quinta-feira, 15 de julho de 2021

Troca desigual: fundamento da exploração dos trabalhadores assalariados (II)


TROCA DESIGUAL: FUNDAMENTO DA EXPLORAÇÃO DOS TRABALHADORES ASSALARIADOS - 2



José Manuel Correia


Introdução

Apesar de interpretações contraditórias e de alguns equívocos e erros, nomeadamente, quanto à génese do valor apropriado que possibilita o lucro e ao modo da sua realização e distribuição, Marx teve o grande mérito de formular uma teoria do valor das mercadorias que, à época, parecia permitir explicar cabalmente o funcionamento do modo de produção capitalista. Só isso seria suficiente para o colocar entre o punhado dos maiores críticos da economia-política clássica, a ideologia económica mais avançada da burguesia, mas pode-se dizer que as suas contribuições para a compreensão da realidade social influenciaram de forma indelével todos os campos das ciências sociais ou humanas. Mesmo tendo errado também no campo da filosofia da História — ao identificar o proletariado como sendo a classe revolucionária que haveria de suceder à burguesia na direcção da sociedade e implantar o comunismo que acabaria com a exploração do homem pelo homem — as contradições, os equívocos e os erros em nada diminuem o contributo intelectual original de Marx para a caminhada na compreensão da realidade social. Parecendo pouco, é de facto muito.

Mais de cento e cinquenta anos após a publicação do Livro I de O Capital (1867), pode afirmar-se, sem grande receio de errar, que os seguidores não estiveram à altura do mestre: muitos leram-no ao de leve, sem terem compreendido o fundamental, e divulgaram-no truncado, deturpado ou mal assimilado, outros citaram-no abundantemente, quedando-se pela incensação apologética e pela repetição estereotipada, e só raros compreenderam as suas formulações originais mais profundas e lhes detectaram contradições. Neste sentido, o marxismo nunca existiu, e o que sob este rótulo se difundiu foi uma caricatura do que o próprio Marx produzira e do que poderia ter sido produzido a partir da sua obra tão original quanto fecunda. Infelizmente, que conheça (mas o meu mundo de leituras de marxistas é limitado), nenhum dos ditos marxistas detectou os equívocos e os erros fundamentais das suas concepções na crítica da economia-política e quanto à concepção da revolução social. A vida voltou a confirmar, uma vez mais, que os açores, por mais alto que voem, jamais alcançarão a precisão da visão aguçada e a beleza do voo picado do lance de um peregrino, mesmo quando, sendo esquiva a presa, falha a captura. Apesar dos equívocos e dos erros em que se baseiam algumas das suas concepções, Marx conquistou com todo o mérito a eternidade a que estão destinados os génios.

1. Conceitos fundamentais acerca do valor das mercadorias e da génese do lucro.

1.1. O “valor das mercadorias”.

Para limitar as repetições e para tornar o discurso mais escorreito e compreensível, começo por fazer notar que Marx não qualificou de forma clara e inequívoca o conceito de “valor” das mercadorias, isto é, não identificou a substância de que era constituído nem a sua grandeza representativa (ao contrário do que sucedera com os conceitos de “valor de uso” [ou valor da grandeza “utilidade”] e de “valor de troca” [ou valor da grandeza “relação de troca” de umas mercadorias por outras]). Apesar de aproximações relevantes, ele não chegou verdadeiramente a defini-lo; identificou a sua unidade de medida, o tempo de trabalho consumido na sua produção, mas deixou sem identificação inequívoca a substância que o constituía ou de que era originado — embora tenha afirmado que o “trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico” [1] — e, por isso, deixou sem definição a sua grandeza representativa. Com isto, acabou caindo numa tautologia sem sentido: o valor como quantidade ou resultado da medida, antes mesmo de identificada a substância de que era originado e de definida a sua grandeza representativa, de que a quantidade ou resultado da medida era o valor. A produção do trabalho implica a transformação de energia humana (da capacidade humana para produzir trabalho ou “força de trabalho”) em trabalho; a energia humana, ao ser transformada em trabalho, é a substância de que o trabalho humano é constituído. E, para o trabalhador, a produção do trabalho tem implicações, o que lhe custa produzi-lo, a energia que tem de consumir para o produzir; o custo de produção, portanto, é uma grandeza que tem valor para o trabalhador, o valor do custo de produção do trabalho. Deste modo, o “custo de produção” constitui uma das grandezas representativas do trabalho humano, como as suas outras grandezas representativas “utilidade” e “relação de troca”.

Apesar de ter reconhecido que o “trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico”, Marx não atribuiu valor ao trabalho humano (“ele próprio não tem nenhum valor”). Para ele, o trabalho era umas vezes a “substância criadora de valor” e outras “a substância e a medida imanente dos valores” [2]. Não ter atribuído valor ao trabalho foi, até, surpreendente. E nunca justificou porquê o trabalho, sendo produzido pela força de trabalho, sendo um seu produto, não tinha valor; ou, melhor, explicou-o por um acto de magia, designando o trabalho não como produto da força de trabalho mas como sua utilidade. É inverosímil que um produto, uma coisa produzida pela acção de outra, constitua a capacidade ou a utilidade da outra para produzi-la e não o resultado dessa utilidade de produção. É claro, sendo o trabalho produzido pela força de trabalho ele é o resultado do processo dessa produção, ou da utilidade da força de trabalho para produzi-lo, e um seu produto. Não creio que esta contradição tenha sido devida a qualquer característica especial do trabalho mal compreendida, por exemplo, a de forma especial de energia produzida por outras formas de energia, ou por ele existir apenas no acto da sua produção e essa existência cessar com a cessação desse acto. Tal forma de existência não anula a sua origem, apenas evidencia a sua efemeridade, devido precisamente à sua característica energética, ou a de no momento da venda ele não estar produzido e a sua produção ocorrer posteriormente, em simultâneo com a produção dos novos produtos, pela sua acção sobre os objectos de trabalho. Estou convicto de que actuou assim, cometendo erros lógicos tão grosseiros, para poder construir um modelo de teoria do valor das mercadorias alternativo ao dos economistas-políticos clássicos.

Se o trabalho constituísse a utilidade da força de trabalho ele não poderia constituir a substância do valor, porque o valor não advém da utilidade, mas de algo que a origina, ao contrário do que Marx afirmou — o “trabalho é a substância e a medida imanente dos valores, mas ele próprio não tem nenhum valor” [3]. Se esse algo que origina o “trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico”, é a força de trabalho, e não o trabalho, que constitui a substância do valor; e a medida do seu dispêndio constitui o valor do trabalho. Ao designar a força de trabalho como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador e ao identificar o trabalho como sendo a substância do valor, Marx operou uma autêntica inversão da realidade. Daqui resultaram duas coisas importantes para o seu modelo da teoria do valor das mercadorias. Não atribuir valor ao trabalho permitiu-lhe, por um lado, dotá-lo de uma dupla utilidade própria, a de criar a nova utilidade que conferia aos objectos de trabalho sobre que incidia a sua acção, transformando-os, e a super utilidade de lhes criar o valor (também de uma forma engraçada, conservando o valor do trabalho passado e criando valor novo, como se o valor acrescentado pelo trabalho vivo ao trabalho passado não fosse o seu próprio valor mas valor novo por ele criado); e, por outro lado, descartá-lo como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador, ao contrário do que o consideravam os economistas-políticos clássicos. Deste modo, Marx encontrou a mercadoria alternativa necessária, a força de trabalho, com capacidade de produzir, através da sua utilidade trabalho, mais valor do que o seu próprio valor, mais valor esse que identificou como estando na origem do lucro.

O próprio Marx, porém, afirmara que ao participarem no processo produtivo as mercadorias entravam apenas como produtos úteis ao fim a que esse processo se destinava e não forneciam mais valor do que aquele que já possuíam, adquirido no processo de que haviam saído como produtos. Como poderia então aparecer no processo produtivo mais valor do que aquele que nele entrara (correspondente ao dos meios de produção e ao da força de trabalho)? Pela utilidade especial atribuída à mercadoria especial força de trabalho: a utilidade de produzir trabalho e, por seu lado, a utilidade deste trabalho de criar valor, e mais valor do que o da força de trabalho que o produzira! A partir desta errada concepção do valor sucederam-se outras, constituindo novos equívocos e erros. Por exemplo, a realidade física do trabalho, o tempo durante o qual era produzido, era identificada como sendo a medida do valor, mas, em simultâneo, o valor era concebido como “uma realidade apenas social, só podendo manifestar-se, evidentemente, na relação social em que uma mercadoria se troca por outra” [4]. Ora, o valor não existe por se manifestar, supostamente, apenas na relação social da troca. Ele existe também na produção, através do custo de produção do trabalho consumido para transformar as coisas e os objectos sobre que recai a sua acção.

Independentemente do valor se manter imperceptível aos sentidos, e de não se saber por onde apanhar a “realidade do valor”, porque em “contraste directo com a palpável materialidade da mercadoria, nenhum átomo de matéria se encerra no seu valor” [5], como Marx dissera, nem por isso o valor deixa de estar representado nas mercadorias, precisamente, através do custo de produção do trabalho consumido na sua produção. Ao contrário do próprio trabalho, a dimensão ou valor do seu custo de produção não se vê, porque existe sob a forma de quantidade de energia consumida, da energia humana com que o trabalho foi produzido, mas a sua existência é constatada pelos efeitos em quem o produz e pelas marcas indeléveis deixadas nos objectos de trabalho durante o tempo necessário para que ele as produza. O valor, enquanto expressão da medida do custo de produção, antes de mais, existe como realidade física concreta e objectiva nos produtos; depois, quando os produtos são produzidos e consumados como mercadorias, pela troca de umas pelas outras, não desaparece, continua nelas existindo. No acto social da troca de umas mercadorias por outras com utilidades distintas o valor de custo de produção continua existindo; o que interessa a compradores e a vendedores, porém, é a relação que estabelecem entre as quantidades das mercadorias que trocam, o seu “valor de troca”. E essa relação pode não corresponder à relação dos seus custos de produção.

O trabalho não se corporifica, não se materializa, nem se armazena nos produtos em cuja produção participa; enquanto energia com forma e utilidade específicas, o trabalho é consumido na produção das mercadorias, modificando as formas e as propriedades dos objectos de trabalho, de modo a conferir-lhes, por sua vez, uma utilidade específica, ou criando produtos novos, imateriais, como o conhecimento, ao qual confere utilidade através da sua transformação em informação. O trabalho também não é a “substância criadora de valor”, não cria valor; é criado com utilidades específicas, diferentes da utilidade da energia humana que o cria, e aquelas suas utilidades criam as novas utilidades dos objectos da sua acção, diferentes de qualquer delas. Com a Natureza, a energia humana é a criadora da utilidade em geral, da utilidade do trabalho e da utilidade que ele confere aos objectos da sua acção. E, porque é produzido, o trabalho tem valor, valor de custo de produção; e as restantes mercadorias, porque a sua produção é concomitante com a produção do trabalho e são produtos da sua acção, têm o seu custo de produção representado pelo custo de produção do trabalho passado e presente consumido na sua produção. O valor do custo de produção do trabalho representa o valor do custo de produção da mercadoria, em geral; deste modo, constitui o meio de conversão da utilidade, em geral, em custo de produção, em geral. Como fonte da utilidade e do custo de produção, a energia humana representa a substância do custo da utilidade, e o trabalho, como seu produto, constitui aquilo que tem valor [6].

1.2. A mercadoria vendida pelo trabalhador.

O caso da suposta mercadoria força de trabalho (eu designo-a por “mercadoria mágica”) é talvez o mais elucidativo dos erros fundamentais cometidos por Marx. Identificada como mercadoria, a força de trabalho tinha valor. Esse seu valor advinha-lhe dos meios de subsistência adquiridos pelo trabalhador, ou, melhor, do tempo de trabalho passado neles representado. Este trabalho passado, e só ele, produzia a força de trabalho. “Agora temos de examinar mais de perto essa mercadoria peculiar, a força de trabalho. Como todas as outras tem um valor. Como se determina ele? O valor da força de trabalho é determinado como o de qualquer outra mercadoria, pelo tempo de trabalho necessário à sua produção e, por consequência, à sua reprodução. Enquanto valor, a força de trabalho representa apenas determinada quantidade de trabalho social médio nela corporificado. Não é mais do que a aptidão do indivíduo vivo. A produção dela supõe a existência deste. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua manutenção ou reprodução. Para manter-se precisa o indivíduo de certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho reduz-se, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência, ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção de seu possuidor” [7]. Calem-se, portanto, as velhas carpideiras: “É sentimentalismo barato considerar brutal esse método de determinar o valor da força de trabalho, método que decorre da natureza do fenómeno” [8].

Ainda que os meios de produção, e, por extensão, todos os factores produtivos, não possam “transferir para o produto mais valor do que aquele que possuem, independentemente do processo de trabalho a que servem”, e de o valor de um factor produtivo não ser “determinado pelo processo de trabalho em que entra como meio de produção, mas pelo processo de trabalho do qual saiu como produto”, dado que no “processo de trabalho em que entra serve apenas de valor de uso, de coisa com propriedades úteis e não transferirá nenhum valor para o produto que já não possua antes de entrar no processo” [9], o trabalho e a força de trabalho constituíam excepções a esta regra. O trabalho, embora produto da força de trabalho, não adquirira valor no processo da sua produção, no processo do qual saía como produto; aliás, não tinha qualquer valor. Entrava no processo produtivo como seu factor apenas como valor de uso, visto que não tinha valor, mas com uma dupla utilidade: a de transformar os objectos de trabalho e a de criar valor! A força de trabalho, por seu lado, também produto de algum processo produtivo, adquiria o seu valor do valor dos meios de produção utilizados para a sua produção (os meios de subsistência). Como o valor destes meios de subsistência lhes era conferido pelo trabalho produzido pela força de trabalho, ocorria neste processo mais um fenómeno paradoxal: a força de trabalho tinha o valor dos meios de subsistência pelos quais era trocada, valor criado pelo trabalho por ela própria produzido, mas não produzia valor, produzia apenas trabalho, que não tinha valor, mas que criava valor!

As mercadorias adquirem o seu valor no processo da sua produção, e o valor de mercadorias produzidas por outras mercadorias é o correspondente ao somatório dos valores das que foram necessárias para a sua produção. Se as mercadorias fossem produzidas pela mercadoria força de trabalho, o seu valor seria constituído pelo valor do custo de produção da força de trabalho (passada e presente) consumida na sua produção. Aplicando o mesmo princípio à força de trabalho, o seu valor seria constituído pelo valor do custo de produção das mercadorias necessárias para a sua produção. A força de trabalho constituiria a mercadoria universal e todas as mercadorias teriam o valor da força de trabalho (passada e presente) necessária para a sua produção. Mas, se as mercadorias fossem trocadas na proporção dos seus valores, como Marx afirmara, a génese do lucro ficaria por explicar. Para resolver uma tal contradição, Marx teve de identificar a força de trabalho como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador e, em simultâneo, atribuir a criação do valor das mercadorias ao trabalho, tido como sendo a utilidade da força de trabalho. Neste quadro conceptual, a mercadoria força de trabalho tinha o valor correspondente ao dos seus supostos meios de produção, reduzidos aos meios de subsistência, enquanto as mercadorias produzidas pela força de trabalho tinham o valor correspondente à sua utilidade ou trabalho que ela fornecia e não ao custo de produção da força de trabalho. Deste modo, o lucro era facilmente explicado pelo “dom” da força de trabalho fornecer maior quantidade de trabalho do que a que fora necessária para a sua produção ou de fornecer mais valor do que o seu próprio valor. Por outras palavras, também Adam Smith dissera que o trabalho comandava mais valor do que o seu próprio valor.

Perante uma tal representação da realidade, ninguém poderia reclamar fosse o que fosse. As coisas seriam o que eram, e os capitalistas mais não faziam do que aproveitar-se da natureza das coisas, de como elas eram, após terem cometido o pecado original da espoliação dos produtores independentes da propriedade dos meios de produção! Esta concepção naturaliza a exploração, cuja origem decorreria desse “dom natural da força de trabalho em acção, do trabalho vivo, conservar valor na ocasião em que o acrescenta, um dom que nada custa ao trabalhador, mas que muito importa ao capitalista, o de conservar o valor actual de seu capital” [10], porque quando “o trabalho, sob forma apropriada a um fim, conserva o valor dos meios de produção, transferindo-o ao produto, cada instante de sua operação forma valor adicional, valor novo” [11]. Por isso, o “valor do novo produto abrange ainda o equivalente ao valor da força de trabalho e uma mais-valia. Abrange esta porque a força de trabalho vendida por um determinado espaço de tempo, dia, semana, etc., possui menos valor do que aquele que é criado nesse tempo com seu emprego. Mas, o trabalhador recebeu em pagamento o valor de troca de sua força de trabalho, alienando por isso seu valor de uso, o que sucede em qualquer compra e venda” [12]; tudo originado do facto de “essa mercadoria especial, a força de trabalho, possuir o valor de uso peculiar de fornecer trabalho e, portanto, criar valor (o que) em nada altera a lei geral da produção de mercadorias. Se a soma de valores adiantada em salários, além de reproduzida no produto, é acrescida de uma mais-valia, isto não provém de um logro ao vendedor, que recebeu o valor de sua mercadoria, mas do emprego que o comprador fez dessa mercadoria” [13]!

O recurso a uma mercadoria tão especial permitiu a Marx, de uma penada, resolver o problema crucial da economia-política: a explicação da génese do lucro. Mas esta sua concepção é absurda e, surpreendentemente, legitimadora da exploração. Até custa a crer que Marx tenha afirmado tão levianamente que o que designou por “mais-valia” (o valor apropriado pelo capitalista) não provinha “de um logro ao vendedor (o trabalhador), que recebeu o valor de sua mercadoria, mas do emprego que o comprador fez dessa mercadoria”, atribuindo-a à utilização que ele fazia da mercadoria que comprara ao trabalhador. Qualquer coisa transmitir a outra mais do que contém, seja do que for que contenha, valor ou outra coisa qualquer, é faculdade que só pode radicar na magia. Este autêntico sortilégio, ao contrário, parece ser uma clara evidência, tal a facilidade com que ainda hoje é aceite como real pelos crédulos. Analisando com cuidado a força de trabalho constata-se, antes de tudo, que na sua produção não participa o trabalho humano vivo. “Se prescindirmos do valor de uso da mercadoria, só lhe resta ainda uma propriedade, a de ser produto do trabalho” [14], dissera Marx. Se assim é, e se o trabalho humano vivo, e só ele, constitui a “substância criadora de valor” — pelo “dom” de “conservar valor na ocasião em que o acrescenta, um dom que nada custa ao trabalhador” — como também fora definido, todas as dúvidas em relação ao valor da força de trabalho podem ser dissipadas: sem a intervenção do trabalho humano vivo na sua produção ela não possuirá qualquer valor. Emerge um novo paradoxo em relação à mercadoria força de trabalho: embora os meios de subsistência tenham valor, correspondente ao trabalho humano vivo anterior consumido na sua produção, todo esse valor é desperdiçado, consumido improdutivamente, porque na produção da força de trabalho não é conservado, devido à não intervenção do trabalho vivo, a “substância criadora de valor”, na sua produção. Mesmo para uma mercadoria tão dotada e virtuosa não podemos deixar de constatar que as propriedades que lhe são atribuídas são demasiado paradoxais.

Se levássemos por diante as concepções de Marx seríamos obrigados a constatar que a mercadoria força de trabalho seria dotada não apenas da magia que ele lhe atribuiu, de onde sobressai o “dom” de fornecer mais valor do que o seu próprio valor, mas chegaríamos à conclusão ainda mais surpreendente de que forneceria valor não tendo valor. É o corolário da concepção marxista definindo o trabalho vivo como a “substância criadora de valor”. Não participando o trabalho vivo na produção da força de trabalho, em coerência esta acabaria por não ter qualquer valor. Mas, se o vendedor de tão especial mercadoria recebia salário pela sua troca, a força de trabalho talvez pertencesse ao grupo das mercadorias que não tendo valor têm valor de troca. O trabalhador receberia esse seu valor de troca, eventualmente, a título de renda, pela cedência do condão de produzir trabalho, a “substância criadora de valor”, possuído pela força de trabalho. Deste modo, uma mercadoria sem valor, apenas com valor de troca, estaria na origem da criação do valor das restantes mercadorias. Isto entra em contradição com a afirmação de que as mercadorias de que tratamos, no grupo das quais se incluiria a força de trabalho, seriam trocadas pelos seus valores. Somos, assim, transportados do reino da magia para o reino do absurdo, esse lugar sem onde, criado por um discurso explicativo da realidade que ao invés de reconstituí-la pela cognição a representa pela efabulação.

Quando se confronta a força de trabalho com as características definidas para as mercadorias — produtos úteis, produzidos para serem trocados, sendo para esse efeito fornecidos para o consumo de outros — verifica-se que ela não reúne tais condições. A suposta mercadoria especial vendida pelo trabalhador, dotada de propriedades tão paradoxais, não é sequer uma mercadoria real. A força de trabalho, a energia humana ou capacidade de produzir trabalho humano, não pode ser desligada da pessoa que a produz, o trabalhador assalariado, e, por esse facto, não pode ser fornecida a outros, para eles, consumindo-a, produzirem trabalho humano. Embora a força de trabalho seja identificada como sendo a mercadoria vendida, a impossibilidade de a fornecer faz com que o produto fornecido não seja a própria mercadoria vendida, mas um produto distinto produzido com ela pelo trabalhador: o seu trabalho. Se o trabalhador fornece como produto o trabalho por si produzido com a sua força de trabalho que consome, é o trabalho, e não a força de trabalho, a mercadoria que vende. Não lhe seria lícito vender um produto (a força de trabalho) e fornecer outro (o trabalho), mas ser-lhe-ia impossível fornecer a outrem o produto que consome (a força de trabalho). É falsa, portanto, a afirmação de Marx de que o trabalhador vende força de trabalho quando fornece trabalho.

1.3. Génese da exploração e do lucro que ela possibilita.

Outra faceta da errada concepção de Marx acerca da génese do lucro, mesmo que expressa sob a forma da representação que o capitalista teria dessa origem, encontra-se bem espelhada no parágrafo seguinte: “Vejamos a posição do capitalista. Quer receber o máximo possível de trabalho pelo mínimo possível de dinheiro. Praticamente interessa-lhe apenas a diferença entre o preço da força de trabalho e o valor que cria ao funcionar. Mas, ele procura comprar todas as mercadorias o mais barato possível e supõe sempre que a origem de seu lucro está simplesmente no seu truque de comprar abaixo e vender acima do valor [15]. Por isso, nunca chega a ver que, se existisse realmente valor do trabalho e se ele pagasse realmente esse valor, não existiria nenhum capital e seu dinheiro não se transformaria em capital” [16]. Devido ao seu apego à errada premissa de que as mercadorias eram trocadas na proporção dos seus valores, numa troca equitativa, comete aqui outro erro grosseiro recorrendo a uma falácia, não destrinçando que o lucro, tendo o trabalho valor e sendo a mercadoria comprada pelo capitalista, poderia ser originado pelo facto de o trabalho não ser pago pelo seu valor, mas por um valor inferior que lhe fosse atribuído na troca, bastando ser comprado abaixo do valor e vendido pelo valor, numa troca desigual.

Ao contrário do que afirmou Marx, o valor de troca das mercadorias não é forma de expressão do valor do custo da sua produção. Antes de tudo, a troca é uma relação social estabelecida entre pessoas tendo como objecto o intercâmbio dos produtos de que são proprietárias, enquanto o processo de produção é essencialmente uma relação técnica [17] entre as pessoas e a Natureza. Depois, a grandeza tomada para referência da relação de troca não é o custo de produção, mas é de há muito uma grandeza monetária com a qual o valor de custo parece não ter qualquer relação. Independentemente do seu valor de troca, expresso pelo preço relativo, as mercadorias continuam tendo valor, o valor correspondente ao seu custo de produção; e a um determinado preço de uma mercadoria corresponderá, necessariamente, um determinado valor do custo da sua produção. Tal não implica, porém, que ao mesmo preço de outra mercadoria corresponda o mesmo valor do custo de produção, ou, ao invés, que ao mesmo valor do custo de produção corresponda o mesmo preço. Apesar de na troca as mercadorias não deixarem de ter o seu valor do custo de produção, nada obriga a que a relação entre os seus preços corresponda à relação entre os seus valores de custo. Por isso, embora Marx tenha afirmado que as “mercadorias podem ser vendidas realmente por preços que se desviam de seus valores, mas esses desvios representam violações da lei que regula a troca de mercadorias… (que), em sua forma pura, é uma permuta de equivalentes, não é, portanto, nenhum meio de acrescer valor” [18], os desvios dos preços das mercadorias em relação aos seus valores são uma realidade e não constituem qualquer violação das regras da troca. A troca não acrescenta qualquer valor do custo às mercadorias, é facto, porque no acto elas estão produzidas, mas pode não ser equitativa, constituindo, assim, o veículo da transferência de valor de uns para outros intervenientes, de modo que no conjunto uns recebem a mais o que outros recebem a menos.

Um determinado valor de troca, e um preço, não tendo com o custo relação directa, representa, apesar disso, um determinado valor de custo, porque as mercadorias têm custo de produção. Se o valor de troca do trabalho representasse com fidelidade o seu valor do custo de produção, como querem fazer crer os capitalistas ou os ideólogos burgueses (ou como afirmou o próprio Marx), o valor do custo de produção das mercadorias poderia ser representado pelo somatório dos preços das que foram consumidas na sua produção. Apesar do preço assim obtido, que poderemos designar por preço do custo de produção (o preço de compra dos factores produtivos), constituir uma dimensão arbitrária, esta representaria a dimensão ou valor do custo, ainda que não expressa. Mas, para os capitalistas, o preço de venda das suas mercadorias, e o seu valor de troca, não se resume ao preço de compra dos factores produtivos, porque na sua formação acrescentam àquele preço uma parcela correspondente ao lucro, por aplicação da sua taxa de lucro ao capital empregado. Assim, o valor de troca e o preço de venda das mercadorias diferencia-se do valor de troca e do preço de compra dos factores da sua produção, precisamente, pelo lucro. Nas relações de troca entre os capitalistas, se todos aplicassem ao preço de compra dos factores produtivos taxas de lucro similares, o valor de troca das mercadorias que trocavam entre si não se alteraria. Entre eles, e em relação ao seu capital, a troca apareceria como sendo uma troca equitativa. Para eles, porém, até isso é completamente indiferente: seja qual for o preço de compra dos factores produtivos, ao formarem o preço de venda da produção por aplicação da sua taxa de lucro reproduzem de forma ampliada a parte consumida do capital empregado. Se não obtiverem taxas de lucro similares, o facto será atribuído à sorte, ao risco mal calculado e a outras contingências. O mérito de obterem melhor taxa de lucro do que a dos seus congéneres, contudo, é a regra que aceitam para a diferenciação dos seus proventos.

No universo da produção e da troca, porém, as trocas não são realizadas apenas entre capitalistas, mas também entre estes e os trabalhadores. E, ao contrário do que acontece com as restantes mercadorias, o valor de troca da mercadoria trabalho não é formado acrescentando um lucro ao preço de compra dos supostos factores da sua produção. Se o valor de troca das mercadorias, salvo o da mercadoria trabalho, integra o lucro, o valor de troca do trabalho está desvalorizado em relação ao valor de troca das restantes mercadorias, precisamente, pelo lucro. Ao adicionar ao preço de compra dos factores de produção das mercadorias fornecidas em troca do trabalho uma parcela de preço correspondente ao lucro, o capitalista mais não faz do que apropriar-se da parte do valor do custo de produção correspondente a essa parte do valor de troca. Deste modo, nem mesmo no mundo imaginário das representações burguesas os preços relativos são os legítimos representantes do valor do custo de produção, porque o preço de venda do trabalho está isento do lucro e os preços de venda das restantes mercadorias estão acrescidos dele. Representando a parte do valor de troca correspondente à diferença entre o preço de venda e o preço de compra, o lucro acaba também constituindo a diferença [19], que não ocorre, entre o preço de venda do trabalho e o preço de compra dos supostos factores da sua produção, ou a parte do valor do custo de produção do trabalho utilizado na produção das restantes mercadorias não retribuída ao trabalhador e apropriada pelo capitalista. O valor de troca das mercadorias, ao invés de ser expressão do valor do custo da sua produção, é expressão da relação social de troca desigual estabelecida entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados, através da compra e venda da mercadoria trabalho e dos seus produtos.

As concepções de Marx acerca do valor das mercadorias no modo de produção capitalista e da génese do lucro enfermam de diversos erros, uns sem grande relevância, mas outros fundamentais. Desta última categoria, um reside em não ter definido claramente o conceito de “valor” das mercadorias; outro resulta de ter identificado a mercadoria vendida pelo trabalhador como sendo a força de trabalho, e não o trabalho; outro advém de ter atribuído o valor do custo de produção das mercadorias a grandezas de natureza diferente (enquanto o valor do custo de produção de umas mercadorias é atribuído a uma grandeza física, o tempo de trabalho consumido na sua produção, o valor do custo de produção da mercadoria força de trabalho é atribuído a uma grandeza meramente social, o seu valor de troca, que constitui uma grandeza de natureza diferente da primeira); outro deriva de ter atribuído o valor de uma mercadoria (a força de trabalho) ao valor do custo de produção das que seriam necessárias para a sua produção, enquanto atribuía o valor das restantes à utilidade da força de trabalho necessária para a sua produção, concebendo o valor como derivado ora do custo, ora da utilidade; outro consiste na atribuição à força de trabalho do “dom” de produzir (através da sua utilidade trabalho) mais valor do que um seu suposto valor [20]; outro, corolário de todos eles, é a legitimação do lucro como mais valor da inteira propriedade do capitalista, produzido pela utilidade da mercadoria que compraria e de que se tornara proprietário (a força de trabalho), que assim de nada se apropriaria. Estes erros, por seu lado, derivam da necessidade de tentar conciliar a realidade com a representação mistificada que a economia-política clássica fazia dela, nomeadamente, através da aceitação como plausível da afirmação de que as mercadorias eram trocadas na proporção dos seus valores.

2. Formação do lucro produtivo.

As mercadorias não são trocadas na proporção dos seus valores, e isso acontece desde a generalização da troca intermediada, muito antes da implantação do mercantilismo de que cuja evolução e aperfeiçoamento emergiu o modo de produção capitalista. De então para cá, não só a taxa de lucro precede a taxa da chamada “mais-valia” como a determina, porque a troca das mercadorias, de qualquer tipo e não só da mercadoria trabalho, nunca foi uma troca equitativa, mas uma troca desigual [21]. Com a expansão da compra da mercadoria trabalho assalariado, generalizada pelo modo de produção capitalista, é claro que o lucro passou a ter uma das fontes da sua génese na troca desigual de exploração efectuada com os produtores e vendedores do trabalho. Isso, contudo, não anulou a necessidade da manutenção de outras formas de troca desigual para a realização do lucro e a determinação do seu montante, para a transformação do valor apropriado como trabalho em valor apropriado como dinheiro e para a realização da transformação do dinheiro em mais dinheiro.

Os trabalhadores assalariados, em geral, estão sujeitos a uma relação de troca desigual de exploração que possibilita a apropriação de valor sob a forma de trabalho, na qual reside uma das fontes da génese do lucro produtivo. Existem excepções, por exemplo, aqueles cujo trabalho é prestado em condições ambientais mais favoráveis e com esforços e ritmos menores em jornadas também menores e são pagos com salários de nível elevado (muitos dos mais qualificados) nem são alvo de troca desigual desvantajosa para si; e outros, nomeadamente, aqueles cujo trabalho não é empregado na produção de mercadorias, estão sujeitos a relação de troca desigual de exploração que não origina lucro, porque o valor que lhes é apropriado como trabalho, sendo consumido pelos compradores do trabalho, não volta a ser vendido. Todos eles, contudo, são compradores da produção, tal como ocorre com outros compradores, sejam ou não trabalhadores assalariados; nessa condição, são realizadores do lucro do capital produtivo, através da transformação do valor apropriado sob a forma de trabalho em valor apropriado sob a forma de dinheiro e da transformação do dinheiro correspondente ao capital consumido em mais dinheiro. O lucro do capital produtivo, portanto, tem uma das fontes da sua génese na transformação em dinheiro do valor apropriado sob a forma de trabalho aos trabalhadores a quem é comprado trabalho e outra na apropriação de dinheiro dos compradores das mercadorias produzidas.

2.1. Transformação do valor apropriado como trabalho em lucro do capital.

O trabalho assalariado, a forma como o trabalho é apresentado no mercado na sociedade burguesa, constitui uma mercadoria especial, por quatro razões fundamentais (entre outras): é a única das mercadorias reprodutíveis que é produzida sem recurso a capital; o comprador conhece o valor do seu custo de produção, que é o valor que acrescenta ao valor dos objectos da sua acção e dos outros meios de produção consumidos enquanto ele próprio é produzido; a sua venda constitui uma necessidade vital para o seu produtor e vendedor, que por isso é compelido a vendê-la; e o seu valor mantém-se estável ao longo dos tempos (dez horas de trabalho prestado em condições ambientais, de esforço e de ritmo similares têm o mesmo valor hoje que tiveram no passado e que terão no futuro). Deste modo, o valor do trabalho assalariado constitui o padrão para a determinação do valor das mercadorias em cuja produção é empregado, a variável independente na produção das mercadorias produzidas com recurso a capital; e a comparação do valor do trabalho presente ou vivo vendido pelo trabalhador com o menor valor das mercadorias que recebe em troca, numa relação de troca desigual de valor que lhe é desfavorável, permite deslindar o fenómeno da apropriação de valor na produção das mercadorias em que o trabalho é empregado, produzido e consumido. Todos os discursos explicativos da génese do lucro produzidos pelos economistas burgueses das mais variadas tendências, baseados na troca de mercadorias produzidas por mercadorias ou na diversidade da utilidade das mercadorias para os seus compradores, constituem apenas tentativas de melhor legitimação do lucro e não explicações consistentes desta parte da realidade social. Marx foi o pioneiro dos críticos dos discursos sobre a economia-política a tentar elaborar um modelo explicativo consistente, mas também ele falhou, acabando por legitimar a apropriação de valor na troca desigual efectuada pelos compradores do trabalho com os seus produtores e vendedores pelo “dom” da suposta mercadoria força de trabalho produzir mais valor do que um seu suposto próprio valor, mais valor esse da inteira propriedade do capitalista que a comprava, que assim, em seu entender, de nada se apropriava.

No processo de produção ocorre a produção do valor (do valor do trabalho e, através dele, do novo valor adquirido pelos objectos transformados pela sua acção), mas a apropriação de valor, porém, ocorre na esfera da circulação das mercadorias, na sua compra e venda, pela diferença entre o valor do trabalho vendido pelo trabalhador e o menor valor do trabalho com que o capitalista lhe paga (contido nas mercadorias compradas pelo salário), sendo o pagamento efectuado após o trabalho produzido [22]. E a realização da transformação do valor apropriado como trabalho em valor apropriado como lucro do capital, por seu lado, ocorre igualmente na circulação das mercadorias, agora na compra e venda das novas mercadorias produzidas. Ao comprarem meios de produção, com o preço de compra os capitalistas realizam a transformação em lucro dos vendedores da parte excedente do preço de venda das mercadorias face ao preço de compra dos seus factores produtivos, reproduzindo de forma ampliada a parte consumida do capital empregado (e, com isso, também a parte correspondente ao valor apropriado como trabalho por estes aos trabalhadores a quem compraram trabalho). Do mesmo modo, ao comprarem meios de subsistência, os trabalhadores realizam a transformação em lucro dos vendedores da parte excedente do preço de venda das mercadorias face ao preço de compra dos seus factores produtivos, reproduzindo de forma ampliada a parte consumida do capital empregado (e, com isso, também a parte do valor apropriada como trabalho por estes aos trabalhadores a quem compraram trabalho). O mesmo acontece com os capitalistas (e as fracções de classe suas associadas) ao comprarem meios de subsistência para si. Os capitalistas acabam por ser os únicos intervenientes na troca que são, em simultâneo, compradores e vendedores de mercadorias produzidas com recurso a capital, cujo preço contém lucro, e compradores de uma mercadoria especial que não é produzida com recurso a capital, o trabalho humano vivo, cujo preço não contém lucro. Os trabalhadores, por seu lado, são vendedores de uma mercadoria que não é produzida com recurso a capital, o seu trabalho, cujo preço não contém lucro, e compradores de mercadorias produzidas com recurso a capital, os meios de subsistência, cujo preço contém lucro.

A troca das mercadorias, em geral, é uma troca desigual de valor, vantajosa para aqueles que vendem menor valor pelo mesmo preço ou que compram maior valor pelo mesmo ou menor preço. Nas trocas entre os capitalistas, este facto é irrelevante, por um lado, porque desconhecem o valor do custo de produção das mercadorias que compram e vendem uns aos outros, e, por outro, porque as pagam com o capital que já acumularam, interessando-lhes é comprá-las com utilidade acrescida; e, ainda, no caso dos meios de produção, por um lado, porque a sua maior utilidade possibilitar-lhes-á aumentar a produtividade dos seus processos produtivos, aumentando assim a parte de que poderão vir a apropriar-se do valor do trabalho que compram, e, por outro, porque seja qual for o preço por que os comprem, no acto da venda das novas mercadorias produzidas com eles reproduzem de forma ampliada a parte consumida do capital neles empregado, através da formação do preço de venda por aplicação de uma taxa de lucro ao preço de compra. Nas trocas entre os capitalistas e os trabalhadores, estes vendem uma mercadoria que não é produzida com recurso a capital, o seu trabalho, não obtendo qualquer lucro, e compram mercadorias, os meios de subsistência, produzidas com recurso a capital, pagando-as com o dinheiro que receberam em pagamento da sua, realizando a reprodução ampliada do capital despendido pelos vendedores (e, com isso, também a parte correspondente ao valor apropriado como trabalho por estes aos trabalhadores a quem compraram trabalho). No acto da troca, os trabalhadores comportam-se como meros intermediários que perdem sempre: vendem sem lucro e compram com ele acrescentado pelos capitalistas, e pelo mesmo preço recebem como compradores menos valor do que o que forneceram como vendedores, numa troca desigual que lhes é desvantajosa.

Como o valor da produção é superior ao valor retribuído aos trabalhadores nela empregados, para que o valor que lhes é apropriado como trabalho seja transformado em lucro do capital é necessário que a parte das mercadorias cujo valor corresponde à parte apropriada seja adequada em quantidade e em diversidade e que existam compradores dispondo para o efeito do capital ou do dinheiro com que possam comprá-las (ou, quando não dispondo, que lhes seja adiantado como dinheiro de crédito). No caso de meios de produção, esses compradores são os capitalistas, para substituição dos meios de produção consumidos e para ampliação ou acumulação deste capital, e, no caso dos meios de subsistência, são igualmente os capitalistas e as fracções de classe suas associadas, assim como os trabalhadores empregados nas funções de gestão empresarial e estatal do capital e da produção, os trabalhadores empregados na sua produção e na produção dos meios de produção consumidos e ainda outros compradores. Numa hipotética situação de equilíbrio da produção e de distribuição do capital social, de similaridade dos níveis da produtividade dos processos produtivos, dos salários, dos esforços e dos ritmos da prestação do trabalho e nas mesmas jornadas numa dada formação social, os preços das mercadorias produzidas com o trabalho seriam representativos dos seus valores do custo de produção, a taxa de exploração dos trabalhadores em qualquer processo produtivo particular seria similar, assim como similar seria a taxa de lucro obtida por cada um dos produtores. Como a produção das mercadorias é efectuada em situação de concorrência entre produtores, procurando cada um obter vantagens competitivas que lhe permitam produzir e vender a maior quantidade com a melhor taxa de lucro, para o efeito reduzindo os seus valores ou os seus preços do custo de produção, os seus preços de venda variam e ao mesmo preço de venda poderão corresponder diferentes valores e preços do custo da sua produção ou ao mesmo valor e preço do custo poderão corresponder diferentes preços de venda, variando assim a taxa de lucro que cada produtor obtém. Isto tem sido conseguido por diversos modos, isolados e conjugados, e, desde a entrada do capitalismo na fase de maturidade, mais notoriamente através de novas concepções que foram sendo introduzidas na gestão empresarial do capital, aumentando a sua eficácia, e da produção, aumentando a sua eficiência, à medida que os gestores empresariais foram substituindo os capitalistas nas funções de gestão.

Na gestão do capital, deixando de lado a distorção da concorrência por obtenção de concessões de monopólio e de oligopólio e o frequente recurso à cartelização para a fixação de preços e a repartição do mercado, destacam-se: a gestão do emprego — visando a manutenção de uma dada taxa de desemprego, o chamado exército de trabalho de reserva, seja pela importação de trabalhadores migrantes, seja pela deslocalização da produção para regiões de salários mais baixos — e a inflação dos preços de venda das mercadorias (o aumento destes preços superior ao aumento dos preços de custo de produção, o que, mantendo ou aumentando menos o salário nominal, reduz o salário efectivo) [23], que permitem controlar os níveis dos salários absorvendo ou subvertendo as reivindicações dos trabalhadores; a integração de representantes dos trabalhadores na gestão empresarial em funções pouco mais do que decorativas, nomeadamente em diversos países europeus no pós II segunda guerra mundial, conhecida por co-gestão; o investimento em meios de trabalho de utilidade acrescida, mais potentes, rápidos e automatizados, que possibilitam o aumento da produtividade dos processos produtivos; a inovação constante, pela investigação e o desenvolvimento de novas técnicas e de novos produtos de características melhoradas que mais rapidamente se tornam obsoletos, renovando continuamente a procura; o outsourcing, a subcontratação do fornecimento de peças, de subconjuntos ou do produto acabado a empresas terceiras; o recurso cada vez mais frequente ao trabalho assalariado contratado como falso trabalho independente [24], seja directamente seja através de umas ditas “empresas de trabalho temporário” que não têm esses trabalhadores ao seu serviço, funcionando como “agências de emprego” perpetuadoras da precariedade do vínculo laboral; a introdução da intermitência da prestação do trabalho, de forma eufemística designada por flexibilização, contabilizando os períodos de trabalho anualmente e não semanalmente, permitindo a alternância de períodos de inactividade com períodos alargados de actividade, adaptando o trabalho necessário às flutuações da procura da produção, evitando o pagamento de trabalho em períodos diários extraordinários e mudanças na constituição da força de trabalho que ocorreriam pelo despedimento colectivo frequente facilitado pela redução das indemnizações compensatórias; a aquisição de empresas concorrentes, integrando-as por fusão, mantendo-as como unidades de produção subordinadas ou eliminando-as, ou de outras para diversificação da produção; a gestão das dívidas, dos investimentos e dos lucros a serem distribuídos; a criação de empresas multinacionais e, depois, transnacionais, deslocalizando a produção para países de salários mais baixos, proporcionadores de benefícios fiscais os mais diversos e menos exigentes em agressões ambientais, ávidos de capital de investimento; a criação de empresas offshore em paraísos fiscais para redução dos impostos sobre as transacções e os lucros; o investimento em títulos de propriedade de valor fictício na especulação bolsista, etc.

Na gestão da produção, o primeiro dos modos de aumentar o lucro, antes mesmo de qualquer melhoria significativa da produtividade, terá sido, desde sempre, o aumento da jornada ou do esforço e do ritmo ou intensidade do trabalho prestado na mesma jornada, o que aumenta o valor do trabalho produzido face ao valor do trabalho contratado; outro foi a redução do período dos ciclos produtivos e de reprodução do capital circulante, através da introdução da laboração contínua da produção por turnos de trabalhadores; outro foi a introdução de maquinaria potente e cada vez mais rápida e automatizada, e, depois, a decomposição do trabalho em tarefas cada vez mais simples e repetitivas, conhecida por “taylorismo”, e a introdução da linha de montagem, cuja velocidade determina o ritmo do trabalho, possibilitando a redução de desperdícios e o aumento da intensidade do trabalho prestado, ou do seu valor, que ficou conhecida por “fordismo”; outro foi a gestão dos stocks de matérias-primas e de produtos intermédios e acabados, reduzindo as quantidades e os tempos de armazenamento e aumentando a sua rotação, e a organização da prestação do trabalho por pequenas equipas rotinadas, acolhendo as sugestões da sua experiência, conhecido por “toyotismo”; e outro, ainda, foi o recurso à vigilância, ao controlo das pausas e dos ritmos da prestação do trabalho e à ameaça de represálias pela aplicação de sanções diversas, reforçando o despotismo nas relações de trabalho. Em suma, a gestão da produção, reduzindo desperdícios, automatizando processos, eliminando operações supérfluas e aumentando o timo do trabalho, assim como reduzindo os períodos de imobilização de matérias-primas, de componentes e do produto acabado, tem em vista o aumento da eficiência produtiva.

Ao arrepio do que foi sendo ideologicamente plasmado nas Constituições e nas leis fundamentais como atributos reservados aos cidadãos concretos, o povo, a quem passou a ser reconhecida a soberania, as empresas foram constituídas como espaços societários de exercício autoritário de poder privado [25], com regras e polícias privativas, em que os trabalhadores assalariados são destituídos de direitos e de garantias para além dos parcos contratualizados, permanentemente violados, onde a liberdade fica à porta. Formam assim um autêntico novo Estado soberano, que capturou o Estado absoluto e o transformou em Estado suserano, construído pelos portadores de títulos de propriedade dos mais diversos tipos do capital. Esta qualidade especial da cidadania dos portadores de títulos de propriedade confere-lhes uma dualidade de direitos, outorgados a si próprios como graça pelos relevantes serviços prestados na reorganização económica, ideológica e política da sociedade, a qual lhes permite o controlo do novo Estado soberano. Embora nesta faceta sejam identificados apenas pelos poucos que são obrigados a dar rosto aos direitos de representação da maioria do capital, todos formam verdadeiras associações de malfeitores anónimos actuando na sombra, acabando sendo facilmente confundíveis com os homens de mão (os gestores empresariais) que escolheram para substituí-los na gestão da produção e do capital. E, coisa curiosa, até nos impostos cobrados para assegurar o financiamento do Estado que controlam os cidadãos especiais portadores de títulos de propriedade constituem uma casta privilegiada: ao contrário do que acontece com os trabalhadores assalariados, para os quais os impostos recaem sobre as suas receitas (os salários), para eles os impostos recaem apenas sobre parte das receitas (os lucros).

Ao tempo em que escreveu O Capital, apesar do que já era indiciado sobre o desenvolvimento do capitalismo e de muitas previsões acertadas, Marx não poderia antever as formas diversificadas de aumento do lucro que ocorreriam ao longo dos cem anos seguintes. Ficou-se pelas formas básicas que já eram correntes na entrada na fase de maturidade, atribuindo o aumento do valor apropriado, por um lado, ao aumento do valor da produção através da extensão da jornada ou da intensificação do esforço e do ritmo do trabalho, a chamada por ele “mais-valia absoluta”, e, por outro lado, ao aumento do valor da produção, na mesma jornada e com esforço e ritmo do trabalho similar, através do aumento da produtividade nos ramos que produziam os meios de subsistência dos trabalhadores, que pela redução dos seus valores superior à redução dos seus preços de venda reduzia o valor comprado pelo salário (ou, para ele, o valor da força de trabalho), o que designou por “mais-valia relativa”. E quanto a esta última forma Marx errou, embora isso não seja relevante; por um lado, porque este efeito — a redução do valor das mercadorias compradas pelo salário e o aumento da taxa de exploração ou do valor apropriado como trabalho que daí decorre — é produzido pela progressiva maior utilidade de meios de trabalho mais potentes, rápidos e automatizados em quase todos os ramos, salvo naqueles especiais dedicados à produção de produtos de luxo destinados ao consumo exclusivo dos capitalistas e das outras fracções de classe suas associadas e aos dedicados à produção de produtos e de equipamentos sociais e militares, já que todos aqueles participam na produção de meios de subsistência, uns de forma directa e outros de forma indirecta (através da produção dos meios de produção empregados na produção dos meios de subsistência); e, por outro lado, porque o aumento da lucratividade não é conseguido apenas pelo recurso à maior utilidade e produtividade dos meios de trabalho, mas à sua conjugação com o aumento da intensidade do trabalho, que se traduz no aumento do esforço e do ritmo da sua prestação e, em consequência, no aumento do seu valor, e com outros factores que aumentam a eficiência produtiva.

O que era e continua sendo correntemente designado por aumento da produtividade deveria ser designado por aumento da eficiência produtiva (a redução do valor do custo de produção); enquanto o aumento da exploração (a redução do preço do custo de produção) e a sua conjugação com o aumento da produtividade deveria ser designado, com maior propriedade, por aumento da eficácia produtiva (a redução do valor do custo e do preço do custo de produção). O seu resultado constitui um dos instrumentos do aumento da eficácia da gestão do capital, o aumento da lucratividade das empresas de maior eficácia produtiva, independentemente do tipo das mercadorias que produzam, meios de subsistência ou meios de produção. Isto é conseguido por aumento da parte do valor de que se apropriam na relação de troca desigual de exploração que efectuam com os trabalhadores a quem compram trabalho e por aumento da troca desigual vantajosa que efectuam com eles, com outros trabalhadores (que foram sujeitos pelos compradores do seu trabalho a uma dada taxa de exploração) e com outros compradores que já compravam ou que passaram a comprar as suas mercadorias, através do aumento do diferencial entre os seus menores preços de venda e de custo da produção, desvalorizando o dinheiro ou o capital dos compradores, que pela redução relativa do valor das mercadorias face ao seu preço de venda compram pelo mesmo preço relativo menor valor, realizando assim a transformação do aumento do valor apropriado em aumento do lucro obtido.

2.2. Realização do lucro: troca desigual de exploração lucrativa e troca desigual vantajosa lucrativa.

O aumento do lucro obtido pelas empresas mais eficientes passa por duas fases, ambas ocorrendo na esfera da circulação das mercadorias; na primeira, os capitalistas compram aos trabalhadores o seu trabalho com um determinado valor e pagam-no por um determinado preço, o salário corrente, correspondente a menor valor, o valor dos meios de subsistência comprados com o salário, apropriando-se da parte do valor do trabalho correspondente a essa diferença, numa troca desigual desvantajosa para os trabalhadores; na segunda, os capitalistas transformam a parte apropriada do valor do trabalho em lucro do seu capital, pela aplicação de uma taxa de lucro ao preço de compra da parte consumida dos factores produtivos empregados (do trabalho e dos meios de produção), formando assim o preço de venda das mercadorias com eles produzidas. A realização desta transformação ocorre com a venda das mercadorias no mercado (porque embora desde a sua criação e produção os produtos se destinem à troca, é a venda que consuma a sua realização como mercadorias), sendo efectuada pelos compradores. Com a formação do preço de venda das mercadorias produzidas acrescentando uma parcela de preço ao preço de custo da produção (o preço do trabalho presente e o dos meios de produção), correspondente à resultante da aplicação da taxa de lucro à parte consumida do capital empregado, os capitalistas aumentam o preço de venda, desvalorizando com isso o preço pago pelo trabalho que compraram, o salário, que assim passa a comprar menor valor, isto é, com o preço recebido em pagamento da mercadoria que venderam os trabalhadores compram menos valor do que o do trabalho vendido. Nesta troca desigual vantajosa para os capitalistas e desvantajosa para os trabalhadores que empregam reside uma das fontes do lucro, no caso, através da exploração a que aqueles trabalhadores estão sujeitos na relação de produção capitalista; e como acaba por possibilitar a obtenção de um lucro, isto é, de mais dinheiro do que o aplicado na compra dos factores produtivos, esta troca desigual constitui uma troca desigual de exploração lucrativa.

Na sociedade burguesa, porém, os trabalhadores assalariados não estão sujeitos apenas a trocas desiguais de exploração lucrativas, típicas da relação de produção capitalista, embora elas constituam a relação de troca que se foi tornando dominante. Enquanto compradores de meios de subsistência, eles poderão estar também sujeitos a meras trocas desiguais vantajosas para os vendedores, nomeadamente, em caso de aumento ou inflação dos preços de venda ou quando existam aumentos da eficiência e da eficácia da gestão da produção (pela redução de desperdícios e do tempo de produção, pelo aumento da produtividade e do valor do trabalho prestado no mesmo período e, em geral, por quaisquer formas de redução dos preços de custo da produção) que possibilitem a uns capitalistas venderem as suas mercadorias por preço similar ou inferior ao das mercadorias congéneres dos concorrentes, mas com maior diferencial entre os seus preços de venda e de custo, vendendo pelo mesmo preço relativo mercadorias com menor valor. Nestes casos, os compradores realizam os maiores lucros obtidos por aqueles capitalistas, através da maior redução dos seus preços de custo da produção face à redução dos preços de venda, comprando pelo mesmo preço relativo menor valor do que dantes, ainda que possam adquirir maior quantidade destas mercadorias, através de uma troca desigual ainda mais vantajosa para os vendedores e mais desvantajosa para os compradores. Em múltiplas outras situações, os trabalhadores assalariados não vendem trabalho empregado na produção de mercadorias, e tanto podem vendê-lo a capitalistas, a trabalhadores no activo ou aposentados e a outros compradores, nomeadamente, quando o seu trabalho é empregado na produção de serviços consumidos pelos compradores do trabalho. Não sendo este trabalho empregado na produção de mercadorias ele não possibilita a obtenção de lucro aos compradores e seus consumidores. Mas, se for prestado na jornada corrente, nas condições habituais de esforço e ritmo e pago pelos salários correntes, os trabalhadores que o vendem estão sujeitos a uma troca desigual desvantajosa para si e vantajosa para os compradores, neste caso, uma troca desigual vantajosa de exploração não lucrativa, visto os compradores apenas se apropriarem de valor sob a forma de trabalho e essa parte apropriada do valor do trabalho ser por si consumida e não originar lucro.

A obtenção do lucro, portanto, é possibilitada por duas formas principais de troca desigual: pela troca desigual de exploração lucrativa efectuada entre os capitalistas e os trabalhadores a quem cada um compra trabalho e pela troca desigual vantajosa lucrativa efectuada pelos capitalistas com os compradores das suas mercadorias — os trabalhadores a quem cada um compra trabalho, os trabalhadores cujo trabalho é comprado por outros capitalistas e ainda outros compradores — porque todos efectivam a realização do lucro, visto os capitalistas concretos não venderem a sua produção directamente aos trabalhadores a quem compram trabalho. E, como vimos, quando o trabalho comprado não é empregado na produção de mercadorias, mas na produção de objectos e de serviços consumidos pelo seu comprador, a própria troca desigual de exploração não constitui uma troca desigual de exploração lucrativa. Ainda que a génese do lucro produtivo resida na troca desigual efectuada entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados, e não seja possível determinar com precisão a parte realizada por troca desigual de exploração lucrativa e a parte realizada por troca desigual vantajosa lucrativa, por se desconhecer quem compra e vende a quem, isso não invalida que ocorra por essas duas formas de troca desigual. Um meio expedito, ainda que de resultados imprecisos, de introduzir a distinção, contudo, é pela aplicação da taxa de lucro separadamente à parte do capital empregada como salários e à parte aplicada como meios de produção. Pelo menos, ficaria a saber-se que da aplicação da taxa de lucro ao preço de compra dos meios de produção resulta a apropriação de valor por troca desigual vantajosa lucrativa, no caso, com os trabalhadores do ramo dos meios de produção, aos quais o ramo dos meios de subsistência não compra trabalho, desfazendo a confusão que restringe a realização do lucro à troca desigual de exploração lucrativa efectuada entre os capitalistas concretos e os trabalhadores a quem cada um compra trabalho.

Até à chamada transformação dos valores em preços de produção introduzida no capítulo IX do Livro III de O Capital, dedicado à “formação de taxa geral de lucro (taxa média de lucro)”, a concepção apresentada para a formação dos preços das mercadorias e do lucro ainda era a de que: “A conversão da mais-valia em lucro deve ser inferida da transformação da taxa de mais-valia em taxa de lucro, e não o contrário. Mas, de facto, o ponto de partida histórico é a taxa de lucro. Relativamente, mais-valia e taxa de mais-valia são o invisível, o essencial a investigar, enquanto a taxa de lucro e, por conseguinte, a mais-valia sob a forma de lucro transborda na superfície dos fenómenos” [26]. O “essencial a investigar” foi tratado nos capítulos seguintes, e mereceria abordagem autónoma que não farei aqui. Do que ressalta da chamada transformação dos valores em preços de produção, apesar de ser reconhecido que “o ponto de partida histórico é a taxa de lucro”, é ter sido mantida a concepção original de que o lucro correspondia à chamada “mais-valia”, o suposto valor suplementar criado no processo produtivo pela utilidade da força de trabalho. Marx nunca considerou que o valor apropriado pelos capitalistas tivesse origem e fosse realizado por forma diversa da relação de troca desigual de exploração lucrativa estabelecida com os trabalhadores assalariados a quem cada um compra trabalho, nomeadamente, através da relação de troca desigual vantajosa lucrativa estabelecida com os compradores da sua produção (trabalhadores cujo trabalho é comprado por outros capitalistas e ainda outros compradores); por isso, lucro e taxa de lucro seriam determinados pela chamada “mais-valia” e a sua taxa e não o inverso. Representa, no fundo, a manutenção da errada concepção original que marca O Capital, a de que o lucro obtido por cada capital particular teria a sua génese e realização restritas à troca desigual de exploração lucrativa.

2.3. Formas do lucro: lucro esperado, lucro obtido, margem de lucro e taxa de lucro.

Os preços nominais das mercadorias em cuja produção o trabalho foi empregado, ou preços a que são lançadas no mercado, são formados de modo a que a venda da produção proporcione um lucro esperado ou estimado. As vicissitudes do mercado — a adequação da oferta à procura (em características, em qualidade e em quantidade das mercadorias produzidas), a concorrência de produtores de mercadorias congéneres produzidas com diferentes preços de custo de produção, podendo, por isso, ser apresentadas para venda com preços diversificados, e a preferência dos consumidores, por exemplo — obrigam ao ajustamento dos preços de venda, efectuado por transformação dos preços nominais em preços efectivos ou de mercado. Eventuais discrepâncias entre os preços nominais e os preços de mercado e entre a quantidade das mercadorias produzidas e a quantidade vendida traduzem-se em eventual discrepância entre o lucro esperado e o lucro obtido, reduzindo-o ou aumentando-o, ou até em perdas. A incerteza da reprodução do capital empregado constitui uma das características do capitalismo, e por essa razão o lucro é legitimado desde longa data como remuneração do capital pelo risco do sucesso do empreendimento.

Tal como a produção é o resultado do emprego da totalidade do capital — porque todo ele compra trabalho, a mercadoria universal, independentemente da forma como se apresente — e não apenas da parte empregada como salários, é da totalidade dele que os capitalistas esperam obter lucro. Por isso, formam os preços nominais das mercadorias com ele produzidas pela aplicação da taxa de lucro que esperam vir a obter, e que desejam, pelo menos, não seja inferior à de qualquer deles. Os preços nominais assim formados determinam os lucros esperados; e os preços efectivos em que o mercado transforma os preços nominais determinam os lucros obtidos. Num ciclo anual de reprodução de um dado capital particular, a diferença entre o capital realizado e a parte consumida do capital empregado constitui a chamada margem de lucro ou lucro operacional, e a sua relação é expressa pela taxa de margem de lucro, enquanto a relação entre o lucro obtido e o capital empregado é expressa pela taxa de lucro. Numa dada formação social, portanto, o lucro social obtido é constituído pelo somatório dos lucros particulares que contribuíram para a sua formação, e a taxa de lucro social, ou taxa geral de lucro, relaciona o lucro social assim determinado com a totalidade dos capitais particulares empregados.

Na errada concepção de Marx — na qual o lucro era concebido como “mais-valia”, valor suplementar fornecido pela força de trabalho para além do seu próprio valor, criado no processo de produção pela sua utilidade trabalho — o montante do lucro obtido por cada capital particular resultava da aplicação à sua parte empregada na compra da força de trabalho, os salários, de uma taxa da chamada “mais-valia”. A designação de capital variável que Marx atribuiu a esta parte do capital produtivo decorria da sua concepção de que ela proporcionava valor suplementar ao seu valor, a chamada “mais-valia”, e, portanto, que se valorizava; o valor apropriado, por isso, estava relacionado com os salários, e daí o conceito de taxa de “mais-valia” que criou. Numa situação de completa mobilidade da força de trabalho, sendo similares os níveis dos salários em qualquer ramo da produção social, e dados os demais preços, em condições de igualdade da jornada, do esforço e do ritmo, ou potência, do trabalho, ocorreria uma taxa geral de “mais-valia”, a relação da totalidade do valor apropriado, e do lucro social em que era transformado, com a parte do capital social empregada como salários. Nada permitia afirmar que os preços nominais com que as mercadorias eram apresentadas no mercado fossem formados pela aplicação da taxa geral da chamada “mais-valia” esperada, nem que os lucros esperados, particulares e social, fossem o resultado de preços nominais assim formados, mas foi em torno do conceito de taxa geral da chamada “mais-valia” que Marx elaborou o seu modelo inicial de formação dos preços nominais.

De um tal modelo de formação dos preços nominais resultavam lucros particulares não proporcionais aos capitais empregados, e, para capitais de idêntico montante ou proporcionais, taxas de lucro particulares inversamente proporcionais às suas composições orgânicas, a relação entre a parte empregada como meios de produção, designada por capital constante, e a parte empregada como salários, designada por capital variável: “Se a variação do valor redunda em alterar a composição orgânica do capital, fazendo subir ou descer a razão entre capital variável e capital constante [27], a taxa de lucro, não se alterando as demais condições, aumentará com o acréscimo relativo e diminuirá com o decréscimo relativo do capital variável” [28]. Como consequência, os capitais afluiriam para os ramos em que fosse menor a composição orgânica do capital, cuja lucratividade seria maior, abandonando os ramos de maior composição orgânica, de menor lucratividade, provocando desequilíbrios na distribuição do capital social e entre a oferta e a procura das mercadorias, com a consequente baixa dos preços de mercado e das taxas de lucro obtidas nos ramos em que o capital fosse excessivo e o aumento dos preços de mercado e das taxas de lucro nos ramos em que fosse insuficiente, até que novas mobilidades redistribuíssem o capital social equilibradamente e reconduzissem os preços de mercado e as taxas de lucro obtidas a preços e a taxas de equilíbrio. Se estes preços de mercado promoviam o equilíbrio da produção social e, sendo similares a produtividade e as demais condições, proporcionavam taxas de lucro particulares similares, da hipotética aplicação do modelo inicial de formação dos preços nominais de Marx resultava um cenário discrepante, já que dele decorriam taxas de lucro desiguais, inversamente proporcionais às composições orgânicas dos capitais.

Para corrigir a inconsistência do modelo e a sua discrepância com a realidade, no Livro III de O Capital, publicado postumamente por Engels em 1894, passados vinte e sete anos da publicação do Livro I, foi apresentado um novo modelo de formação dos preços nominais, agora pela aplicação da taxa geral de lucro, sendo os preços nominais resultantes designados por preços de produção. A obtenção de taxas de lucro similares em que o novo modelo se baseava, contudo, era justificada de modo inverosímil, quer porque a taxa geral de lucro, a esperada e a obtida, é o resultado de taxas de lucro particulares diversificadas, tanto as esperadas como as obtidas, e dos preços particulares, nominais e efectivos, que delas resultam, e não a sua causa, e, muito menos, é o resultado da taxa geral da chamada “mais-valia” de que derivaria a taxa geral de lucro, como erradamente era apresentado; quer porque os preços nominais formados pela aplicação da taxa de lucro esperada representam os valores das mercadorias a que se referem, e não são deles divergentes, como também era invocado; quer, ainda, porque a repartição do lucro social pela aplicação de taxas de lucro particulares diversificadas corresponde à apropriação por cada capital particular da mesma parte com que para ele contribuiu, não reflectindo qualquer apropriação de lucros alheios, como também era referido.

A formação dos lucros particulares esperados através dos preços nominais, pela aplicação de taxas de lucro esperadas, constitui a forma de determinar o lucro social esperado e de reparti-lo e distribuí-lo por entre os diversos capitais particulares na medida em que cada um para ele contribua. Uma hipotética obtenção de taxas de lucro similares não decorre do altruísmo de uns capitalistas abdicarem de lucros próprios nem da pretensão de outros se apropriarem de lucros alheios para que assim seja realizada uma desejada equidade na lucratividade dos diversos capitais particulares, como resultava de uma das justificações da conversão dos valores em preços de produção; nem faz com que umas destas mercadorias sejam vendidas por preços acima do valor e outras por preços abaixo dele, como também foi invocado que acontecia com os preços de produção (já que são os preços de venda e as quantidades diversificadas das mercadorias congéneres vendidas a determinarem o preço e o valor médios desse género de mercadorias). O modelo de formação dos preços por aplicação da taxa de lucro ao capital empregado, portanto, constitui a forma necessária para determinar o montante do valor apropriado como trabalho, realizando a desvalorização do preço do trabalho presente independentemente de quem compra, atribuindo-lhe valor inferior ao do seu valor, assim como para determinar o montante do lucro social e a sua taxa, realizando, em simultâneo, a sua distribuição pelos diversos capitais particulares na exacta medida em que cada um para ele contribuiu. Aparentemente, todos os capitalistas compram pelo mesmo preço (o salário corrente) a mesma quantidade de trabalho presente (prestado com o esforço e o ritmo habituais na jornada de duração corrente), apropriando-se de valor na forma de trabalho à mesma taxa (a taxa de exploração ou de “mais-valia”); na realidade, a realização da produção com níveis diversificados da produtividade, da taxa de exploração e da eficácia produtiva (conjugação dos níveis da produtividade com a taxa de exploração dos trabalhadores) possibilita a cada um deles a apropriação de valor sob a forma de lucro em proporção diversificada do montante do lucro social.

2.4. Aumento do lucro pela eficiência produtiva, a conjugação da produtividade com a intensidade do trabalho.

Se há meio de que os capitalistas não prescindem, quer no capitalismo menos desenvolvido, quer no mais desenvolvido, é de qualquer um que lhes permita apropriarem-se de valor do trabalho alheio. O aumento da produção pela introdução de instrumentos de trabalho potentes, rápidos e automatizados, que se expandiu ainda nos meados do século XIX aquando da imposição legislativa da redução dos longos períodos de trabalho, não deixou de ser acompanhado pelo aumento do ritmo do trabalho, através da organização dos processos de produção pela maior divisão do trabalho e a redução e simplificação das operações executadas por cada trabalhador. A conjugação do taylorismo — a planificação dos processos de produção e o estudo técnico da decomposição do trabalho e a sua cronometragem, e, depois da comprovação da sua operacionalização, a vigilância disciplinar da sua execução — com o fordismo — a introdução da linha de montagem automatizada cuja velocidade comanda o ritmo do trabalho — ficou constituindo um marco dos substanciais aumentos da produção pela conjugação do aumento da produtividade com o aumento dos ritmos do trabalho e da redução das pausas [28]. Estas duas formas de aumento da produção — pelo aumento da produtividade e pelo aumento do ritmo do trabalho — não mais foram abandonadas. Em geral, o aumento da produtividade reduz a quantidade nominal de trabalho consumida na produção de cada mercadoria, mas a sua conjugação com o aumento do ritmo da prestação aumenta a quantidade real consumida. Nestas situações, o aumento da produção no mesmo período traduz-se no aumento da produtividade do trabalho mais intenso, e mais do que a redução do valor unitário das mercadorias o seu resultado é a redução do seu preço de custo unitário, devido à sobre exploração dos trabalhadores.

O período de trabalho (diário e semanal) tem vindo a baixar, aumentando o tempo de lazer. Essa redução, contudo, não tem acompanhado os grandes aumentos da produtividade do trabalho atingidos a partir da década de oitenta do século XX. Longe vão os tempos dos períodos diários de trabalho de sol a sol (e não apenas nas actividades agrícolas), durante sete e seis dias por semana, quando os trabalhadores tinham pouquíssima ou nenhuma capacidade reivindicativa, e os próprios gestores estatais legislavam impondo períodos de trabalho menores, de doze e de dez horas, durante seis dias por semana, muitas vezes contra os interesses de vistas curtas de grupos de capitalistas particulares, porque sabiam os efeitos perniciosos sobre a produção pela fadiga causada por períodos de trabalho tão longos. Mas o período diário de trabalho de oito horas, durante seis dias por semana, recomendado em 1919 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a indústria (Convenção n.º1), foi já fruto da luta persistente dos trabalhadores assalariados, desde os tempos remotos de 1866. E a redução da jornada e do ritmo do trabalho por que continuam a lutar hoje os trabalhadores encontra a maior resistência por parte dos capitalistas, dos gestores empresariais e dos gestores estatais.

Talvez não por acaso, os gestores do capital (os empresariais e os estatais) se empenham tanto em terem os trabalhadores permanentemente ou por longos períodos à sua disposição, não considerando como tempo de trabalho essa disponibilidade, como acontece frequentemente, por exemplo, com os trabalhadores dos transportes, ou recorram a outros expedientes para justificarem o aumento dos períodos de trabalho na ocorrência de necessidades de aumento da produção, a serem compensados com períodos de inactividade ou pagando esse aumento ao preço correspondente ao trabalho prestado no período normal. Se o aumento do período de trabalho já não é uma reivindicação expressa dos gestores do capital (os empresariais e os estatais), a desregulação deliberada das relações laborais e o fomento da precariedade da prestação e da informalidade do contrato de trabalho, produzindo a instabilidade do emprego, a redução dos salários e o aumento efectivo dos períodos de trabalho constituem as formas não explícitas da actuação dos gestores do capital, em associação dos gestores empresariais com os gestores estatais. E só muito lentamente a redução das cadências e a introdução de pequenas pausas a intervalos regulares do período de trabalho vai conquistando terreno, porque os ritmos elevados permanecem entre as práticas maioritárias (algumas com disfarces antigos, como o trabalho à peça, os prémios por objectivos de produção, etc.). Por isso, para além das funções de gestão empresarial do capital que atribuem a associados altamente especializados, os capitalistas não dispensam as funções de gestão da produção (que vão da direcção técnica e disciplinar à planificação, coordenação e vigilância dos processos de trabalho), que entregam a outros associados, uns mais rústicos, outros mais sofisticados, mas todos igualmente especializados. Eles já não usam o chicote, como dantes usavam outros exploradores, modernizaram as formas da coerção, mas o assédio, a ameaça e a aplicação de sanções, de outras represálias ou o despedimento, a designação dos trabalhadores como colaboradores e toda a ideologia associada à “cultura de empresa” (porque “com papas e bolos se contentam os tolos”) continuam sendo práticas usuais. E sempre que lhes for favorável para a imagem pública de empresas responsáveis transferem essas práticas menos recomendáveis e outras responsabilidades para terceiros, empresas por si contratadas.

3. O auto designado “marxismo heterodoxo”.

Desde há umas dezenas de anos, foi tomando corpo, principalmente no Brasil e com pequena repercussão nalguns meios académicos daquele país, uma corrente do marxismo cujos mentores auto designam por “marxismo heterodoxo” ou “marxismo das relações de produção”, em contraposição ao “marxismo ortodoxo” ou “marxismo das forças produtivas”. O principal expoente desse “marxismo heterodoxo” é o marxista português João Bernardo, acolhido e apoiado naquele país por Maurício Tragtenberg e por outros marxistas locais. No geral, aquele “marxismo heterodoxo” baseia-se no estudo crítico que desde 1975 João Bernardo foi submetendo O Capital, nomeadamente, na obra específica que lhe dedicou, Marx Crítico de Marx [30], mas distingue-se pouco do “marxismo ortodoxo”. A principal “inovação” de João Bernardo foi a identificação dos gestores como classe social do capitalismo, juntamente com os “burgueses” e os trabalhadores, e que no seu entender constituem mesmo a classe social dirigente do capitalismo desenvolvido, os verdadeiros capitalistas, que Marx não identificara como tal e sobre os quais entrou em contradições surpreendentes, certamente influenciado pelo contexto da sua época. Para além desta identificação, outras concepções do “marxismo heterodoxo” referem-se, por um lado, a um modelo alternativo ao de Marx acerca da chamada “mais-valia relativa”, a qual é concebida como proveniente da apropriação pelos capitalistas das empresas mais produtivas de parte da chamada “mais-valia” apropriada pelos capitalistas das empresas menos produtivas, e, por outro, ao aumento do lucro das empresas que produzem maiores quantidades de mercadorias pela utilização mais intensiva das condições gerais de produção.

Quanto à revolução comunista proletária, o “marxismo ortodoxo” concebe-a pelo desenvolvimento das “forças produtivas”, que atingido o auge entraria numa suposta contradição com as “relações de produção” salariais ou capitalistas, conduzindo o capitalismo, para uns, ao colapso, e, para outros, à estagnação e à decadência, em qualquer dos casos colocando na ordem do dia a necessidade da revolução social (restrita à revolução política), por via reformista ou por via insurreccional, para a resolução da suposta contradição. O auto designado “marxismo heterodoxo”, por seu lado, distingue-se daquele porque a concebe pela alteração das “relações de produção” procurada pelos trabalhadores nas suas lutas nas empresas contra os capitalistas ou os seus representantes, através da tomada de consciência dos problemas concretos que os afectam e que pretendem resolver, pelo que se baseia no mero voluntarismo proletário. Nesta questão, o auto designado “marxismo heterodoxo” revela-se ainda mais idealista do que o “marxismo ortodoxo”, por indefinido, porque não identifica qualquer contradição social que a revolução se destinasse a resolver e a justifica pela emergência de contradições concretas variadas que a cada momento motivam os trabalhadores para a luta. Ambos continuam sonhando com a revolução social a ser levada a cabo pela classe social explorada do modo de produção capitalista, mas enquanto o “marxismo ortodoxo” a baseia na resolução de uma suposta contradição social, o “marxismo heterodoxo” baseia-a simplesmente na indignação contra a exploração iníqua a que o capitalismo submete os trabalhadores assalariados e no suposto desejo destes de acabarem com ela, ao arrepio do que têm sido as causas da evolução económica, ideológica e política da sociedade.

3.1. Concepções do “marxismo heterodoxo” acerca da chamada “mais-valia relativa”.

Apesar da minuciosa e extensa análise a que João Bernardo, o chefe de fila do “marxismo heterodoxo”, submeteu O Capital ele não criticou qualquer dos conceitos fundamentais usados por Marx. Dou alguns exemplos. Não definiu o conceito de “valor” das mercadorias, deixando-o no mesmo limbo em que Marx o colocara; aceitou que a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado era a força de trabalho, em vez do trabalho; identificou o valor apropriado pelos capitalistas como sendo uma suposta “mais-valia”, um suposto mais valor criado pelo trabalho produzido pela força de trabalho em relação a um suposto valor da força de trabalho, como Marx afirmara sem fundamentar; e caiu também na ratoeira de que trabalhos qualificados e complexos criavam mais valor do que trabalhos indiferenciados e do que trabalhos simples, aceitando as teses erradas de Marx sobre estes assuntos. E, quando tentou ultrapassar Marx, através de um modelo alternativo para a realização da chamada “mais-valia relativa”, errou. Na concepção de Marx, a chamada “mais-valia relativa” refere-se ao aumento da exploração dos trabalhadores através da desvalorização dos salários (ou, segundo ele, do valor da força de trabalho) possibilitada pelo aumento da produtividade no ramo dos meios de subsistência dos trabalhadores, permitindo reduzir os seus valores do custo de produção e vender pelo mesmo preço relativo menor valor. Embora não tenha entrado em pormenores sobre o assunto, deixando algumas lacunas explicativas, Marx estendeu o efeito da chamada “mais-valia relativa” à generalidade dos trabalhadores, que sofrendo a desvalorização da sua força de trabalho passavam a ser mais explorados, e à generalidade dos capitalistas da formação social onde tal ocorresse, que assim beneficiavam do aumento da chamada “mais-valia” que obtinham.

No modelo alternativo ao de Marx concebido por João Bernardo para a chamada “mais-valia relativa”, o aumento do valor apropriado restringe-se aos capitalistas das empresas mais produtivas, e provém da apropriação por eles de parte da chamada “mais-valia” obtida pelos capitalistas das empresas menos produtivas. O que resulta do modelo de João Bernardo, portanto, é coisa muito diferente do modelo não pormenorizado de Marx, e, além do mais, que mostra não encontrar fundamento na realidade. O aumento do lucro e da sua taxa resultam do aumento da troca desigual, e o mais frequente é serem obtidos pelos capitalistas das empresas mais eficazes, as que conjugam o aumento da produtividade com o aumento da intensidade do trabalho, possibilitando-lhes o aumento do diferencial entre os seus menores preços de venda e de custo de produção, o qual será realizado pelo aumento da troca desigual de exploração lucrativa que efectuam com os trabalhadores a quem cada um compra trabalho e pela troca desigual vantajosa lucrativa que efectuam com os compradores das suas mercadorias, sejam os trabalhadores que empregam, os empregados por outras empresas, ou outros compradores. E a menor taxa de lucro obtida pelos capitalistas das empresas menos eficazes deve-se a essa sua menor eficácia produtiva, que lhes reduz a competitividade e faz com que uma parte do valor apropriado por si como trabalho não chegue a ser transformada em lucro do capital, nem seu nem alheio, por ter sido desperdiçada com as mercadorias que ficaram por vender, ou por ter sido transformada em menor lucro com as mercadorias vendidas por preço abaixo do preço de mercado, ou até por ter sido transformada em perdas, com as mercadorias vendidas por preço inferior ao do preço do seu valor de custo de produção. O aumento do lucro dos capitalistas das empresas mais eficazes, portanto, não provém de qualquer transferência de valor apropriado pelos capitalistas das empresas menos eficazes, como concebe o auto designado “marxismo heterodoxo”.

Perdendo quota de mercado e ficando com parte da produção por vender ou vendendo-a abaixo do preço do valor ou de mercado (do preço do valor nas suas condições de menor eficácia produtiva até ao seu aumento generalizado), os capitalistas das empresas menos eficazes concorrentes não só não reproduzem de forma ampliada parte do capital que aplicaram nos seus meios de produção, como também não realizam como seus lucros parte do valor de que se apropriaram como trabalho dos trabalhadores que empregam. Mas nem por isso eles se apropriaram de menor valor sob a forma de trabalho dos trabalhadores que empregam, já que se apropriaram do mesmíssimo valor nessa forma do que se tivessem vendido a totalidade da sua produção fosse a que preço fosse. Eles compraram determinada quantidade de trabalho vivo e pagaram-na com determinados salários, correspondentes a menor valor, apropriando-se dessa diferença de valor. Consoante a proporção da produção que ficou por vender, e da que foi vendida abaixo do preço do valor, poderá até dar-se o caso de não recuperarem a totalidade do capital consumido e apresentarem perdas. Mas se estas empresas menos eficazes venderem a sua produção, na totalidade (por ampliação do mercado) e ao preço do valor, elas realizam com lucro a totalidade do capital consumido, incluindo o correspondente ao valor de que se apropriaram como trabalho. E se, em vez de vendedoras, estas empresas forem compradoras da produção das mais eficazes, embora recebendo menos valor do que o correspondente ao preço que pagam (comprem pelo preço de mercado ou mesmo ligeiramente abaixo), realizando parte do maior lucro que as vendedoras obtêm, isso é-lhes indiferente: ao venderem a sua produção (e com ela revenderem a parte dos meios de produção consumidos) formando o seu preço por aplicação da sua taxa de lucro, elas reproduzirão de forma ampliada a parte consumida do capital empregado.

O aumento do lucro obtido e da sua taxa, portanto, não ocorre devido apenas à chamada “mais-valia relativa”, ou ao aumento da produtividade, mas também ao aumento da chamada “mais-valia absoluta”, através da sobre exploração dos trabalhadores por extensão da jornada e do aumento do esforço ou do ritmo na prestação do trabalho mantendo os salários. Neste último caso, por exemplo, estes capitalistas também aumentam a produção em relação àqueles que não recorrem a tais expedientes, mas este aumento da produção implica não só o aumento da quantidade e do valor dos meios de produção empregados (matérias-primas e produtos intermédios) como o aumento da quantidade e do valor do trabalho vivo empregado, pelo que o valor do custo da produção aumenta pelo aumento do valor destes factores produtivos consumidos. Pressupondo-se similares os níveis da produtividade com que sejam produzidas esta parte das mercadorias do mesmo género, e o aumento da produção proporcional à extensão da jornada e ao aumento do ritmo do trabalho, o valor do custo de produção unitário das mercadorias produzidas por estas empresas, porém, é o mesmo do que o das mercadorias produzidas noutras empresas congéneres que respeitam a duração da jornada e o ritmo do trabalho contratados, mas o seu preço do custo de produção é menor (o capital consumido em cada mercadoria é menor) do que o daquelas suas concorrentes. Os capitalistas destas empresas também podem diminuir o preço de venda das suas mercadorias para obterem vantagem competitiva que lhes possibilite vender a sua maior produção e aumentar a sua quota de mercado. Vender abaixo do preço de mercado, neste caso, pode corresponder também a vender abaixo do valor do custo de produção. Apesar disso, apropriam-se de maior valor do que o dos seus concorrentes, e ainda fornecem mais valor aos compradores da sua produção do que recebem deles em pagamento; mesmo assim, aumentam os seus lucros.

Para além de julgar ter resolvido o mistério da realização da chamada “mais-valia relativa”, o auto designado “marxismo heterodoxo” também não resolveu o mistério da suposta distribuição da chamada “mais-valia absoluta”, já que neste caso são os capitalistas que vendem as suas mercadorias ao preço de mercado ou ligeiramente abaixo, mas também abaixo do valor do custo de produção, que se apropriam de maior valor do que o dos seus concorrentes. Vendendo abaixo do preço de mercado e abaixo do valor, mas acima do seu preço do custo de produção, que é abaixo do preço de custo de produção dos concorrentes, é desta diferença que lhes advém o seu maior lucro. Daqui se pode ver que o aumento da lucratividade das empresas mais eficazes não advém da apropriação por elas de parte do valor apropriado pelas empresas menos produtivas, já que neste caso são as empresas que praticam a sobre exploração directa dos trabalhadores pela extensão da jornada e pelo aumento do esforço e do ritmo do trabalho, que embora tendo menor nível de produtividade o compensam pelo aumento da taxa de exploração, permitindo-lhes obterem um lucro aumentado e a taxa maior do que a dos seus concorrentes. Ainda hoje, as formas de aumento do lucro por aumento da jornada e do esforço ou do ritmo do trabalho são correntes nos países de capitalismo dependente e com baixos níveis de produtividade, e mesmo nos países de capitalismo desenvolvido e com elevados níveis de produtividade constituem, sempre que possível, recurso não desprezável na busca de vantagens competitivas. Imaginemos o pequeno paraíso que constitui a conjugação de níveis elevados de produtividade com salários baixos e com longos períodos (diário ou semanal) e ritmos elevados do trabalho que ocorrem em zonas de capitalismo selvagem de respeitáveis países de capitalismo desenvolvido, em países de capitalismo menos desenvolvido e em muitos outros saídos de regimes políticos comunistas (e nalguns que os mantêm) que se abriram ao investimento estrangeiro [31].

O auto designado “marxismo heterodoxo”, através de intervenções do seu chefe de fila, tem também outras concepções menores sobre a chamada “mais-valia relativa”. Ele atribui a maior lucratividade das empresas mais produtivas não só à apropriação de parte da chamada “mais-valia” apropriada pelas empresas menos produtivas, como também à maior exploração a que sujeitariam os trabalhadores que empregam, que designa por ”trabalhadores da mais-valia relativa”. Neste caso, em sintonia com o “marxismo ortodoxo” e com as concepções erradas de Marx sobre o valor das mercadorias, que o atribuía à criação pelo trabalho, e que trabalhos qualificados e complexos (no sentido de mais intelectuais do que manuais) criariam mais valor do que trabalhos indiferenciados e trabalhos simples dos trabalhadores empregados pelas empresas menos produtivas, que designa por “trabalhadores da mais-valia absoluta”. Por serem mais explorados, os por ele designados “trabalhadores da mais-valia relativa” constituiriam a vanguarda na luta contra o capitalismo. Ele nem atribui a maior exploração destes trabalhadores à conjugação da maior produtividade com a maior intensidade do trabalho, por aumento do ritmo da sua prestação e pela redução das pausas, que é o que na realidade aumenta o valor do trabalho. Se o fizesse, teria de designá-los por “trabalhadores da mais-valia relativa e da mais-valia absoluta”, o que seria uma contradição pegada. São concepções sem qualquer fundamento, que não encontram relação consistente com a realidade. Com o aumento da sua taxa de lucro, poderá até acontecer que as empresas mais eficazes possam pagar (e, em geral, paguem) salários mais elevados aos seus trabalhadores mais qualificados e (nalguns casos) à generalidade dos seus trabalhadores, e ainda possam reduzir os seus períodos de trabalho. E se os trabalhadores destas empresas trabalharem por períodos menores e com esforços e ritmos correntes e auferirem salários mais elevados do que os das empresas menos eficazes concorrentes que trabalhem por períodos e a ritmos correntes e aufiram salários correntes, isso poderá fazer com que sejam menos explorados do que estes. Dependerá dos impactos que a eventual redução dos períodos de trabalho e do aumento dos salários tenham no aumento dos preços do custo de produção e na redução da sua taxa de lucro para níveis ainda confortáveis e das vantagens que tais empresas daí possam colher para o fortalecimento da sua “cultura de empresa” e a aceitação da “colaboração de classes”, assim como para a criação e difusão duma imagem pública de “responsabilidade social”.

3.2. Contribuição da maior utilização das condições gerais de produção para o aumento do lucro.

Uma outra forma do aumento do lucro e da sua taxa obtidos pelos capitalistas das empresas mais eficazes refere-se ao contributo da redução dos custos com as chamadas condições gerais de produção, o contexto em que ocorre a produção: antes de mais, a existência de forças produtivas necessárias e de mercados que consumam as mercadorias produzidas, ou de possibilidades da sua importação e exportação, mas também a existência de outros meios de produção (os equipamentos sociais mais diversificados, dos níveis de escolaridade superiores além dos obrigatórios e comuns a todos, às instituições de investigação científica e de desenvolvimento tecnológico universitárias e autonomizadas, às vias de comunicação, às vias de circulação e aos meios de transporte, à produção das empresas estatais, aos sistemas de saúde, a que poderíamos acrescentar a eficiência funcional das diversas instituições estatais, a legislação laboral, económica e financeira, as novas formas de centralização dos capitais, o proteccionismo aduaneiro, os acordos para a exportação de mercadorias e de capitais, os incentivos ao investimento, as benesses fiscais, as compras de equipamentos sociais e militares, a maior expansão do crédito pelo uso dos depósitos, a criação de dinheiro fictício pelo sistema bancário, a dívida pública, etc., enfim, as funções asseguradas e financiadas pelo Estado), custeados por parte do valor produzido pelos trabalhadores, tenha a forma de impostos e de taxas subtraídos aos seus salários ou de impostos sobre os lucros apropriados pelos capitalistas (incluindo os juros, as retribuições, as comissões e os prémios com que os repartem pelas outras fracções de classe da burguesia suas associadas). Se todo o valor é produzido pelos trabalhadores, o Estado da burguesia e das fracções de classe que a integram não poderia deixar de ser custeado por parte do valor por eles produzido, embora a classe dominante difunda permanentemente a ideologia de que o Estado seria financiado pelos impostos e taxas cobradas sobre os rendimentos de todos enquanto cidadãos. E o seu funcionamento não poderia deixar de estar ao serviço da classe dominante.

A utilização desigual das condições gerais de produção pelos capitalistas das empresas que produzem maiores quantidades de mercadorias tem as suas implicações na redução dos seus custos de contexto e dos seus preços do custo de produção, com algum reflexo no aumento da sua lucratividade face à das empresas concorrentes que produzem menores quantidades de mercadorias. Mas, se é facto que esta utilização desigual permite aos que produzem maior quantidade de mercadorias reduzirem mais os seus custos de contexto do que os dos concorrentes, isso não justifica cabalmente a origem da maior parte dos seus lucros diferenciais. Mesmo que numa dada formação social possam existir custos de contexto diversificados, visíveis até pelas assimetrias regionais na localização dos investimentos produtivos, que os governos tentam atenuar através de “ajudas” e de “incentivos” compensatórios vários, é no caso da exportação dos capitais, sob a forma de investimentos produtivos directos, que as condições gerais de produção revelam maior importância, porque esses capitais procuram sobretudo países onde elas existam com um certo nível de desenvolvimento em detrimento de outros onde esse nível seja menor, o que contribui para reproduzir o desenvolvimento desigual dos diferentes países.

4. O equívoco marxista da “transformação dos valores em preços de produção”.

Com base no falso princípio de que as mercadorias eram trocadas pelos seus valores do custo de produção, a diferente composição orgânica dos capitais com que são produzidas conduzia a que as massas de lucro obtidas pelos diversos capitais particulares em qualquer ramo da produção social fossem directamente proporcionais aos seus capitais variáveis, mantendo-se constantes os salários, e, para capitais de idêntico montante, inversamente proporcionais à sua composição orgânica. A realidade, porém, comportava-se de modo diverso, mostrando que as massas de lucro obtidas nos diversos ramos tendiam a ser proporcionais aos montantes dos capitais, independentemente da sua composição orgânica. Este outro magno problema aparece mencionado por Engels no prefácio ao Livro II de O Capital, publicado em 1885, dois anos após o falecimento de Marx e dezoito anos depois da publicação da primeira edição do Livro I. Sem qualquer referência a que essa discrepância, que Ricardo não resolvera, afectava também as concepções de Marx, é adiantado que ela fora já objecto de discussão e de solução cabal e definitiva, que seria apresentada no Livro III. De facto, nesse Livro III, publicado por Engels nove anos depois, em 1894, o capítulo IX é dedicado à “formação de taxa geral de lucro (taxa média de lucro) e conversão dos valores em preços de produção”. Essa operação de conversão intentava transformar preços representativos de valores noutros preços, os chamados preços de produção, pretendendo resolver aquela contradição resultante da teoria ricardiana do valor-trabalho, adoptada por Marx.

No prefácio com que apresentara a primeira edição do Livro II de O Capital, Engels referira a existência daquela contradição da “lei do valor-trabalho” de Ricardo: “De acordo com a lei ricardiana do valor, dois capitais que empregam trabalho vivo em igual quantidade e com igual remuneração, e desde que não se alterem as demais circunstâncias, produzem em tempos iguais produto de igual valor e mais-valia ou lucro de igual magnitude. Mas, se empregam quantidades desiguais de trabalho vivo, não podem produzir mais-valia ou, como dizem os ricardianos, lucro de montante igual. Ora, acontece justamente o contrário. Na realidade, capitais iguais, seja qual for a quantidade de trabalho vivo que empreguem, em média produzem, em tempos iguais, lucros iguais. Encontramos aí, portanto uma contradição à lei do valor, contradição já notada por Ricardo e que a sua escola também não foi capaz de resolver” [32]. A mesma contradição, porém, encontrava-se nas concepções de Marx tal como tinham sido apresentadas nos Livros I e no próprio Livro II a que pertencia o prefácio. Surpreendentemente, Engels afirmou nesse prefácio que “Marx já tinha resolvido essa contradição no manuscrito Contribuição à crítica etc.” e que “de acordo com o plano de O Capital, a solução se encontra no livro terceiro, que ainda levará meses para ser publicado”. A referência ao assunto estava relacionada com a acusação de plágio lançada por Rodbertus sobre Marx acerca da descoberta da "mais-valia", assim como com o facto de alguns verem “em Rodbertus a fonte secreta de Marx e um precursor que o supera”. Engels lançava então o repto à “economia rodbertiana” para que demonstrasse, antes da publicação do Livro III, “como se pode formar e necessariamente se forma igual taxa média de lucro, sem ferir a lei do valor, mas, ao contrário, fundamentando-se nela” [33].

É pelo menos estranho que Engels, afirmando ter Marx resolvido aquela contradição, nada adiantasse sobre a solução; é ainda mais estranho que não reconhecesse que aquela era igualmente, até aí, também uma contradição das concepções do próprio Marx. Pelo que se conhece das edições impressas de O Capital, não é de aceitação fácil que aquela contradição tivesse sido resolvida e Marx não tivesse harmonizado com ela as edições do Livro I feitas ainda em sua vida. A resolução poderá ter ocorrido, é claro, após a publicação da última edição do Livro I ainda em vida de Marx. Conhecidos que são os seus persistentes problemas de saúde, que o impediram de preparar para edição o que projectara ser o Livro II (abrangendo os temas que depois foram publicados por Engels como Livros II e III), é também duvidoso que tal tenha acontecido. A tanto tempo de distância, perdidos que poderão ter ficado os manuscritos autógrafos de Marx (depois de Engels ter tido de os interpretar para que fossem transcritos de forma legível, sendo a partir destas transcrições que trabalhou), talvez não mais seja possível conhecer a realidade e aquilatar da probidade daquela afirmação de Engels. Até porque os Livros II e III de O Capital lhe ficaram devendo muito — como se pode depreender da referência que fez às dificuldades que teve de ultrapassar para conseguir dar à estampa, de modo a formar obra coerente, os muitos materiais deixados por Marx sob a forma de notas de leitura e de aprendizagem, de comentários, de dados recolhidos, de rascunhos e de diversas redacções inacabadas — ainda que ele, com a sua habitual modéstia e o reiterado intuito de realçar o mérito do seu grande amigo, não o admita.

No prefácio ao Livro III, Engels afirmou que a questão fora abordada por W. Lexis, em 1885, por Conrad Schmidt, em 1889 e 1892, e depois por P. Fireman. A contradição da concepção de Marx teria sido resolvida por P. Fireman, ao intuir que os “preços de umas mercadorias ultrapassam o valor na mesma medida em que outras caem abaixo do valor, e assim a soma total dos preços permanece igual à soma total dos valores” [34]. “Enquanto a teoria ensina a Fireman que a mais-valia, dada a sua taxa, é proporcional ao número das forças de trabalho empregadas, a experiência ensina-lhe que o lucro, uma vez dada a taxa média, é proporcional à magnitude do capital total empregado. Explica ele a coisa dizendo que o lucro ´é fenómeno meramente convencional (quer ele dizer, inerente a determinada formação social, existindo e desaparecendo com ela); a sua existência se vincula apenas ao capital; este, quando está bastante forte para extorquir lucro, é constrangido pela concorrência a extorquir taxa igual de lucro para todos os capitais. Sem taxa igual de lucro não é possível produção capitalista; suposta essa forma de produção, a massa de lucro para cada capitalista isolado dependerá unicamente, dada a taxa de lucro, da magnitude do respectivo capital. Por outro lado, o lucro consiste em mais-valia, em trabalho não pago. Como então a mais-valia, cuja magnitude depende da exploração do trabalho, se transforma em lucro, cuja magnitude depende da grandeza do capital exigido para obtê-lo? «É simples. Em todos os ramos de produção em que é maior a relação entreo capital constante e o variável, as mercadorias se vendem acima do valor, e isto significa também que naqueles ramos de produção onde é menor a relação entre capital constante e capital variável, isto é, c:v, as mercadorias se vendem abaixo do valor, e que só quando a relação c:v configura determinada grandeza média, as mercadorias se vendem pelo verdadeiro valor… Essa incongruência entre preços diversos e os correspondentes valores elimina o princípio do valor? De modo nenhum. Os preços de umas mercadorias ultrapassam o valor na mesma medida em outras caem abaixo do valor, e assim a soma total dos preços permanece igual à soma total dos valorese, ‘em última instância’ desaparece a incongruência». Esta é uma ‘perturbação’; «mas, nas ciências exactas nunca se costuma considerar uma perturbação calculável como refutação de uma lei» [35].

Para Engels, “comparando-se o que diz Fireman com as passagens correspondentes do capítulo IX (do Livro III, a que pertence o prefácio) ver-se-á que ele realmente tocou o ponto decisivo”, mas que apesar de “tão importante artigo de Fireman (…) ele, após essa descoberta, ainda precisaria de muitos elos intermediários, a fim de poder elaborar a solução plena, palpável do problema” [36]. Os elos intermediários a que Engels se refere são as intervenções do mercado na formação dos preços médios e da taxa geral de lucro, cuja explicação aparece no mesmo capítulo IX. É notório o despropósito, e alguma arrogância ridícula de Engels em reclamar para Marx o mérito da explicação da ocorrência de taxas de lucro similares, quando essa explicação fora tornada pública por outros antes da publicação do Livro III e quando as explicações de Marx, tanto nos dois livros anteriores, como em grande parte do próprio Livro III, conduzem a conclusões inversas. Se uma tal explicação tivesse sido formulada por Marx, é estranho que no prefácio ao Livro II, de 1885, Engels apenas se tenha referido a ela, sem nada adiantar de concreto, lançando o repto para que os rodbertianos a apresentassem antes da publicação do Livro III, que esperava estar para breve.

Os erros contidos no Livro III, e as contradições entre o conteúdo dos restantes capítulos que o constituem e o do capítulo IX, assim como o estilo menos cuidado, indiciam, no mínimo, que os materiais publicados por Engels não passariam de textos usados por Marx para seu próprio estudo e aprendizagem ou de rascunhos em primeiras versões. Mas é muito provável que a explicação para a formação dos preços médios e da taxa geral de lucro, constante do Livro III, não tenha sido formulada antes de P. Fireman ter publicado a sua concepção, cuja data Engels não indica (1893?), e que os “muitos elos intermediários” com que é completada aquela concepção sejam da lavra de Engels e não de Marx. Além do mais, Engels silencia o facto do capítulo IX do Livro III, onde é explicada a formação de preços médios e da taxa geral de lucro independentemente da composição orgânica dos capitais, estar em contradição com a concepção da ocorrência de taxas de lucro inversas à composição orgânica dos capitais, constante dos Livros I e II. Marx sempre partira da concepção da formação dos preços por aplicação duma taxa fixa da chamada “mais-valia”, e, em consequência, que as mercadorias seriam trocadas pelos seus valores, ainda que umas pudessem ser trocadas abaixo e outras acima deles, afastando-se da regra devido às diferenças de produtividade com que eram produzidas. Agora, sem a afirmação explícita da necessidade de corrigir a anterior concepção, era defendido que as mercadorias não eram trocadas pelos seus valores, mas pelos chamados preços de produção, que divergiam dos valores. Uma tal correcção acabou por abalar a credibilidade do essencial da obra de Marx, mas a grande preocupação de Engels parece ter residido em defender a concepção marxista da lei do valor das mercadorias, que em seu entender não seria afectada pelo novo conceito preço de produção.

A primeira referência aos preços de produção determinados pela taxa geral de lucro aparece no capítulo primeiro do Livro III de O Capital (Preço de custo e Lucro). Era abordado o caso “se a mercadoria for vendida pelo valor, realiza-se um lucro, que é igual ao excedente do valor sobre o preço de custo, igual portanto a toda a mais-valia encerrada no valor da mercadoria. Mas, o capitalista pode vender a mercadoria com lucro, embora vendendo-a abaixo do valor. Enquanto o preço de venda supera o de custo, embora esteja abaixo do valor da mercadoria, realiza-se parte da mais-valia nela contida, obtém-se lucro. (…) Entre o valor da mercadoria e o preço de custo existe evidentemente a possibilidade de uma série indeterminada de preços de venda. Quanto maior a parte do valor-mercadoria constituída pela mais-valia, tanto mais amplo o espaço em que podem operar esses preços intermediários. (…) A lei fundamental da concorrência capitalista, até hoje não apreendida pela economia política, a lei que regula a taxa geral de lucro e os preços de produção determinados por essa taxa, baseia-se, conforme veremos mais tarde, nessa diferença entre valor da mercadoria e preço de custo, e na possibilidade daí resultante de vender a mercadoria abaixo do valor, mas com lucro” [37]. “Se se vende a mercadoria abaixo do preço de custo, não podem ser plenamente repostos pelo preço de venda os componentes despendidos do capital produtivo. Se o processo continua, extinguir-se-á o valor-capital adiantado. Já por isso inclina-se o capitalista a considerar o preço de custo como o valor intrínseco da mercadoria, pois esse preço é indispensável à simples conservação de seu capital. Além disso, o preço de custo é o preço de compra da mercadoria, pago pelo próprio capitalista para produzi-la, o preço de compra determinado pelo próprio processo de produção dela. O valor excedente — ou mais-valia — realizado com a venda da mercadoria assume para o capitalista a aparência de excesso do preço de venda sobre o valor da mercadoria, em vez de ser o excesso desse valor sobre o preço de custo, e desse modo a mais-valia, ao invés de realizar-se em dinheiro com a venda da mercadoria que a contém, origina-se da própria venda” [38].

Ridicularizando Proudhon, no Livro III Marx afirmava: “É absolutamente falso supor que tanto faz vender todas as mercadorias ao preço de custo quanto vendê-las acima do preço de custo, mas pelo valor. Mesmo que se igualassem, em todos os casos, o valor da força de trabalho, a duração da jornada e o grau de exploração do trabalho, as quantidades de mais-valia contidas nos valores das diferentes mercadorias seriam absolutamente desiguais, de acordo com a diversa composição orgânica dos capitais adiantados para produzi-las” [39]. A afirmação era complementada com uma nota de rodapé, remetendo para o Livro I, com a qual era esclarecida a relação da variação da “mais-valia” com a composição orgânica dos capitais: “«As quantidades de valor e de mais-valia produzidas por diferentes capitais variam, se for dado o valor da força de trabalho e se for igual o grau de exploração, na razão directa das magnitudes das partes variáveis desses capitais, isto é, das suas partes transformadas em força de trabalho viva» (livro primeiro, capítulo IX, pp. 350-51)” [40]. Estas duas citações, uma do Livro III, outra do Livro I, ilustram plenamente a continuidade da concepção de Marx acerca da relação da chamada “mais-valia” extraída por diferentes capitais com a composição orgânica desses capitais, a qual seria directamente proporcional ao capital variável, portanto, inversamente proporcional à composição orgânica dos capitais. “O excedente do valor da mercadoria sobre o preço de custo, embora se origine directamente do processo de produção, só se realiza no processo de circulação, e a aparência de provir do processo de circulação se robustece porque, efectivamente, em meio à concorrência, no mercado real, depende das condições deste a possibilidade de realizar-se e o grau em que se realiza em dinheiro esse excedente. Não é mister explicar novamente que, ao vender-se uma mercadoria acima ou abaixo do valor, a mais-valia apenas se reparte de maneira diferente, e essa modificação, essa nova porção em que diversas pessoas repartem entre si a mais-valia, em nada altera a natureza e a magnitude dela. No processo efectivo de circulação, além de ocorrerem as transformações observadas no livro segundo, sincronizam-se com elas a concorrência existente, a compra e venda das mercadorias acima ou abaixo do valor, de modo que a mais-valia que os capitalistas, individualmente, realizam depende do logro recíproco como da exploração directa do trabalho” [41].

“Conhecida a taxa e dada a grandeza da mais-valia, a taxa de lucro exprime apenas aquilo que efectivamente é, outra mensuração da mais-valia, tomando por base o valor da totalidade do capital, em vez de o valor da parte do capital trocada pelo trabalho e da qual a mais-valia deriva directamente em virtude dessa troca. Mas, na realidade (isto é, no mundo dos fenómenos), dá-se o inverso. A mais-valia é um dado, o excedente do preço de venda da mercadoria sobre o preço de custo; e a origem desse excedente mergulha no mistério, não se sabendo se provém da exploração do trabalho no processo de produção, do logro aos compradores no processo de circulação ou de ambos. Relacionar quantitativamente o excedente do preço de venda sobre o preço de custo, com o valor de todo o capital adiantado é importante e natural, pois permite obter-se a proporção em que se valoriza a totalidade do capital, ou seja, o seu grau de valorização. Se partimos da taxa de lucro, não há lugar para inferir qualquer relação entre esse excedente e a parte do capital empregada em salário” [42]. “A taxa de lucro difere quantitativamente da taxa de mais-valia, embora mais-valia e lucro sejam de facto idênticos e quantitativamente iguais; entretanto, o lucro é forma transfigurada da mais-valia, desta dissimulando e apagando a origem e o segredo da existência. A mais-valia aparece sob a forma de lucro, e é mister a análise para dissociá-la dessa forma. Na mais-valia se põe a nu a relação entre capital e trabalho; na relação entre capital e lucro, isto é, entre capital e mais-valia — onde esta aparece como excedente sobre o preço de custo da mercadoria, convertido em dinheiro no processo de circulação e mensurado por sua relação com a totalidade do capital — apresenta-se o capital como relação consigo mesmo, uma relação em que como soma inicial de valores se distingue do valor novo por ele mesmo criado. Sabe-se que produz esse valor novo ao movimentar-se através dos processos de produção e de circulação. Mas fica dissimulada a maneira como isso ocorre, parecendo que o valor excedente provém de propriedades ocultas, inerentes ao próprio capital” [43].

“Nesta parte do livro, a taxa de lucro difere quantitativamente da taxa de mais-valia; lucro e mais-valia, entretanto, são considerados grandezas iguais, divergindo apenas quanto à forma. Na parte seguinte veremos como prossegue o alheamento, passando o lucro a desviar-se da mais-valia também quantitativamente” [44]. Este constitui o último parágrafo do capítulo II. Parece ter sido acrescentado como introdução à inversão da concepção seguida até aí, que era o caso geral concebido por Marx: “As taxas de lucro de dois capitais quaisquer que operam com igual taxa de mais-valia comportam-se do mesmo modo que as partes variáveis percentualmente calculadas em relação à totalidade dos correspondentes capitais” [45]. Visto afirmar que a taxa da chamada “mais-valia” é dada — “Se a variação do valor redunda em alterar a composição orgânica do capital, fazendo subir ou descer a razão entre capital variável e capital constante [46] — a taxa de lucro, não se alterando as demais condições, aumentará com o acréscimo relativo e diminuirá com o decréscimo relativo do capital variável” [47] — quanto maior fosse a percentagem do capital variável na totalidade do capital maior seria a taxa de lucro! Termina ali a primeira parte; a segunda parte intitula-se: “Conversão do lucro em lucro médio”.

Almada, 15 de Julho de 2021.


A partir de textos e de rascunhos escritos entre 2010 e 2014, revistos, corrigidos e, tanto quanto possível, actualizados. Como se trata na maior parte de colagens, poderão ocorrer repetições de partes de outros textos; como propõe concepções não habituais poderá provocar efeitos secundários surpreendentes e eventualmente não esperados nem desejados por alguns leitores.


NOTAS

[1] Karl Marx (1971): O Capital, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, L1, v1, p.54. Todas as referências a O Capital respeitam a edição em português da Civilização Brasileira, em 6 volumes: Livro 1, vols. 1 e 2, 2.ª edição, 1971 (1.ª edição, 1968); Livro 2, vol. 3, 1.ª edição, 1970; Livro 3, vols. 4, 5 e 6, 1.ª edição, 1974.
[2] Karl Marx (1971), o.c., L1, v2, p.619.
[3] Karl Marx (1971), o.c., L1, v2, p.619.
[4] Karl Marx (1971), o.c., L1, v1, p.55.
[5] Karl Marx (1971), o.c., L1, v1, p.55.
[6] Não deixa de ser interessante constatar as contradições, por vezes paradoxais, em que Marx caía no que se refere ao valor. O valor é o trabalho: “Mas, que é valor? Forma objectiva do trabalho social despendido para produzir uma mercadoria. E como medir a magnitude do valor de uma mercadoria? Pela magnitude de trabalho que ela contém”, in Karl Marx (1971), o.c., L1, v2, p.617. Mas o trabalho, porque é a medida do valor, não tem ele próprio valor: “O que o possuidor de dinheiro encontra no mercado não é o trabalho, mas o trabalhador. O que este vende é sua força de trabalho. Ao começar realmente seu trabalho, já deixa este de pertencer-lhe, não lhe sendo mais possível vendê-lo. O trabalho é a substância e a medida imanente dos valores, mas ele próprio não tem nenhum valor”, in Karl Marx (1971), o.c., L1, v2, p.619.
[7] Karl Marx (1971), o.c., L1, v1, p.190.
[8] Karl Marx (1971), o.c., L1, v1, p.193.
[9] Karl Marx (1971), o.c., L1, v1, p.231.
[10] Karl Marx (1971), o.c., L1, v1, p.232.
[11] Karl Marx (1971), o.c., L1, v1, p.232. O trabalho não cria valor novo, cria novos objectos com novo valor, o valor acrescentado pelo valor do próprio trabalho ao valor dos meios de produção consumidos.
[12] Karl Marx (1971), o.c., L1, v2, p.680. A concepção de que o “valor do novo produto abrange ainda o equivalente ao valor da força de trabalho e uma mais-valia”, justificada “porque a força de trabalho vendida por um determinado espaço de tempo, dia, semana, etc., possui menos valor do que aquele que é criado nesse tempo com seu emprego” constitui um dos erros clamorosos de Marx.
[13] Karl Marx (1971), o.c., L1, v2, p.680.
[14] Karl Marx (1971), o.c., L1, v1, p.44.
[15] Existe um erro grosseiro neste raciocínio de Marx, mesmo aceitando que seria a representação que os capitalistas teriam do lucro. Para a ocorrência do lucro não é necessário comprar abaixo do valor e vender acima dele; basta comprar abaixo e vender pelo valor. Como veremos, nem para as restantes mercadorias existe a garantia de serem vendidas pelos seus valores, podendo umas serem vendidas por preços abaixo do preço representativo do valor e outras por preço acima dele, conforme as flutuações da oferta e da procura, das preferências dos consumidores, da eficiência (ou produtividade) e da eficácia (ou conjugação da produtividade com a exploração) com que são produzidas, etc. Mesmo num mercado em que existisse livre concorrência, completa mobilidade dos factores produtivos, eficiência e eficácia produtivas similares nos diferentes ramos, adequação da oferta à procura, em que os diversos capitais particulares estivessem igualmente onerados por juros e por rendas e obtivessem idêntica taxa de lucro, contudo, as mercadorias que não o trabalho tenderiam a serem trocadas pelos seus valores apenas se fossem produzidas por capitais de igual montante e em idêntica fase do ciclo da sua reprodução, caso em que as taxas de margem e as taxas de lucro seriam idênticas para todos eles, conjunto de condições de muito improvável ocorrência.
[16] Karl Marx (1971), o.c., L1, v2, p.624.
[17] No processo imediato de produção encontram-se também relações sociais entre pessoas; essas relações sociais são uma extensão do processo de circulação, da troca, e embora se realizem no processo de produção a sua origem é o contrato de compra e venda da mercadoria trabalho. Porque esta mercadoria é comprada na forma de trabalho potencial a ser produzido durante um período de tempo determinado, sendo a sua produção e fornecimento concomitantes com o aproveitamento da sua utilidade pelo comprador, a prestação do trabalho assume a forma de trabalho subordinado; esta forma consubstancia a produção do trabalho segundo a utilidade que o comprador pretende obter dele. Fora desta subordinação inerente ao contrato de compra e venda, a organização do trabalho tem em vista a sua relação com a Natureza, para a transformação com sucesso, e com a maior produtividade, dos objectos de trabalho; nesse sentido, constitui uma relação meramente técnica.
[18] Karl Marx (1971), o.c., L1, v1, p.177.
[19] Como veremos adiante, o montante do lucro não é determinado pela chamada “mais-valia” marxista, a parte ampliada da reprodução do “capital variável”, resultante da aplicação duma taxa de “mais-valia” a este capital, mas pela parte ampliada da reprodução da totalidade do capital empregado, resultante da aplicação duma taxa de lucro. É pela aplicação da taxa de lucro à totalidade do capital empregado que é determinado o lucro, e é a partir do seu montante que é determinada a chamada “mais-valia” marxista e a sua taxa ou taxa de exploração a que os trabalhadores assalariados são sujeitos.
[20] Faltou a Marx explicar como seria determinado o tempo de trabalho incorporado na força de trabalho, sendo que o menor trabalho recebido pelo trabalhador em troca daquele que vende lhe permite viver e não apenas produzir a força de trabalho com que produz o trabalho que vende ao capitalista (como o próprio Marx o reconheceu ao afirmar que “o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção de seu possuidor”). Por isso, ele faz uma comparação impossível, porque o suposto valor da força de trabalho é indeterminado, e atribui a “mais-valia” a uma capacidade sobrenatural da força de trabalho — a de produzir mais valor do que o que fora necessário para a sua produção ou mais valor do que o seu próprio valor — quando a única comparação coerente possível é entre dois valores do mesmo produto ou mercadoria: o valor do trabalho fornecido pelo trabalhador e o valor do trabalho com que ele é pago, a qual permite determinar a verdadeira origem e a dimensão do valor apropriado.
[21] Com a evolução da troca directa para a troca intermediada por qualquer moeda de troca e pelo mercador, e depois pela moeda metálica cunhada, o dinheiro, a troca foi facilmente transformada de troca indeterminada de utilidades diversificadas em troca desigual de valor de custo de produção, independente da utilidade das mercadorias e da grandeza usada para atribuir valor ao seu custo de produção, ou ao que fosse reconhecido como o que custava produzi-las, e à unidade usada para a sua medição. A quantidade uniformizada de trabalho representada no custo de produção do dinheiro, ou o seu valor de custo, portanto, facilitou a transformação da troca indeterminada em troca desigual, por transformação do valor do dinheiro em seu preço.
[22] Friedrich Engels, prefácio à 1.ª edição [1885] do Livro II de O Capital; in Karl Marx (1970), o.c., L2, v3, p.18.
[23] Um dos efeitos da inflação dos preços, mantendo ou aumentando menos os salários nominais, é a redução do valor representado pelos salários efectivos. É uma das formas mais comuns de aumento da taxa de exploração dos trabalhadores, que conduz ao seu empobrecimento e em casos extremos à miséria. Para sobreviverem, os trabalhadores afectados têm de recorrer, quando tal é possível, ao endividamento e ao emprego múltiplo e, noutros casos, à economia paralela ou à margem da lei. Em qualquer dos casos, para continuarem solventes ou para conseguirem obter um salário minimamente condigno eles têm de trabalhar por períodos muito maiores.
[24] A designação dos trabalhadores assalariados, vendedores de trabalho de prestação subordinada à utilidade que os compradores pretendam obter dele, por colaboradores ou por trabalhadores autónomos, vendedores de serviços (o produto do trabalho e de meios de produção necessários) de prestação subordinada à utilidade que os compradores pretendam obter deles, transformando-os em falsos trabalhadores independentes ou empresários individuais e colocando-os em igualdade de direitos e de obrigações inerentes aos outros vendedores de mercadorias, constitui uma fraude e uma das maiores subversões dos códigos legais do Direito do Trabalho, visto que os transforma nos trabalhadores mais precários dos precários, aqueles que não usufruem de quaisquer medidas de protecção. A transformação em falsos trabalhadores autónomos dos trabalhadores que prestam trabalho subordinado visa aliviar o patronato dos encargos salariais indirectos (contribuições para a segurança social, seguros de acidentes de trabalho, tempo de trabalho extraordinário, indemnizações compensatórias, etc.) que o trabalho assalariado acarreta, reduzindo o preço do trabalho ou salário efectivo.
[25] Embora desde sempre o poder de Estado tenha sido um poder privado, quer exercido como poder absoluto do soberano ou do chefe, quer como poder repartido, subordinado, concedido condicionalmente em suserania à classe social dominante, nas sociedades burguesas o poder de Estado passou a ser legitimado como poder soberano unificado das diversas classes sociais, o povo. Nem por isso o poder de Estado deixou de ser exercido como poder privado da classe dominante, no caso, a burguesia. Com a consolidação do domínio desta classe social e a diversificação dos seus interesses, que conduziram à constituição de fracções de classe, o poder de Estado tendeu a ser exercido novamente, ainda que de forma dissimulada, como poder suserano, poder repartido pelas diversas fracções da classe social dominante, formalmente subordinado ao poder soberano. Modernamente, ele tende a ser exercido como poder privado de membros singulares da classe dominante — nomeadamente, das empresas de maior dimensão, através do controlo dos gestores estatais pelo financiamento das suas campanhas eleitorais e pelo pagamento de uma parte dos seus elevados rendimentos, que é como quem diz, corrompendo-os — e os seus principais objectivos tendem a ser o aumento do volume dos negócios, transferindo para o capital privado os meios de produção de propriedade do Estado, o lançamento sem entraves de novas modalidades de negócio em qualquer ramo e assegurar a obtenção do lucro, nas suas diversas formas, por todos os meios, de modo a reduzir ou a anular o risco, que é o que o legitima, transformando-o em renda, rendimento sem risco e sem necessidade de legitimação. Isto tem sido realizado pela transformação do capitalismo privado em capitalismo público-privado, através das chamadas parcerias público-privadas firmadas por contratos de concessão de monopólios pelas quais o Estado, para além de eventual investidor, avalista e comprador da produção, fica obrigado a assegurar lucros previstos não concretizados por alteração das condições de produção, seja por alteração da legislação reguladora, seja por alteração dos contratos de parceria, e a suportar eventuais perdas inesperadas provocadas por crises de sobreprodução ou de outros tipos, em autêntica privatização dos lucros e socialização das perdas.
[26] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.46.
[27] Friedrich Engels, prefácio à 1.ª edição [1885] do Livro II de O Capital; in Karl Marx (1970), o.c., L2, v3, p.19.
[28] A dúvida é pelo menos legítima, se mais não fora, porque ao longo do Livro III Engels refere correcções que efectuara na terceira edição do Livro I, nomeadamente, sobre a composição orgânica dos capitais: “Se a variação do valor redunda em alterar a composição orgânica do capital, fazendo subir ou descer a razão entre capital variável e capital constante, a taxa de lucro, não se alterando as demais condições, aumentará com o acréscimo relativo e diminuirá com o decréscimo relativo do capital variável”, in Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.158. Esta concepção da composição orgânica do capital como “razão entre capital variável e capital constante” (v/c, em que C [capital total] = v [capital variável] + c [capital constante]) é uma concepção equívoca. Se recuássemos a uma hipotética situação inicial em que a totalidade do capital fosse aplicada como salários e os meios de produção não fossem adquiridos no mercado, à medida que uma parte do capital total fosse sendo aplicada na aquisição de meios de produção a composição orgânica do capital iria alterando-se, reduzindo-se a parte aplicada em salários e aumentando a parte aplicada em meios de produção. Ela também diverge de outra existente em O Capital, em que é expressa por c/v, que traduz melhor o conceito. Seria interessante, por isso, conhecer as redacções das edições originais. O conceito só é importante para ilustrar a errada concepção de Marx acerca da génese do lucro como “mais-valia” ou mais-valor fornecido pela força de trabalho. O aumento da eficiência produtiva na produção de meios de produção de maior utilidade (mais potentes, rápidos e automatizados), expresso no aumento da composição técnica do capital, por seu lado, devido à redução dos seus preços de venda não conduz necessariamente ao aumento da composição orgânica do capital. Em geral, esse aumento ocorre quando o aumento do capital constante necessário para aumentar o volume da produção substitui maior quantidade de capital variável.
[29] A gestão científica da produção que ficou conhecida por taylorismo, tendo sido iniciada ainda nos finais do século XIX teve a sua aplicação generalizada na primeira metade do século XX. Parte das causas que contribuíram para a sua implementação deveu-se às características da composição dos trabalhadores assalariados dos Estados Unidos, constituídos em grande parte por trabalhadores não qualificados ou qualificados apenas nos ofícios tradicionais e por imigrantes cuja ocupação fora na agricultura e não se integravam bem na produção industrial (o que se traduzia em grande desperdício devido a erros de montagem, ritmos de trabalho diferenciados e muitos acidentes de trabalho). O aumento do ritmo do trabalho que proporcionava era em parte compensado pelos prémios por produção e pelo pagamento à peça, o que aumentava os salários efectivos através dessa parte variável. Curiosamente, até aos primeiros anos da revolução comunista soviética Lenine fora um crítico do taylorismo, mas nos anos vinte acabou por render-se aos benefícios da organização científica dos processos de trabalho, precisamente pelas mesmas características dos milhões de novos operários russos oriundos do campesinato.
[30] João Bernardo (1977): Marx Crítico de Marx (3 vols), Porto, Edições Afrontamento.
[31] A este respeito, por tão despudorado, é paradigmático o caso da China, país em que um regime político comunista de capitalismo de Estado monopolista exercido em parceria do Partido Comunista com os capitalistas privados e os seus gestores (integrados em minoria nalguns órgãos de poder político) convive pacificamente com o capitalismo privado nacional e internacional com níveis elevados de produtividade, no qual os trabalhadores estão sujeitos a longos períodos de trabalho (de 44 a 54 horas semanais, chegando nas empresas com menores níveis da produtividade às 72 horas semanais, repartidas por 12hx6 dias), prestado com ritmos intensos, ao não pagamento do trabalho extraordinário (tornado norma, generalizada pelo assédio dos gestores e pelo medo dos trabalhadores, de divisão do dia em 9+9+6h, sendo 9 horas de trabalho pago, 9 horas de trabalho extra não pago e 6 horas para dormir e descansar, durante 5 ou 6 dias da semana, consoante as empresas), a menores períodos de férias e sem direito à greve nem à constituição de sindicatos livres.
[32] Friedrich Engels, prefácio à 1.ª edição [1885] do Livro II de O Capital, in Karl Marx (1970), o.c., L2, v3, p.18.
[33] Friedrich Engels, prefácio à 1.ª edição [1885] do Livro II de O Capital, in Karl Marx (1970), o.c., L2, v3, p.19.
[34] Friedrich Engels, prefácio à 1.ª edição [1894] do Livro III de O Capital, in Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.16.
[35] Friedrich Engels, prefácio à 1.ª edição [1894] do Livro III de O Capital, in Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.16.
[36] Friedrich Engels, prefácio à 1.ª edição [1894] do Livro III de O Capital, in Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.16/17.
[37] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.40.
[38] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.41.
[39] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.43.
[40] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.43.
[41] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.46/47.
[42] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.50/51.
[43] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.50/51.
[44] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.52.
[45] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.59.
[46] Nota-se aqui a confusão acerca do conceito “composição orgânica do capital”, já referida na nota [26], que confirma o decréscimo da taxa de lucro com o decréscimo relativo do capital variável.
[47] Karl Marx (1974), o.c., L3, v4, p.158.


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