os governos e as suas políticas ao serviço do capital e contra os interesses dos trabalhadores, mas a UE, querendo parecer melhor conhecedor e defensor dos interesses da burguesia dependente portuguesa do que ela própria, revela-se uma fraude confrangedora. Os dirigentes de origem operária, em geral, quando jovens, aventureiros e corajosos, ou, sendo mais velhos, estudiosos e idealistas, e, nos tempos que correm, com um pezinho para a dança e veia para os adágios, ainda que malta porreira, por vezes, são ainda mais "tapados", agradecidos e subservientes do que dirigentes oriundos de outras classes sociais próximas, mas com discernimento e firmeza suficientes para adoptarem a defesa dos interesses dos trabalhadores e a ela se manterem fiéis, sabendo distinguir o que são os interesses da classe que o partido deveria representar e os interesses dos seus aliados próximos, que não o deveriam integrar. Admitir no partido pequenos e médios patrões que exploram trabalhadores assalariados era situação que não permitiriam ocorrer.

Infelizmente, essa sorte não calhou ao PCP, podem crer. Para só falar de dirigentes máximos, não foram os casos do empregado de escritório Carlos Rates, do médico Ludgero Pinto Basto, do filho de família abastada da burguesia rural e comercial do Cadaval Júlio de Melo Fogaça, do engenheiro da companhia dos telefones Vasco de Carvalho, do médico Vítor Hugo Velez Grilo, do advogado e artista plástico e literário Álvaro Barreirinhas Cunhal e do economista e filho de família abastada da burguesia comercial de S. Pedro do Sul Carlos Gomes Carvalhas (alguns deles herdeiros das fortunas e dos negócios das famílias, ou de parte, e assim também continuando patrões exploradores, fazendo lembrar o caso do Engels). A sua adesão ao PCP pouco ou nada teve que ver com a luta pela defesa dos interesses dos trabalhadores assalariados. O oportunismo, nuns casos, o anti-fascismo, noutros, e uma adesão genuína ao bolchevismo vitorioso e à profecia messiânica marxista que ele parecia concretizar, dando a dignidade aos deserdados de tudo e prometendo a fraternidade, a igualdade entre os cidadãos e a abundância, pondo fim à miséria e à pobreza, criando um homem novo, uma estética nova, uma cultura sem precedentes e acabando com a exploração do homem pelo homem, realizando a utopia comunista e concretizando a profecia messiânica marxista foi certamente o que deslumbrou e motivou uma plêiade de jovens intelectuais a aderir ao único partido existente que fazia frente ao proto fascismo do regime da ditadura militar e depois ao fascismo salazarista.

De todos eles, o intelectual comunista na verdadeira acepção do conceito acabou por ser o Álvaro Cunhal, o mais jovem — em 1935, com 22 anos de idade, já era dirigente da FJCP (Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas) e assistira em Moscovo a um dos Congressos da IJC (Internacional das Juventudes Comunistas) — fanático entre os fanáticos, esteta e asceta reconhecido, um autêntico e talvez mediano artista que se revelava como escrevinhador prolixo, principalmente no Diabo, o jornal que os militantes do partido estranhamente controlavam, em defesa das novas ideias estéticas do jdanovismo, mostrando uma ambição desmedida de prosélito exuberante. Chamado ao secretariado do velho partido ainda no tempo do Ludgero e da Carolina Loff para preencher a vaga aberta com a prisão do Francisco Miguel, nos meados de 1941 Cunhal foi apanhado pelo surgimento de um grupo de críticos da direcção do partido que tentava usurpá-la e pretendia expulsar os seus membros, mandatado pela Organização dos Comunistas Presos no Tarrafal (OCPT). Os críticos justificavam-se com as suspeitas de infiltração policial no partido existentes nos tarrafalistas e na Internacional Comunista (IC), perante as razias que o esvaziavam e colocavam em risco a sua existência, vegetando numa quase inacção (por exemplo, o Avante! não se publicava havia muitos meses). O iniciador desse processo de purga congeminado no Tarrafal foi o anterior dirigente do secretariado Júlio Fogaça, libertado daquele Campo de Concentração pela amnistia concedida pelo regime por altura das comemorações dos centenários, em 1940, e assumido delfim do Bento Gonçalves, o dirigente operário e primeiro-secretário do partido, que continuava preso. Fogaça trazia não só a incumbência de correr com a direcção existente e expurgar o partido dos elementos mais duvidosos, como era ele próprio um dos acérrimos defensores da tese da infiltração policial.

O processo teve muito pouco de edificante, exemplo dos métodos do vale tudo típicos dos comunistas, que denegriram a honradez e a dedicação de dirigentes honestos e empenhados que pouco ou nada poderiam fazer em tempos de refluxo do movimento operário, de grandes deficiências organizativas do partido e da quase total ausência de cuidados conspirativos — em violação das normas leninistas de organização que o Bento, com a ajuda do brasileiro Júlio César Leitão (militante do Partido Comunista do Brasil, expulso do seu país por ser um “indesejável agitador comunista”) e do comunista espanhol Manuel Preciado, bem se esforçara por implementar a partir da Reorganização de 1929 que o salvou da extinção — e de intensa actividade das polícias políticas (várias, naquele tempo), e ainda perante as dificuldades colocadas pela defesa do tratado de paz firmado entre a URSS e a Alemanha nazi (o chamado “pacto germano-soviético”), em 1939, que entre outras coisas permitia dividirem entre si parte da Europa. Cínico e ambíguo o bastante, até ver onde paravam as maiorias, vencidas as ambiguidades e as indecisões iniciais Cunhal acabou bandeando-se para o lado dos cisionistas, o campo que lhe prometia os maiores êxitos pessoais, embora criticando os métodos que utilizavam. Como recompensa, ingressou no CC do novo partido, destacado para a sua construção na região norte, onde o velho partido entretanto fora devastado por levas e levas de prisões. O que os cisionistas criaram foi um novo partido, assim considerado pelos próprios, que durante uns anos concorreu com o velho partido, que apelidavam de “grupelho provocatório”, tanto mais que o Congresso que realizaram em 1943 foi designado por primeiro Congresso (concepção abandonada posteriormente). Vasco de Carvalho, um dos dirigentes à época, viveu ainda longos anos, mas teve a ousadia de não perdoar aos caluniadores da sua honra e sincera dedicação ao comunismo e ao partido que dirigia em condições tão adversas. Muitos anos depois, Cunhal acabou fazendo leves referências às injustiças cometidas durante um processo tão escabroso.

Passado um ano, em 1942, o Júlio Fogaça foi de novo capturado, preso, condenado e mandado de volta para o Tarrafal. Ou a purga fora muito incompleta, ou os cuidados conspirativos ainda não se encontravam afinados ou as polícias políticas, entretanto unificadas como PVDE (Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado), tinham adquirido já um conhecimento que lhes ia permitindo continuarem a desbaratar o novo partido. O Cunhal é chamado do Norte para integrar o secretariado do CC, colmatando a falta de um intelectual com capacidade para escrever os textos de informação interna e de propaganda. Para o bem e para o mal moldou o partido segundo as suas próprias concepções, sem qualquer oposição e com uma férrea disciplina. Para o bem, de 1942, desde a nova prisão do Fogaça, e até 1949, altura em que ele próprio foi preso, transformou o partido num verdadeiro partido clandestino, que lhe permitiu a continuidade da existência durante a ditadura fascista e até à actualidade, durante perto de oitenta anos; para o mal, dotou-o de uma linha política "reformista de direita", apesar de tudo melhor elaborada e menos oportunista do que a do seu rival Júlio Fogaça, depois seu sucessor durante os onze anos da sua prisão e até à fuga do Forte de Peniche, em 3 de Janeiro de 1960. De novo na clandestinidade e de imediato integrado no secretariado do CC, a retomada do poder no partido foi rápida, consolidada com a saída do Fogaça daquele órgão e a sua nova e oportuna prisão em Agosto de 1960. Apesar das grandes qualidades de inteligência e de capacidade de trabalho, de dedicação total à actividade partidária, do fanatismo pela obra do comunismo realmente existente, do enaltecimento dos êxitos da URSS, que alardeava e de que era um confesso admirador, o Cunhal não tinha as qualidades exigidas a um dirigente revolucionário. Era um artista, um esteta, metódico e dedicado, mas reformista.

Mas há pior do que a actual direcção “reformista de direita” do PCP. Entre esses estão os críticos lunáticos, retrógrados, que clamam que o PCP deixou de ser um partido revolucionário, um verdadeiro partido comunista, como se alguma vez o tivesse sido; que continuam a sonhar com a mitologia marxista-leninista e com o cumprimento da profecia marxista, criticando o “etapismo” do reformismo do partido, como se isso não fosse desde sempre a sua imagem de marca; que se revelam ideologicamente arcaicos e crentes em profecias, e, em simultâneo, tão defensores do “sindicalismo de classe”, o sindicalismo de frete ao patronato e aos Governos, “responsável” e “a bem da economia nacional”, quanto a direcção “reformista de direita” que criticam pelo acordo feito com o PS e por aspectos de mero funcionamento do partido e da ausência de debate interno. Basta ver o coro que fazem com ela acerca do aparecimento de sindicatos não controlados pelo PCP e das lutas que têm a ousadia de desencadear à revelia dos seus sindicatos de frete ao patronato e aos Governos, e que mesmo com grandes deficiências e sujeitas a grande sabotagem acabam por dar os seus frutos. A direcção “reformista de direita” do PCP tem muitas deficiências, agravadas nos últimos quatro anos pela oportunidade perdida, numa situação que de algum modo lhe era favorável, de obter algumas concessões que se vissem a troco da ajuda para o regresso do PS ao poder, mas ao menos teve o bom senso de começar a abandonar alguns dos mitos que as suas retóricas encobriam (por enquanto, timidamente, apenas o da revolução por via da insurreição e o do comunismo, relegado “para além das nossas vidas”). Mas mostrou ter receio das críticas, públicas mas anónimas, que os críticos, que certamente conhecerá, lhe dirigiram, e no próximo congresso, para apaziguar as hostes, integrará alguns deles. Se assim for, a bagunçada ideológica e política irá agravar-se. Esse não é o caminho para lidar com fanáticos; o lugar deles é numa qualquer seita.

Os comunistas, fanáticos ou meros idealistas (como a maioria não se cansa de admitir com orgulho, sem se aperceber da contradição com o materialismo da sua pretensa ideologia), crentes laicos numa nova Terra Prometida, sonho que alimentam pela fonte inesgotável da esperança, pouco se distinguem dos crentes de qualquer religião, profana ou sagrada. Para todos, o sonho comanda a vida, como a realidade mostrou ao espelho a sua aparência para inspiração do poeta no seu devaneio.


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