segunda-feira, 12 de abril de 2021

Coitado do Pinóquio! Até um juiz bonzinho o admitiu corrupto. Que mais irá acontecer-lhe?


Corre por aí um ror de clamores contra o juiz de instrução do processo judicial movido contra o Pinóquio e outros. Inclusive, foi lançada uma petição para a sua punição disciplinar. Reacção sem precedentes entre nós, visando condicionar a aplicação institucional da justiça pela pressão da reacção emocional e populista, subvertendo um dos pilares do Estado de direito. É mais uma peripécia atrabiliária a juntar a outras que marcaram a fase de inquérito e as condutas do Ministério Público (MP) e do juiz de instrução responsável.

O despacho instrutório do processo judicial movido contra o Pinóquio e outros arguidos, em relação a alguns crimes que lhes são imputados, terá erros, e alguns especialistas têm apontado vários. Restringindo-me ao crime de corrupção, embora seja leigo na matéria, parece-me que algumas das críticas que lhe têm sido formuladas terão fundamento. Mas essa é questão jurídica que os tribunais superiores terão de dirimir nos recursos que lhes forem apresentados.

O problema principal do processo parece-me não residir no despacho instrutório, muito menos no juiz que o proferiu, que poderá ser revogado no todo ou em parte pelos tribunais superiores, mas na divergência quanto à aplicação da lei nos crimes de corrupção que vinha sendo feita pelos tribunais — incluindo pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) — introduzida pelo acórdão 90/2019 do Tribunal Constitucional (TC), que declarou inconstitucional aquela interpretação, na qual se baseara o MP para formular a acusação.

O citado acórdão do TC — declarando inconstitucionais uns artigos da lei quando a interpretação deles pelos tribunais comuns difere da sua — parece-me relevante, por insólito. Ele não revoga os artigos da lei considerados inconstitucionais, mas, surpreendentemente, apenas a sua interpretação — no caso em que foi proferido, a do STJ — o que além de pouco ortodoxo me parece uma exorbitação das suas competências, usurpando as dos tribunais comuns. Só uma grande causa terá justificado tamanho risco.

Aquele acórdão do TC é também relevante por permitir alegar a prescrição dos crimes de corrupção ocorridos entre Março de 1995 e Março de 2011 passados 5 anos da sua consumação. E ganhou maior relevância por o juiz de instrução invocá-lo, sem que nada, a não ser a sua concordância, a tal o obrigasse, para fundamentar a sua decisão de prescrição do crime de corrupção que admitiu "claramente indiciado" como praticado pelo Pinóquio desde 2007 (que teria prescrito em 2012), diverso do imputado na acusação do MP, do qual não encontrou prova.

Não sabemos se a interpretação da lei pelo juiz de instrução seria a mesma da decidida pelo TC ou se, sendo, ele a aplicaria solitariamente face à interpretação contrária aplicada noutros casos por tribunais superiores. Sabemos é que ele a invocou, mesmo tendo o acórdão do TC sido publicado já depois de formulada a acusação. Neste sentido, o acórdão do TC foi "oportuno", dando algum conforto ao juiz de instrução para basear a sua decisão na concordância com ele e não na sua própria interpretação da lei.

Em favor do TC poderá alegar-se que a aplicação da lei que os tribunais e o STJ vinham fazendo — contando o prazo de prescrição do crime de corrupção a partir da data da sua consumação material (a do pagamento do suborno), ou até mais tarde, e não da data da sua consumação formal (a da promessa do pagamento ou a da sua aceitação) — violava a letra da lei, que quanto ao prazo de prescrição não distingue a concretização do suborno, ou do seu objecto, da simples promessa, e que por isso seria manifestamente ilegal.

Tanto assim que as alterações legais introduzidas a partir de 2011 não clarificaram a data a partir da qual conta o prazo de prescrição — se a partir da promessa de pagamento ou da promessa de aceitação do suborno, se a partir da do pagamento ou da consumação dos actos objecto do crime — que foi mantida indistinta, e apenas alargaram o prazo de prescrição de 5 para 15 anos. Exorbitando das suas competências, o TC terá pretendido agir como último recurso, substituindo-se ao STJ, perante as ilegalidades que viriam sendo cometidas na aplicação da lei.

É notório que a interpretação da lei que alguns tribunais superiores vinham fazendo exorbitava do que ela diz. Ora, não compete aos tribunais, com as suas interpretações, criar legislação nova, e era isto que vinha acontecendo nalguns casos, se bem que a divergência interpretativa ainda não tivesse permitido fixar jurisprudência. Perante a ambiguidade da lei, os tribunais deveriam ter suscitado o seu aclaramento, para a poderem aplicar com clareza, e não terem-se arrogado o direito de a interpretar criativamente.

Não distinguir, para efeitos de prescrição do crime de corrupção, entre a simples promessa e a concessão da vantagem ou a consumação dos actos materiais prometidos é um mero subterfúgio. A criminalização da promessa deveria servir para quando o crime se fica por aí; quando ele se prolonga com a consumação dos actos prometidos a prescrição deveria contar a partir do termo do último desses actos. E foi esta concepção, que é do senso comum, que alguns tribunais usaram para criar lei nova, o que não podiam fazer.

Para além dos imbróglios jurídicos e das ignomínias cometidas pelo MP, o que deste caso ressalta e me parece constituir o que mais importa é a ambiguidade com que são redigidas as leis e a leviandade com que os políticos legislaram até 2011 sobre o crime de corrupção em relação às penas ridículas (até 3 anos) e ao curto prazo de prescrição (5 anos), que inviabilizavam de facto mover-lhe qualquer combate sério. Mas disto parece ninguém pretender falar, preferindo todos descarregarem a frustração das suas expectativas no juiz de instrução e não nos políticos complacentes.


NOTA (16.04): Não tenho nenhuma simpatia pelo Pinóquio. Acho-o até um caso patológico de perturbação da personalidade, um mentiroso compulsivo e um político autoritário e corrupto, que de parvo não tem nada. Felizmente, apenas o julgo ética e politicamente, por indícios e presunções, não criminalmente, por provas. Isto não me impede de reconhecer as arbitrariedades que contra ele foram cometidas ao longo do Inquérito pelos justiceiros procuradores do MP e caucionadas pelo não menos justiceiro juiz de instrução responsável.

Independentemente da simpatia ou da antipatia que o Pinóquio desperte, aquelas condutas deveriam preocupar-nos a todos e ser objecto de investigação. O silêncio cúmplice de muitos dos seus correligionários, que rejubilaram com os seus êxitos eleitorais, o incensaram durante os seus mandatos como primeiro-ministro e com eles beneficiaram politicamente, tem sido deveras ensurdecedor e, pelo calculismo que evidencia, os hipócritas são plenamente merecedores dos epítetos com que ele os mimoseou na sua última entrevista.

Abandonado, desfeitas eventuais aspirações políticas, encurralado no seu mundo de fantasia, fortalecido por asneirolas de palmatória da acusação o “animal feroz” irrompe furibundo, espumando, marrando e escoiceando em todas as direcções, como é seu timbre: contra a direcção do partido e outros traidores da sua causa, contra os inimigos políticos que montaram a cabala criminal contra si e, como lhe convém, até contra o juiz de instrução com cujo despacho instrutório poderá vir a salvar-se. Coitado do Pinóquio! Que mais irá acontecer-lhe?


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