domingo, 4 de outubro de 2020

Competitividade pelos salários baixos: a estupidez volta a atacar


Nos últimos dias, em jornais ditos de referência e num ou noutro blog, têm aparecido algumas vozes clamando contra os elevados custos do trabalho em Portugal. Algumas dessas vozes preconizam também a não existência de um salário mínimo e outras colocam-se manifestamente contra qualquer aumento desse salário (seria "criminoso", disse o Ferraz da Costa, um artista com longo passado na matéria). Defendem, além do mais, que a redução dos salários (nomeadamente dos indirectos ou contribuições para a segurança social) ou a não existência de um salário mínimo seriam medidas inteligentes. Sem entrar pelo que é a estrutura dos preços de custo da produção e da parte dos salários nesses preços de custo, a “bondade” de um tal argumento advém da afirmação de que em Portugal as empresas tenderiam a substituir trabalhadores por máquinas (entenda-se maquinaria automatizada sofisticada e robots) por causa dos actuais “salários altos” ("encarecidos", nomeadamente, pelos salários indirectos ou contribuições para a segurança social).

Se assim fosse, se os salários em Portugal fossem realmente altos, a maquinação automatizada (a automação e a robotização) entre nós seria ou tenderia a ser um facto, o que é contrariado pela realidade (a presente e a tendência da sua evolução). A introdução da automação e da robotização ocorre, maioritariamente, em países e em ramos da produção em que os salários são realmente altos, e não ocorre tanto em Portugal porque aqui eles são realmente baixos. Mas mesmo naqueles casos a correlação entre automação e robotização e salários altos não é sinónimo de causalidade. Tanto assim é que ela ocorre também em países e em ramos em que os salários são comparativamente baixos, principalmente introduzida pelo investimento directo estrangeiro que já usa essa tecnologia (e por isso também a usa aqui, ainda que em menor escala, sendo a China o caso mais evidente) ou por empresas que pretendem conquistar mais vantagens competitivas pelo aumento da produtividade apesar dos salários baixos que pagam (veja-se o caso paradigmático da empresa de comercialização intermediada e de distribuição Amazon), que assim ganham a dois carrinhos, conjugando salários baixos e níveis altos da produtividade proporcionados pela automação e a robotização.

Defender a descida dos salários para evitar a automação e a robotização da produção onde ela for possível (“ao ficar mais barato, o trabalho só será substituído por máquinas se for mesmo muito mais barato, ao contrário do que acontece hoje”, disse um outro artista num blog, sem notar a contradição do que afirma) e apresentá-la como "medida inteligente" (na presunção deste último artista) é sinal não de inteligência, mas de cegueira ou de estupidez. Num país em que os níveis da produtividade são baixos (provocados pela baixa qualidade da gestão empresarial, mas também pela baixa composição orgânica e técnica do capital) e em que a pouca competitividade com o exterior tem assentado nos salários baixos, preconizar medidas que contribuiriam para a manutenção da baixa produtividade e para a reprodução do ciclo vicioso da competitividade pelo baixo nível dos salários só pode ser causado por grande reaccionarismo ideológico ou, então, por retinta estupidez.

A automação e a robotização crescente da produção não tem relação directa com os preços do trabalho (com os quais existe apenas uma relação indirecta), mas tem fundamentalmente a ver com o aumento da produtividade que proporciona, o que permite reduzir os custos de produção e aumentar a competitividade de umas empresas em relação às concorrentes, aumentar a produção, reduzir o ciclo de rotação do capital circulante e assim proporcionar o aumento da lucratividade. A melhoria da competitividade pelo aumento da produtividade e, através dela, da lucratividade, é o fundamento da automação e da robotização da produção. E o número de trabalhadores dispensado pela automação e a robotização tenderá a ser marginal, mesmo que possa ocorrer significativamente na produção directa nalguns ramos, pois ela tenderá a aumentar o emprego noutros ramos (ainda que emprego talvez mais precarizado e de baixos salários) e também naqueles de produção e de manutenção das máquinas automáticas e dos robots (nos quais os salários são em geral altos).

O aumento da produtividade proporcionado pela automação e a robotização tem como senão o aumento da produção, porque em geral a produtividade não cresce significativamente com a produção constante. Como o problema das empresas nunca foi produzirem as mercadorias (seja com que tecnologia for), mas vendê-las (porque é isso que transforma realmente os produtos em mercadorias e o seu valor de custo de produção em capital dinheiro e o valor apropriado como trabalho em valor apropriado como lucro), o aumento da produção traz consigo o risco acrescido das crises de sobreprodução (e, em cada empresa, o aumento do risco da obtenção do lucro e, mesmo, o do retorno do capital consumido). A automação e a robotização se levadas ao extremo seriam um absurdo, criando níveis de desemprego assustadores. Mas essa seria uma situação paradoxal, na qual a produção seria realizada por robots produzidos por robots. Numa tal situação paradoxal, em que com tanta produtividade os robots não conseguiriam consumir o que produziam, mesmo que produzissem também mercadorias para seres humanos de que valeria isso estando os seres humanos desprovidos de rendimentos para comprarem o que quer que fosse? Não creio que atinjamos a insanidade de uma tal situação paradoxal, pois que a humanidade não produzirá a sua escravidão (ou a sua extinção) de forma tão deliberada.

Almada, 04 de Outubro de 2020.


0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial