segunda-feira, 21 de junho de 2021

Facetas do regime fascista em Português Suave (II)


1. O desenvolvimento económico

Qualquer regime tem de promover algum desenvolvimento económico e social; doutro modo encontraria um grande nível de contestação, mesmo nas sociedades de países com regimes políticos ditatoriais. Devido à crise económica geral de 1929, à prioridade dada ao saneamento financeiro e às dificuldades de abastecimento durante a II guerra mundial, nas duas primeiras décadas do Estado Novo corporativo-salazarista o crescimento económico ocorreu a taxas muito pequenas, sem impacto relevante na recuperação do grande atraso acumulado herdado da Monarquia e da 1.ª República. A partir do pós-II guerra, as opções foram mudando lentamente, e com a recuperação da economia mundial e as ajudas do Plano Marshall às importações dos EUA, e do Banco Mundial e da OCDE às campanhas de alfabetização dos anos cinquenta, as taxas de crescimento económico aumentaram um pouco. Mas, julgo ser claro, isso não ilude o essencial: o Estado Novo era anti-liberal e anti-democrático em política e dirigista na economia, um regime ditatorial repressivo a todos os títulos abominável.

A maior influência dos engenheiros (um, Duarte Pacheco, revolucionário fascista, mas o outro, Ferreira Dias, tecnocrata) na definição de uma política económica desenvolvimentista (lançamento de muitas obras públicas novas, reparação de estradas e construção de pontes e de travessias, ampliação da rede de escolas primárias, reforma do ensino técnico-profissional e requalificação das escolas existentes, construção dos primeiros aproveitamentos hidroeléctricos e de outras infra-estruturas) foi decisiva para a mudança. Os incentivos à concentração do capital, a cartelização promovida pela lei do condicionamento industrial, o lançamento dos Planos de Fomento e a aliança do Estado com determinados grupos económicos (e não com outros) participando no capital de novas sociedades, são exemplos, entre muitos outros, da viragem ocorrida quanto à necessidade do crescimento do nível de desenvolvimento económico, favorecida, além do mais, pela nova política internacional da guerra-fria contra o comunismo, de que o regime passou a beneficiar, apoiado por ingleses e americanos, como baluarte do anti-comunismo na Península substituindo o franquismo penalizado pelo apoio prestado ao nazi-fascismo, e lhe permitiu fazer admitir o país na fundação da OTAN, em 1949, e na ONU, em 1955.

Pelas opções e as condicionantes apontadas, o investimento público ocorrido nas décadas de 30 a 50, a que alguns saudosistas aludem, por muito que tivesse sido e não foi, não proporcionou qualquer crescimento assinalável do desenvolvimento económico. Foi apenas possibilitador, facilitador, porque orientado para a criação das infra-estruturas básicas (vias de comunicação, ensino, electrificação, etc.) de que a indústria passou depois a necessitar. Mas a economia portuguesa estava dominada de longa data por uma burguesia dependente parasitária, em santa aliança com os restos duma arcaica aristocracia agrária, com destaque para a burguesia especuladora e comercial (ligada à especulação bolsista e à importação do muito que necessitávamos e do pouco que exportávamos, algumas matérias-primas e conservas de peixe) e para a burguesia rentista (concessionária de alguns monopólios estatais ou constituídos ao abrigo do condicionamento industrial), enquanto a burguesia industrial, devido à pequena dimensão dos seus investimentos, à protecção da concorrência estrangeira conferida pelas pautas aduaneiras (que era o modo de subsistência das poucas grandes empresas industriais que existiam) e à baixíssima produtividade, desempenhava uma posição subalterna, apesar do controlo dos salários pelo Estado e da repressão das reivindicações e das greves.

Na década de 60, com a concretização da entrada para a EFTA e a abertura ao investimento directo estrangeiro e a ampliação dos mercados de exportação daí decorrentes; com o início da guerra colonial, que dinamizou o mercado interno, e o aumento das trocas com as colónias, cuja população foi engrossada com milhares de emigrantes que nelas se fixaram; com a abertura ao turismo e com as remessas das poupanças do elevado número de emigrantes que buscavam a salto melhores condições de vida na Europa desenvolvida, que chegou a mais de um milhão de trabalhadores no fim da década; e com a elevação dos salários, devida à redução da força de trabalho disponível provocada pela mobilização militar e pela emigração, quase tudo mudou, e isso está espelhado nas taxas de crescimento económico obtidas. A recusa da admissão do Reino Unido nas CEE e a constituição, por ele, de uma zona de comércio livre, a EFTA, que não se preocupava com os regimes políticos ditatoriais e permitia aos membros menos desenvolvidos a manutenção de algumas das suas pautas aduaneiras, pode dizer-se que foi uma bênção para o Estado Novo. E é este epifenómeno de pouco mais de uma década, das quatro que o regime durou, criado fundamentalmente por influência externa e mantido pela repressão política interna, que os saudosistas apontam como mérito desenvolvimentista do regime fascista em Português Suave.

A partir de então, e até ao choque do aumento dos preços do petróleo, em 1973, decidido pelos países árabes produtores como retaliação ao apoio dos países ocidentais a Israel na guerra israelo-árabe, cresceram as exportações em termos absolutos e em relação às importações; cresceu o investimento directo estrangeiro; cresceram as receitas directas e indirectas do turismo e as remessas dos emigrantes, disponibilizando capital de crédito; cresceu a despesa do Estado com a guerra colonial (grande parte feita no mercado interno, porque diversas potências aliadas forneciam a título de ajuda ou de contrapartida muito do equipamento militar mais dispendioso e concediam licenças para a produção interna de veículos e do grosso do armamento ligeiro, e as munições eram também de fabrico nacional); e a economia entrou num outro ritmo, passando a crescer a taxas incomparáveis com as taxas irrisórias das três décadas anteriores. A década 60, por isso, ficou constituindo o verdadeiro período desenvolvimentista legado pelo Estado Novo, no qual o país foi atenuando o seu atraso em relação às economias da Europa Ocidental, que apesar disso continuou muito grande. Mas a fragilidade do feito era de tal ordem que ao primeiro abanão começou a ruir.

Torna-se desnecessário evocar histórias de outros, por ouvir dizer; as pessoais, que espelham o país, chegam e sobram para ilustrar o "desenvolvimento" durante o Estado Novo, e conto mais uma. Até aos meados da década de 50, a electricidade era produzida maioritariamente localmente, em pequenas centrais térmicas alimentadas a carvão ou a diesel existentes nas cidades (de que a central Tejo, da CRGE, existente em Lisboa, e a do Freixo, no Porto, seriam das maiores) ou em pequenas centrais hidro-eléctricas e mistas nas redondezas. Meu sogro foi durante anos "maquinista" numa dessas pequenas centrais térmicas citadinas. Só a partir da Lei 2002, chamada da "electrificação do país", aprovada no final de 1944, foram constituídas as empresas, muitas delas com a participação de capitais do Estado, que dariam início à construção de centrais eléctricas de maior capacidade de produção (por exemplo, a central hidro-eléctrica do Castelo do Bode, inaugurada em 1951, e a central termo-eléctrica da Tapada do Outeiro, inaugurada em 1955) e das redes nacionais de distribuição em muito alta tensão. As carências no abastecimento de energia eléctrica eram de tal ordem que muitas empresas tinham de colmatar a inexistência ou a limitada capacidade de fornecimento da rede pública com o recurso à produção própria.

Em 1938, meu avô paterno (que ficaria conhecido por Ti Tóino Cebola) foi trabalhar para uma fábrica de conservas de peixe existente frente à casa em que vivi até à adolescência, adquirida pela Sociedade de Conservas Aldite (com sede em Alcobaça) à sociedade Olivas & Januário. O seu patrão numa adega e armazém de frutos secos noutro concelho, o senhor Francês, fora nomeado gerente da fábrica (não sei se também seria sócio, mas vivia na residência espaçosa que lá existia) e daí a transferência. Desempenhou ali durante uns anos, até se chatear com os abusos do patrão sobre o período de trabalho e se despedir, as funções de guarda, de carreiro (razão pela qual meu pai teve na tropa a especialidade de "condutor hipo") e de pau para toda a obra. Em Fevereiro de 1941, o ciclone que assolou o país derrubou a chaminé da fábrica, que atingiu também a casa onde vivia a família deste meu avô. Após as obras de reparação dos estragos causados pela queda da chaminé e de ampliação e modernização das instalações e equipamentos, para fazer face ao aumento da produção e do consumo de energia eléctrica que a substituição da obturação das latas por soldadura pela obturação por cravação em cravadeiras de accionamento eléctrico acarretou, que deixou de ser convenientemente assegurado pela central eléctrica existente na cidade, a Sociedade de Conservas Aldite requereu autorização, que lhe foi concedida, para instalar na fábrica uma sua pequena central eléctrica.

2. O analfabetismo: escolarização, analfabetismo infantil e analfabetismo total

É um facto incontestável que o Estado Novo, até à entrada em vigor da Reforma Galvão Telles (o alargamento da escolaridade obrigatória para seis anos) na década de 60, com recurso ao ensino a distância, via TV, conjugado com a coordenação de monitor presencial nos postos de recepção da Telescola, atingiu uma taxa de escolarização infantil praticamente plena. Demorou três décadas a conseguir tal feito, depois de ter regredido a escolaridade obrigatória da 4.ª para a 3.ª classe e de ter recorrido à criação de muitas centenas de pequenas escolas improvisadas, os postos escolares, e de ter transformado meros portadores da escolaridade obrigatória, os regentes escolares, em professores, porque os que tinham o Magistério Primário escasseavam. Apesar do pendor ideológico reaccionário e nacionalista da Reforma de Carneiro Pacheco a que obedeceu a expansão da escolarização infantil, isso não elide o empenho do regime em levar a escola aos sítios mais recônditos e à esmagadora maioria das crianças em idade escolar.

Elevação da taxa de escolarização e erradicação do analfabetismo infantil, contudo, são coisas muito diferentes, porque a frequência escolar, mormente para as raparigas, encontrava ainda resistências e, em muitos casos, era abandonada ou entremeada de grande absentismo, apesar do alargamento da possibilidade de frequência até aos 14 anos, e o sucesso escolar estava longe de ser pleno, como nunca foi. De qualquer modo, quarenta anos depois o analfabetismo infantil desceu para taxas pouco mais do que residuais, não muito diferentes das que ocorriam em países europeus desenvolvidos. E é este facto inegável, à mistura com alguma redução das taxas da mortalidade infantil e do aumento da esperança de vida média, que académicos e políticos de direita apresentam como facetas de sucesso da obra desenvolvimentista do Estado Novo, tergiversando, sabendo que a melhoria de tais indicadores, e de outros, como a salubridade habitacional, as redes de saneamento e de abastecimento de água e a electrificação, se quedavam muito aquém dos que de há muito eram usuais nos países europeus desenvolvidos, incluindo nos que haviam sofrido a desgraça da guerra.

E também sobre este assunto conto mais uma história pessoal. A casa onde vivi até à adolescência, pertencente a dois dos meus bisavós, depois a meus avós maternos e por fim a meus pais, apesar de urbana, não tinha casa de banho, só teve água canalizada no início da década de 60, não tinha esgotos, os dejectos eram recolhidos pela “carreta da merda”, e o restante lixo era despejado para a “carroça do lixo”, ambas camarárias, puxadas por bois, que passavam uma vez por dia, ou para uma estrumeira nas traseiras, e só foi por mim electrificada na década seguinte. A casa onde vivi após casar, numa freguesia vizinha, já com electricidade e com casa de banho, não tinha água canalizada da rede pública (inexistente), embora a bica pública ficasse perto, e não tinha esgotos ligados a rede pública (também inexistente), mas a uma pequena fossa séptica. O mesmo posso dizer da casa dos meus sogros, também sem casa de banho, sem água canalizada e sem esgotos, cujos despejos se faziam na estrumeira do barranco. E poderia estender estas parcas condições de salubridade habitacional às de outros familiares. Não admira, portanto, que as grandes mobilizações populares ocorridas com o 25 de Abril de 1974 tenham tido como objectivo prioritário a resolução destes problemas prosaicos e a transformação das inadmissíveis condições em que se vivia.

Mas ainda quanto ao analfabetismo, os académicos e políticos de direita saudosistas do Estado Novo escamoteiam de forma deliberada a elevada taxa que se verificava entre a população adulta, que no censo de 1970 ultrapassava os 25%. Era substancialmente menor do que a taxa de 50% que se verificava em 1900, e eventualmente mesmo menor da que ocorreria em 1950, mas em qualquer caso inadmissível, tanto mais que o próprio regime se viu na necessidade de lançar campanhas de alfabetização de adultos envolvendo as próprias empresas. E, neste aspecto, a sua desonestidade intelectual é evidente. Sabendo-se que a população emigrante, nessa altura, ultrapassava o milhão de trabalhadores, rondando os 15% da população adulta, e que a taxa de analfabetismo entre esta parte da população não seria muito diferente da que ocorria entre a população residente no país, a taxa do analfabetismo adulto não estaria então muito longe dos 30%. Não se consegue descortinar que mérito vê esta gente nesta faceta do regime fascista em Português Suave, mesmo que tente contrapor-lhe encómios pela obra realizada na escolarização infantil plena e na redução do analfabetismo nesta faixa etária para taxas quase residuais.

A desfaçatez e a falta de vergonha são por isso deveras elucidativas dos seus propósitos: sob a capa de reacção à preocupante estagnação económica nos últimos vinte anos, desvalorizar, a todo o custo, a grande transformação política, económica e social ocorrida após o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, ainda que insuficiente para retirar o país da cauda da Europa. Donde eles afastam qualquer discussão é das causas que têm contribuído para a subsistência do atraso do desenvolvimento económico e social face à CEE/União Europeia, apesar de alguma atenuação, nomeadamente, desde que começaram a pingar as ajudas de pré-adesão à então CEE, a partir de 1985, e, depois, a jorrar os fundos comunitários de coesão: a manutenção do carácter parasitário da burguesia dependente portuguesa, que tem mamado à tripa forra desta nova teta, agravado pela disseminação da corrupção, do peculato e do nepotismo por toda a sociedade como “cultura nacional” de saque ao erário público com impunidade, corroendo qualquer regime democrático, que se estende sem decoro, com a corja de turno, à ocupação do poder por clãs familiares, à infiltração do aparelho do Estado por quadros e clientelas partidárias, à atribuição de contratos e distribuição de prebendas a apoiantes, amigos e conhecidos, e ao insólito da permanente violação governamental da própria legalidade estabelecida. Porque isso é obra de todo o corjedo que alternadamente tem estado no poleiro nestes últimos 45 anos, é-lhes por demais incómodo reconhecer o óbvio.


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