segunda-feira, 27 de agosto de 2007

As dificuldades enfrentadas pela crítica teórica do marxismo


AS DIFICULDADES ENFRENTADAS
PELA CRÍTICA TEÓRICA DO MARXISMO


José Manuel Correia


Marx é autor de uma vasta obra, que se estende da filosofia à crítica da economia política, a maior parte dela inédita em sua vida e publicada postumamente pelos regimes comunistas. A sua faceta mais importante prende-se com a de crítico da economia política, a que dedicou dois livros: Contribuição para a crítica da economia política (1859) e O Capital (cujo livro primeiro, dos três que o compõem e o único editado em vida do autor, foi publicado em 1867). Praticamente ninguém, até mesmo entre adversários, põe em causa a importância e o valor da obra de Marx, nomeadamente, quanto à narrativa descrevendo o funcionamento do capitalismo ou quanto à economia política e a outras questões que se pode considerar constituírem os alicerces do que mais tarde veio a ser a sociologia. A controvérsia em torno do marxismo, portanto, não reside nos aspectos gerais da obra de Marx, mas em aspectos específicos, nomeadamente, em relação à crítica dos discursos vigentes sobre a economia política capitalista e à teoria da revolução social, através das quais procurou fundamentar a profecia idealista de que o comunismo proletário seria o necessário sucessor do capitalismo, que anunciara na proclamação panfletária Manifesto do Partido Comunista (1848). Por esta razão, as divergências em relação às concepções marxistas não se confinaram ao campo do conhecimento sobre a realidade social e desde cedo foram transformadas em oposição ao projecto político que pretendiam fundamentar.

A narrativa marxista do capitalismo é exaustiva, descrevendo de forma clara, mas por vezes repetitiva, muitas das características que ele já evidenciava no início da fase de maturidade; e a sua crítica da sociedade capitalista é pungente e compreensível, pelo humanismo que dela ressalta, face ao gritante contraste entre as duras condições de existência proporcionadas pela organização industrial do trabalho e as que haviam caracterizado a anterior organização artesanal do trabalho na sociedade tributária. Como qualquer outra crítica da realidade empírica, porém, a crítica marxista da sociedade capitalista é totalmente infrutífera. A realidade não é passível de crítica; como se costuma dizer, a realidade é o que é. O que pode ser objecto de crítica são os discursos explicativos e legitimadores da realidade, demonstrando as suas eventuais inconsistências e apontando potencialidades de desenvolvimento da realidade que aqueles discursos não contemplem ou escamoteiem. A realidade está em permanente mudança, sem que os actores sociais se apercebam, como resultado de pequenas mudanças nas práticas que a constituem. É a crítica das representações dominantes acerca da constituição e significado da realidade que poderá conduzir a transformações ideológicas e políticas que progressivamente as alterem, as quais terão reflexos posteriores no desenvolvimento das estruturas sociais. As concepções marxistas sobre a realidade social e a sua transformação, e concretamente sobre a sociedade capitalista, infelizmente, são baseadas na indignação moral e no idealismo voluntarista, constituindo um discurso contra o capitalismo, ao invés de um discurso sobre o capitalismo.

A obra de Marx tem aspectos originais que constituem progressos valiosos do pensamento social, desde logo, sobre a organização social, em geral, sobre a sua evolução, mas sobretudo acerca dos fundamentos da sociedade burguesa capitalista. A crítica marxista dos discursos sobre a economia política, nomeadamente, sobre as funções desempenhadas pelo dinheiro, sobre a descrição dos objectivos da burguesia enquanto classe e sobre a função da acumulação no desenvolvimento da capacidade produtiva social, etc., tem também alguma valia. Sobre as questões basilares da economia política — como sejam o valor das mercadorias e a génese do lucro e da exploração — as concepções de Marx, porém, são destituídas de qualquer consistência. Os erros que cometeu residem em duas ordens de razões: por um lado, as suas conclusões contrariam uma ou mais das premissas em que se baseou, o que retira validade à argumentação; por outro lado, algumas das premissas adoptadas como verdadeiras não são plausíveis, o que o conduziu a conclusões falsas. Apesar disso, a generalidade das críticas feitas pelos mais diversos ideólogos burgueses às principais concepções de Marx não tem fundamento. Tal não é razão para conferir credibilidade científica àquelas concepções, mas provavelmente foram a inadequação das críticas dos ideólogos burgueses e a ausência de refutação convincente que permitiram aos adeptos atribuírem às principais concepções marxistas, durante tanto tempo, uma pretensa credibilidade científica.

Pelas repercussões sociais que viria a ter, o essencial da obra de Marx foi restringido à sua componente de projecto político. Este aspecto, contudo, é a parte menos teorizada, quedando-se por uma proclamação panfletária e por um ligeiro esboço acerca da concepção da revolução social. Neste campo, os erros são mais notórios do que os cometidos na crítica da economia política, porque as concepções não ultrapassam a mera especulação infundamentada, e as suas repercussões foram bem mais graves. Desde logo, a concepção marxista restringe a revolução social à sua componente de revolução política, como que esquecendo a lenta revolução económica que prepara as condições de necessidade e de possibilidade de eclosão da revolução ideológica e política. Depois, a própria revolução política é apresentada como forma de resolução duma hipotética contradição entre a necessidade de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção dominantes, como se o desenvolvimento das forças produtivas fosse coisa autónoma e causa das relações de produção e não um seu efeito. Uma estranha interpretação ainda acabou convertendo aquela hipotética contradição na contradição de interesses entre a classe social exploradora e a classe social explorada de um determinado modo de produção social, e, no caso do modo de produção capitalista, entre a burguesia e o proletariado. A revolução social, portanto, foi concebida como revolução política e identificada, na época actual, com a revolução proletária. Foi esta errada concepção da revolução social que veio fundamentar, posteriormente, a profecia idealista inicial em que apontava o comunismo proletário como necessário sucessor do capitalismo burguês na organização social, e o proletariado como sucessor da burguesia na direcção da sociedade.

Nada na História ou na realidade empírica, porém, permite confirmar a concepção marxista da revolução social, nem que as revoluções ideológicas e políticas que culminam as lentas revoluções económicas sejam protagonizadas pela classe social explorada de um determinado modo de produção social. Nem os escravos nem os servos foram os protagonistas das revoluções sociais que acabaram com o esclavagismo e com a servidão. A História tem mostrado que as revoluções ideológicas e políticas são protagonizadas por novas classes sociais dirigentes, que emergem na sociedade pela instituição de novas relações de produção durante a longa revolução económica da produção social e que aspiram a conquistar o domínio ideológico e político para o adequarem aos seus interesses e representações. A errada concepção marxista da revolução social, portanto, constitui uma forma de tentar dar algum fundamento à profecia comunista proletária apresentada anos antes na proclamação panfletária, mas a História não permite conferir-lhe qualquer credibilidade. O único fundamento visível de uma tal concepção é o voluntarismo, o desejo de que assim venha a ocorrer, como forma de acabar com a imoralidade da inumanidade total que a exploração representa. Neste sentido, a crença na profecia marxista configura-se como mera crença pela fé numa verdade revelada. Ironicamente, o próprio Marx rejeitava o voluntarismo e a crítica das concepções burguesas da realidade baseada na moral; acreditava que as suas predições tinham um cunho científico, e que o socialismo que proclamava se distinguia do socialismo utópico ou idealista por ser um socialismo científico. Destituídas de qualquer credibilidade científica, resta às concepções marxistas fundamentarem-se no voluntarismo idealista.

A parte científica da obra de Marx, porque baseada em argumentação inválida, contendo grosseiros erros lógicos, e em premissas não plausíveis, está eivada de conclusões falsas. Durante longo tempo, tais conclusões foram aceites como conhecimento, mas não passam de representações invertidas da realidade social, em que os efeitos são confundidos com as causas dos fenómenos. Devido à complexidade dos temas e à aparente fecundidade dos conceitos, a sua obra não foi objecto de crítica exaustiva; os adversários limitaram-se a rejeitá-la, enquanto os adeptos a abraçaram. Deste modo, até hoje, o marxismo tem sido combatido principalmente no campo político, quer no âmbito da profecia idealista, quer no âmbito dos resultados da sua aplicação prática. A disputa tem estado confinada ao nível das opiniões, onde nenhuma conclusão sólida é possível. Mas a demonstração das falácias do marxismo é não só possível, através da crítica teórica das suas erradas concepções, como ainda necessária, para incentivar os trabalhadores assalariados a lutarem por melhores condições de vida, porque o seu futuro, ao contrário do que diz a profecia, não é risonho. Infelizmente, a crítica teórica do marxismo é alvo de muitas e variadas incompreensões, oriundas quer dos ideólogos burgueses, quer dos ideólogos comunistas, encontrando-se entre dois fogos. É compreensível que assim seja. Por um lado, porque ela não legitima os discursos burgueses apologéticos do capitalismo, e, por outro lado, porque também não legitima os discursos apologéticos do comunismo, tentando desmistificá-los a ambos. A crítica teórica das concepções marxistas permite compreender melhor a realidade social e demonstrar as inconsistências dos discursos apologéticos, tanto do capitalismo como do comunismo, mas não constitui a chave para a adivinhação do futuro, que é coisa que os actores sociais vão construindo no presente sem a consciência de o estarem fazendo.

Os adeptos marxistas, sejam militantes ou ex-militantes dos partidos comunistas, sejam simples simpatizantes ou companheiros de jornada dos comunistas, continuam apegados à profecia idealista que proclama o comunismo proletário como necessário sucessor do capitalismo. As suas posições políticas, baseadas na moral, derivam de um exacerbado espírito crítico em relação à exploração e às desigualdades de toda a ordem geradas pelos regimes capitalistas, como se fossem caso único ou o mais pérfido da História, e da crença, pela fé, de que o comunismo constitui um humanismo que acabará com semelhantes iniquidades. Persistem em tais crenças mesmo depois da falência da generalidade dos regimes comunistas e da evidência das atrocidades que todos cometeram, que mostraram sem margem para dúvidas a incapacidade do comunismo para se constituir como alternativa económica e política ao capitalismo. Continuam iludindo-se que com a reforma cosmética das velhas igrejas — os partidos leninistas de revolucionários profissionais, auto proclamadas vanguardas iluminadas para a condução das massas ignaras na insurreição vitoriosa e, depois, na edificação da nova sociedade — o comunismo reeditado estará ao abrigo dos chamados erros e desvios que conduziram à sua derrocada generalizada. Apesar de se orientarem pela mesma ideologia e de continuarem agarrados à mesma concepção totalitária da organização social que despreza a liberdade individual, os adeptos querem fazer-nos crer que também eles são outras pessoas, que aprenderam com os erros que outros cometeram, e que a sociedade que propõem constitui a verdadeira e genuína alternativa ao capitalismo. Como todos os fiéis devotos, têm plena legitimidade para continuarem a iludir-se, mas não podem pedir-nos que acreditemos em semelhantes patranhas, sob pena de se cobrirem de hilariante ridículo.

Existem variadíssimos tipos de adeptos, uns mais crentes, outros mais enduvidados, e outros que tendo abandonado as igrejas permanecem orgulhosos do seu passado e mantêm ainda a esperança na construção de uma alternativa ao capitalismo. Alguns destes últimos, quando criticados por permanecerem orgulhosos de um passado de militância comunista que não deveria constituir qualquer motivo de orgulho (a não ser em relação à actividade anti-fascista que possam ter desenvolvido, mas até esta maculada pelo sectarismo e pela hipocrisia que desde sempre caracterizaram a acção dos comunistas) desempenham o papel de vítimas ofendidas. Confundem a inutilidade da crítica do passado pessoal, porque é injusto julgar as pessoas pelo que foram sendo, com a legitimidade da crítica do que em cada momento do presente persistem aprovando do seu passado. Atitude oportunista, que pretende aproveitar o que de bom teria tido o passado de comunistas sem arcarem com a penalização que a actividade comunista acarreta no presente, e reveladora de que o seu corte com o comunismo ainda não foi efectuado. O passo maior que deram foi migrarem para a social-democracia à moda do Mário Soares — um dito socialismo democrático, que nem o próprio Soares sabe o que seja, e que não passou de rótulo distintivo face à social-democracia reformista com raízes numa forte ligação ao movimento sindical, adoptado por um político ultra oportunista, vaidoso e ambicioso, sem qualquer ligação ao movimento operário, mas imbuído de um velho complexo de inferioridade, real e bem notório, em relação ao invejado rival Álvaro Cunhal — constituindo-se como sua ala de esquerda ou consciência crítica. Outros, um pouco mais radicais, acolheram-se nesse albergue espanhol do comunismo de passado apagado e de futuro branqueado que dá pelo nome de Bloco de Esquerda, e continuam apostados em renovar o comunismo. Outros, ainda, mantêm-se numa situação de independência ou de companheiros de jornada ocasionais dos comunistas. Todos eles saíram da igreja por uma qualquer desavença táctica, metodológica ou organizativa, ou por divergência menor em relação à cartilha, mas continuam indo às procissões; abandonaram o proselitismo de outrora, mas continuam crentes na profecia messiânica marxista do comunismo proletário e na sua pretensa credibilidade científica. Aceitar que acreditaram num logro teórico constituído por um rol de falácias e de patranhas infantis, camuflado por um humanismo idealista, é para eles demasiado. Temem a desilusão que destituiria de sentido parte importante das suas vidas e o ridículo de que se cobririam pela sua dantes reivindicada condição de vanguardas iluminadas.

Entre nós, resta um pequeno grupo de adeptos, não sei se abarcando mais do que os membros de um casal, que desenvolve uma meritória actividade mantendo na Internet, há vários anos, um fórum de discussão. Também eles são ex-militantes comunistas, depois fundadores do grupo dos que pretendem renovar o comunismo, do qual parece se terem ido afastando. Ao que se conhece das suas posições, foram críticos dos regimes comunistas sendo ainda militantes no activo, não aceitando que aqueles regimes pudessem estar construindo o comunismo partindo duma base económica atrasada. Pelo que deixam transparecer no seu blog e naquele fórum, admitem que algumas concepções marxistas podem estar erradas, mas apenas admitem, sem que se conheça qualquer sua crítica fundada. Distinguem-se também por criticarem os que persistem acreditando na revolução política comunista proletária e que concebem a instauração de novas relações de produção a partir da superstrutura, do aparelho do Estado. Mantêm-se apegados a uma concepção idealista e voluntarista da transformação social, propugnando a necessidade de se estabelecerem novas relações de produção, as quais tornariam possível a almejada revolução política. Incompreensivelmente, ainda não se aperceberam de que o estabelecimento de novas relações de produção não ocorre por qualquer idealismo voluntarista empenhado em transformar o Mundo, mas pelo egoísmo prático dos actores sociais ao aproveitarem as oportunidades que possam ir surgindo na realidade empírica e que mostrem capacidade para se desenvolverem.

A exploração de umas classes sociais por outras é uma constante das sociedades produtoras, e tem uma história já bem antiga. E se a História não é mais do que a narrativa e a interpretação das lutas das classes, sendo o comunismo uma sociedade sem classes, logo, sem lutas de classes, a instauração da sociedade comunista constituiria o fim da História. Com base naquele desejo, legítimo e humanitário, Marx anunciou o fim da História muito antes do que Francis Fukuyama o fizesse. Apesar de tão peremptórias predições, parece que a História terá ainda um longo futuro pela frente.

Almada, 25 de Agosto de 2007.


4 Comentários:

Às 3:00 da tarde, agosto 27, 2007 , Blogger carlos freitas nunes disse...

Na realidade afirmar Marx, como um autor que já havia estabelecido as premissas do fim da história, ou voltar a reafirma-lo, enquanto tal, pensei que já fosse caso resolvido pela teoria da história. Pelos vistos o autor pensa e dai voltar à carga, que não. Mas as correntes históricas defensoras do escatologismo já haviam entrado em crise muito antes de Fukuyama! Fukuyama foi apenas um golpe de asa(publicidade)no pensamento histórico.

 
Às 9:57 da manhã, agosto 31, 2007 , Anonymous Anónimo disse...

O tema proposto coloca um conjunto de questões interessantes que, não sendo eu especialista na matéria e não detendo os cabedais de conhecimento que suponho no autor, vou abordar numa lógica de questionar e provocar – correndo até o risco de passar por advogado do diabo – essencialmente apenas para me esclarecer.

Se bem percebi, a abordagem visa dois objectos, no meu entender, distintos: um, o marxismo, enquanto corpo de ideias legado por Marx; o outro, os marxistas, enquanto intérpretes desse legado e agentes de práticas fundadas na sua interpretação.

Relativamente ao primeiro aspecto vou socorrer-me de dois extractos do texto onde se centraram algumas das minhas dúvidas, simples não entendimento, ou entendimento diferente:

“... Os erros que cometeu residem em duas ordens de razões: por um lado, as suas conclusões contrariam uma ou mais premissas em que se baseou, o que retira validade à argumentação; por outro lado, algumas das premissas adoptadas como plausíveis ou verdadeiras são erradas, o que o conduziu a conclusões falsas ...”

Admito a sustentabilidade do parecer, sendo que, para que não fique – ele também – constituindo parte do tal espólio de crítica infundada produzida pelos tais ideólogos burgueses, deverá, para além da sentença apresentar também os argumentos que a fundamentam: que premissas e que conclusões se contrariam? Que premissas tomadas como verdadeiras ou plausíveis são erradas e porquê?

“... Apesar disso, a generalidade das críticas feitas às principais concepções de Marx pelos mais diversos ideólogos burgueses não tem fundamento ...”

Não sou, como já referi, especialista da matéria e portanto não conheço exaustivamente todas as críticas feitas até hoje ao pensamento de Marx. Não sei também em que sentido é usado o ambíguo termo “generalidade”. Mas a ideia que tenho é que, crítica adversária fundada, não me parece ser propriamente o que mais falte ao marxismo. Para citar apenas um exemplo, Karl Popper e todo o coro de vozes menores que dele fez eco – e continua a fazer – não me parece uma crítica assim tão infundada nem tão inexpressiva quanto isso.

Quanto ao segundo aspecto – os marxistas e a sua praxis – e não pretendendo convocar atenuantes, parece-me que, em nome da coerência, deveria ter merecido um esforço de abordagem dentro do mesmo registo de rigor crítico e distanciamento desapaixonado que foi usado para referir a doutrina. Acontece que não o foi, antes deixando transparecer no juízo que faz dos marxistas também os tais laivos de subjectivismo especulativo que rejeita nalgumas partes da obra de Marx. Não é o subjectivismo especulativo, em si mesmo, que questiono como positivo ou negativo, legítimo ou não. Mas sim a sua prática por quem – afinal à semelhança do que diz Marx ter feito – dele se pretende distanciar.

Em si mesmo, o pensamento especulativo parece-me um exercício intelectual tão legítimo como qualquer outro. Aquilo que rejeito é que ele possa ser constituído em alicerce, de forma acrítica, para fundamentar uma qualquer prática. Afinal, a história da ciência encontra-se repleta de rasgos brilhantes da mente humana que, começando por ser exercícios de especulação pura, à posterior se transformaram em conhecimento científico. Da mesma forma que noutros casos o pensamento humano produziu ideias sem qualquer correspondência com o mundo real.

Quanto ao voluntarismo, seja ele de Marx e/ou dos seus discípulos, ou de qualquer outro, avaliado em termos abstractos também não me parece que seja bom ou mau, certo ou errado. Na recusa de uma perspectiva determinista da história, que alternativa resta ao homem senão assumir a intervenção no fluxo dos acontecimentos, tentando influencia-los de acordo com a sua vontade e convicções? – morais e outras? Não me ofende, portanto, que Marx e pretensos seguidores, ao arrepio de qualquer fundamentação obediente aos cânones da ciência – que na altura não se encontravam também ainda desenhados com o rigor que vieram a adquirir posteriormente – tivessem simplesmente “desejado” concretizar a ideia de um mundo que se lhes afigurou como melhor, e se tivessem em consequência batido por ele. Isto é voluntarismo e – independentemente de ter sido conseguido ou não o objectivo – parece-me legítimo e defensável. Os homens sempre se bateram por objectivos e pelas mais diversas causas e ideias, conseguindo umas vezes concretiza-las e outras não. Ou conseguindo concretizar mais tarde, em condições diferentes, aquilo que não foi possível concretizar antes nas condições de então. Independentemente de juízos de valor, não me parece que se encontre já provada, quer a possibilidade quer a impossibilidade de criar uma sociedade semelhante ao modelo imaginado por Marx, mesmo que os caminhos possam ser outros. Afinal, embora um rio nunca seja o mesmo que era no instante anterior, continua a conduzir aos mesmos destinos.

 
Às 8:30 da tarde, agosto 31, 2007 , Blogger JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Para satisfazer a sua natural curiosidade terá de dar uma olhada aos textos anteriores, nomeadamente, O trabalho, o valor e a mais-valia no modo de produção capitalista e Os erros de Marx acerca da exploração (cuja saga terá continuação), e outros. Como deverá compreender, não posso andar a repetir a demonstração em todos os textos. Seria fastidioso. Os erros encontram-se demonstrados noutros textos a isso dedicados e que continuam disponíveis (e visíveis) no blog.

A generalidade das críticas dos ideólogos burgueses refere-se às que conheço. Como certamente não as conheço na totalidade, o termo designa esse universo mais restrito. Os adversários podem criticar muita coisa da obra do Marx e têm-no feito. Em relação “às principais concepções” — a explicação da génese do lucro, a teoria do valor das mercadorias, a tendência para a queda da taxa de lucro e a teoria da revolução social — desconheço qualquer crítica fundada. Como refiro no texto, o marxismo tem sido criticado ao nível de projecto político, porque foi a esse nível que teve as maiores repercussões. Essas críticas, apontando a concepção totalitária da organização social e o carácter anti democrático e cerceador das liberdades individuais dos regimes comunistas, eram no essencial válidas. De qualquer modo, os regimes políticos comunistas inspirados no marxismo ruíram sem ser pelos efeitos das críticas dos seus adversários, mas pela sua incapacidade de competirem com o capitalismo e pela acção dos povos, que deles se fartaram. A esse nível, portanto, a crítica, apesar de correcta, mostrou-se supérflua.

Existe, porém, um campo do marxismo em que os ideólogos burgueses não têm entrado, e esse refere-se à crítica da crítica marxista da economia-política. Por conveniência e porque os seus objectivos são outros, estou convencido, passam ao lado das questões centrais. A razão parece-me simples: a crítica da crítica marxista permite desmistificar os discursos apologéticos, sejam os dos ideólogos burgueses, sejam os dos ideólogos comunistas. Aos primeiros, pouco interessa a explicação da origem do lucro, por exemplo; interessam, quanto muito, melhores discursos legitimadores; e os seus objectivos são operacionalizar melhor o funcionamento da economia capitalista, e não tanto apontar-lhe as fragilidades e as iniquidades. Aos segundos, também pouco interessa que a pseudo validade científica do marxismo seja posta em causa; afinal, uma das justificações para a adopção do marxismo como ideologia residia na sua louvada validade científica, como está bem espelhado na designação de socialismo científico que atribuem ao socialismo marxista.

A teoria marxista da revolução social, que afinal não passa de um esboço (muito mal desenvolvido pelos adeptos, diga-se de passagem), não se mostra errada apenas por resultar do pensamento especulativo. Este, se não for fantasioso, até poderá ser fecundo. Aquela teoria é errada, antes de mais, porque contraria o que a História tem mostrado acerca da transformação social. E como as teorias sobre a transformação social não são passíveis de validação pela experimentação dedicada, porque ocorrem por períodos muito longos — ao contrário do que se verificou com a teoria política marxista, cuja experimentação durante uns escassos setenta anos bastou por invalidá-la — a sua validação, se de outros males não padecerem, tem de ser procurada na História, no passado conhecido, ainda que interpretado. E, com base na História, não se pode conferir qualquer validade científica à teoria marxista da revolução social. Este é mais um aspecto caricatural do marxismo, que pretendendo fundar-se também numa interpretação materialista da História encontra nesta a base da sua refutação imediata.

A refutação da teoria, porém, não é baseada apenas na sua insustentabilidade histórica, mas principalmente na demonstração de que os conceitos com que opera e a lógica que a conduz à atribuição do protagonismo revolucionário ao proletariado, a classe explorada do modo de produção capitalista, é errada. Tal, aliás, como acontece em relação a outras concepções marxistas. Nunca, a não ser na cabeça de alguém, as “forças produtivas” (que sejam o que forem não passam de coisas, máquinas, fábricas, técnicas, etc.), poderão entrar em contradição com as relações de produção que lhes deram origem (as relações entre pessoas, que produzem as forças produtivas). A não ser que ainda venhamos a conhecer a revolução das máquinas inteligentes, mas isso é já estória… Muito menos, uma classe social explorada, que não detém qualquer domínio sobre as forças produtivas pode ser transformada em classe dirigente do desenvolvimento das forças produtivas.

Mesmo que uma classe explorada leve a cabo revoluções políticas, como foi o caso das revoluções comunistas que ocorreram em diversas sociedades atrasadas no desenvolvimento sócio-económico, tal não é sinónimo que esteja levando a cabo uma nova revolução social. O que o comunismo fez nessas sociedades foi trazê-las para a modernidade capitalista, à custa do sacrifício de operários e de camponeses e da sua ilusão de que estavam construindo um mundo novo que superava o capitalismo. Como os regimes comunistas mostraram, por muito verniz ideológico com que tenham coberto as relações de produção comunistas para diferenciá-las do salariato capitalista, as forças produtivas não podem ser desenvolvidas à vontade dos artistas. É necessário reservar uma parte do produto para a investigação e o desenvolvimento de novos meios de produção e, acima de tudo, é necessário que a liberdade individual permita a iniciativa para aproveitar todas as oportunidades, reais ou imaginárias, para experimentar novas respostas para as necessidades sociais que venham surgindo, correndo os inerentes riscos do fracasso. Como nem o produto excedente disponível nem a liberdade de iniciativa são ingredientes que existam em quantidade suficiente nas sociedades totalitárias comunistas — que apesar das elevadas taxas de acumulação conseguidas, com recurso a duras condições de exploração, não lhes permitiram mais do que recuperarem grande parte do atraso de que partiam, ficando muito aquém da capacidade de centralização de capitais vultuosos do capitalismo privado individual, afluindo das poupanças e dos sítios mais díspares, e da capacidade de inovação que estes permitiam — a capacidade de desenvolvimento das forças produtivas dos regimes comunistas foi o que se viu: tecnologia comprada no mercado negro ou surripiada pela espionagem de companheiros de jornada que traíam os seus países, poucas ou nenhumas inovações científicas de relevo, tecnologia orientada exclusivamente para a produção militar, penúria e má qualidade de muitos bens essenciais, etc., etc.

Quanto ao voluntarismo não ser bom nem mau, nem certo nem errado. Bem, tudo depende do ponto de vista e dos objectivos que com ele se pretendem alcançar. Para alguns, o voluntarismo é o modo pelo qual se conseguem superar a si próprios e atingirem objectivos pessoais, e, na política, constitui, para muitos outros, a ilusão e o consolo das suas vidas. Daí não advém mal ao Mundo. Mas não são os valores morais que estão em causa. O voluntarismo como instrumento de transformação social é infrutífero, por ineficaz. Quando transformam a realidade social os homens não o fazem com a consciência de que o estejam fazendo. Em cada momento, os homens tratam, pura e simplesmente, de governar as suas vidas o melhor que puderem. E a realidade social não se restringe à sua componente política, porque esta acaba por ser apenas um dos instrumentos de regulação e de reprodução das relações estabelecidas na produção das condições de existência, nas formas de organizar o trabalho e de repartir o produto social.

Como o marxismo praticamente reduziu a revolução social à sua componente de revolução política, concebendo-a como o motor do desenvolvimento das forças produtivas, através da dita propriedade social dos meios de produção, os adeptos continuam persuadidos de que a conquista do poder de Estado é condição suficiente para levar a cabo a revolução social. É condição necessária, mas não suficiente. A conquista do poder de Estado, a revolução política, é necessária para que uma classe social emergente na base económica da sociedade, protagonista de novas relações de produção que aí se estabeleceram, promova o desenvolvimento dessas novas relações de produção, removendo os entraves que as concepções políticas e ideológicas correspondentes às velhas relações de produção permanentemente lhe colocam. A revolução social desenrola-se, antes de mais, na base económica da sociedade, onde emergem novas relações de produção e as novas classes sociais que as estabelecem e protagonizam; e, depois, na superstrutura política e ideológica, quando a classe dirigente das novas relações de produção adquire consciência dos seus interesses e capacidade para lutar por eles disputando o poder político. Deste modo, os protagonistas da revolução social, nas suas componentes económica e política, são classes dirigentes; e, na revolução política, os contendores são a nova classe que entretanto já conquistou a direcção da economia e a velha classe que ainda dirige a política. A revolução social não ocorre pela disputa do poder político entre a classe explorada e a classe exploradora de um determinado modo de produção social. Mas também sobre este assunto tem no blog outros textos que o abordam mais demoradamente.

É claro que toda a gente é livre de se iludir com o que quiser. E porque não hão-de os comunistas e os simples adeptos marxistas acreditar na profecia messiânica da revolução comunista proletária? É uma questão de fé numa verdade previamente revelada. Assim como há milhões de crentes que vão a Fátima e a outros lugares e esperam pela vinda do Cristo redentor, porque não hão-de os comunistas acreditar nas profecias de S. Marx? Devido aos desaires das experiências, já não estão tão seguros da sua validade, mas, tal como alguns enduvidados, consolam-se com a esperança: quem sabe se um dia não serão realidade, quem sabe? A fé, e a esperança que permite manter indefinidamente, é a grande supremacia dos devotos sobre os incréus. E, afinal, porque não, se será dos fiéis o reino dos céus?

Obrigado pelo seu comentário. Se tiver outras questões a colocar, esteja à vontade para o fazer.

 
Às 10:40 da manhã, setembro 05, 2007 , Anonymous Anónimo disse...

Bom dia JMC

De facto acabo de conhecer o blog e n�o tinha reparado nos textos anteriores sobre a mat�ria. Fiz "prints" e vou iniciar agora o estudo deles. O que me vai dar para a� uns bons dois ou tr�s meses de trabalho suor e l�grimas. Se conseguir sobreviver ao esfor�o nessa altura virei aqui deixar opini�o. Entretanto deixei um coment�rio no post sobre o "Foi assim" de Zita Seabra.

Obrigado pela sua disponibilidade e boa vontade para aturar amadores.

 

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