segunda-feira, 4 de setembro de 2017

O Capital: cento e cinquenta anos de equívocos e de erros transformados pelos marxistas em embuste intelectual (II)


Em Portugal, a intelectualidade que se julga marxista, incluindo a que não anda por aí a afirmá-lo, constitui um pequeno número de entre os que se pode incluir nessa categoria social assaz difusa. De entre esses intelectuais, os que conhecem a obra do Marx, principalmente O Capital, são em número ainda mais reduzido. Com tão poucos conhecedores, não admira que nos congressos e colóquios que têm tido lugar entre nós dedicados à obra do Marx ou ao marxismo o nível dos discursos, mesmo o dos apologéticos, seja muito pobre.

Os marxistas, infelizmente, não compreendem a obra do Marx, pelo que se torna muito complicado debater com eles as ideias do seu mestre. Num tal debate, amiúde temos de refutar as ideias do Marx e as ideias deformadas que eles têm dessas ideias, o que constitui um trabalho duplamente árduo e geralmente improfícuo. E é confrangedor ver gente jovem, além do mais com formação universitária ou até fazendo carreira académica, a papaguear algumas das baboseiras do Marx. Isto já não apenas por cá, mas por todo o lado.

Eles não compreendem o conceito de valor das mercadorias, acerca do qual fazem múltiplas confusões, e repetem sem pensar duas das palermices que constituem o cerne da obra do Marx: a de que a força de trabalho é a mercadoria vendida pelos trabalhadores assalariados (no dizer do Engels, o primeiro dos marxistas, a única originalidade do Marx em relação aos economistas políticos clássicos) e a de que o lucro constitui um valor a mais (ou mais-valia) criado pelo trabalho para além do valor da força de trabalho que o originou.

Não se interrogam que na sociedade que generalizou o trabalho assalariado a mercadoria vendida pelo trabalhador não seja o seu trabalho mas a sua capacidade de o produzir (a sua força de trabalho), mesmo que essa sua capacidade não se possa desprender do seu ser, seja por si consumida e ele apenas possa fornecer o trabalho que produz com ela. Levianamente, propalam que o trabalho, sendo produto de uma suposta mercadoria, é o criador do valor e de mais valor do que o da suposta mercadoria que o produziu, como se alguma coisa pudesse fornecer mais do que contém, seja do que for que contenha, e de a criatura criar mais do que o criador que a criara.

O valor apropriado pelo capitalista provém da compra do trabalho presente (ou vivo) por preço abaixo do preço do valor e da sua venda como trabalho passado (ou morto) por preço correspondente ao do valor, constituindo o que venho designando desde há anos por troca desigual. O valor apropriado, portanto, corresponde ao do trabalho não pago ao trabalhador, através da depreciação do valor do trabalho presente efectuada pela apreciação do valor do trabalho passado em que aquele se transformou quando cessou a sua produção, acrescentando ao preço de compra um preço correspondente ao lucro.

Na sua cegueira, os marxistas continuam repetindo a baboseira de que a origem do lucro residiria na faculdade prodigiosa de qualquer coisa poder fornecer mais do que contém, seja do que for que contenha, valor ou o que for, sem se aperceberem do ridículo em que caem ao considerarem que o valor apropriado consistiria numa mais-valia (um valor a mais) produzida pelo trabalho para além do valor da força de trabalho que o produzira, e que corresponderia a trabalho não pago, quando na sua concepção o trabalho não só não teria valor como não constituiria mercadoria, pelo que não seria vendido nem comprado e, por isso, não teria de ser pago.

O texto que se segue é ilustrativo da miséria franciscana que caracteriza o nível dos marxistas portugueses. É a transcrição de três comentários inseridos no blog Vias de Facto, em 20, 22 e 23 de Julho de 2010, acerca de um texto de um tal Ricardo Noronha (A crise do valor) e das suas réplicas, que poderá consultar aqui.


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O tema é complexo, pelo que é temerário abordá-lo tão levianamente, sem questionar os conceitos, aceitando-os passivamente como se de conhecimento certo se tratassem. A fé, neste como em todos os outros casos, conduz ao logro.

Usando, como usa, os conceitos de “valor de uso” e de “valor de troca”, não acha estranho usar um outro conceito como simplesmente “valor”?

Afinal, que é isso do valor das mercadorias? Valor será algo diferente do resultado duma medida (feita a olhómetro, por estimativa, por cálculo ou por comparação)? Se assim não for, de que grandeza será esse tal valor o resultado da medida? Sim, porque deverá haver uma grandeza das mercadorias [uma sua característica mensurável] a que atribuamos valor, para além das grandezas utilidade e relação na troca. Ou não? Desvende este primeiro mistério.

Depois, o que é que cria o valor dessa tal grandeza das mercadorias? O trabalho vivo, como diz o Marx? Então, não lhe parece estranho que essa mercadoria especial de corrida, a força de trabalho, tenha o seu valor criado pelo trabalho passado e não pelo trabalho vivo? Afinal, em que é que ficamos? O que é que cria esse tal valor? O trabalho vivo ou o trabalho morto? Pense nisso, porque como bem notou o Engels: “Ou o trabalho acumulado cria valor, como o trabalho vivo, e então a lei do valor não vigora; ou não o cria (…)” (F. Engels, prefácio ao Livro terceiro de O Capital). Tire você as conclusões que ele não soube tirar.

Só depois disto poderá partir para a desmontagem de toda a tralha marxista, quer se refira à crítica da economia política, quer à profecia messiânica do comunismo proletário, de que me apercebo ser você um fiel devoto.

O seu post está repleto de confusões e contém algumas barbaridades ditas inconscientemente. Seria fastidioso apontar-lhas. Ressalto apenas esta: “o nível de necessidades históricas da classe trabalhadora portuguesa é bastante superior ao da indiana”. Acha mesmo, Ricardo, que as classes trabalhadoras tenham necessidades de nível diferente entre si ou diferente em relação aos capitalistas? Não estará confundindo o nível das necessidades que lhes é permitido satisfazer historicamente com o nível histórico das suas necessidades?

E, depois, o que tem o nível das necessidades a ver com o tal valor das mercadorias? Você pode ter necessidades insaciáveis, mas em que é que isso altera o valor da mercadoria que vende e o valor que lhe pagam por ela?

Pense. O que lhe faz falta é amadurecer a reflexão e armar-se do espírito crítico, ferramenta indispensável para a produção de conhecimento.


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Ricardo Noronha.

Não guardo recordação de já termos debatido isto (ou qualquer outro assunto). Eventualmente, porque o resultado não terá sido satisfatório. De qualquer modo, você proporcionou agora outra oportunidade, trazendo a matéria a debate, o que poderá ser sinónimo do seu interesse e é salutar e de registar, razão pela qual me decidi a intervir, mesmo sabendo das limitações deste meio para discussões sobre questões desta natureza.

Eu próprio não estou seguro de não navegar em equívocos, tome nota. Não seria novidade, tantos foram aqueles em que já naveguei. Mas você equivoca-se redondamente ao afirmar que li Marx apressadamente (não sei mesmo que tipo de arte adivinhatória lhe permitirá afirmar tal). Elucido-o: as leituras dos textos do Marx foram muitas, demoradas e, nalguns temas, exaustivas, e vêm já de longa data (de há mais de 40 anos, imagine). Poderá invocar que o tenha lido mal, não compreendido, e por aí fora. Conviria, contudo, demonstrá-lo, usando o melhor dos instrumentos: argumentos.

Coloquei-lhe apenas duas pequenas questões, mas constato que não respondeu a nenhuma, ou, pelo menos, não concretizou as respostas, de modo que pudessem ser entendidas com clareza.

Diz que os “conceitos de “valor de uso” e de “valor de troca”, são aqui pouco relevantes”. Não me parece ser o caso, pois eles designam ideias facilmente compreensíveis, a saber: o valor ou dimensão do “uso” ou da “utilidade” e o valor ou dimensão da “relação de troca”. Com eles, portanto, ficamos a saber que as características “utilidade” e “relação de troca” são duas grandezas que definem as mercadorias (e por isso podem ter valor, o resultado da medida da sua dimensão ou quantidade). Já quanto àquilo a que chama “valor das mercadorias” continua sem designar a grandeza (característica mensurável) das mercadorias a que esse valor (resultado da medida) se refere.

Ficamos a saber apenas que esse valor — quantidade de trabalho que as mercadorias contêm — se refere a qualquer grandeza, ainda não designada, que o trabalho confere às mercadorias. Não sendo muito, é o bastante para não sairmos da ambiguidade em que o Marx deixou o assunto (assim como os clássicos que o antecederam). Isto porque a utilidade, por exemplo, é também uma grandeza conferida pelo trabalho às mercadorias produzidas (abstraindo, portanto, das que são oferta da natureza), ainda que o seu valor não seja expresso na quantidade de trabalho que contenham.

Diz depois que o ”valor respectivo [das mercadorias] diz respeito à quantidade (e, progressivamente, à qualidade) de trabalho que cada um[a] implicou”. Mas imediatamente antes afirma que ” Um garrafão de vinho não teria valor se não pudesse ser trocado por um saco de aveia ou um fardo de algodão”, o que constitui uma manifesta contradição com a ideia de que o chamado valor constitui a medida do trabalho implicado na sua produção. Deste modo, parece que o garrafão de vinho teria sido produzido pelo divino espírito santo (ou pela natureza, ou lá pelo que fosse) e não pelo trabalho humano.

É claro que o garrafão de vinho tem “trabalho implicado” e, como tal, tem o chamado “valor”. Chamemos, por comodidade, a este trabalho implicado “custo de produção”, o tal músculo, nervo e cérebro, a que se refere o Marx, que custou aos trabalhadores que o produziram, e a este valor “valor do custo de produção”, identificando assim a grandeza a que esse tal “valor” se refere. Em mais uma das suas muitas contradições, o Marx disse que este valor apenas se manifestava na troca, ideia que você repete um pouco atabalhoadamente dizendo que o tal “garrafão de vinho não teria valor se não pudesse ser trocado”.

Nota-se que é coisa estapafúrdia, não? Ou bem que o garrafão de vinho é fruto do trabalho humano, e tem custo de produção, ou bem que é fruto do divino espírito santo, e não tem custo de produção. O que o glosado garrafão de vinho, se não for trocado, não tem é valor de troca, dado que se não for vendido não chega a relacionar-se com qualquer outra mercadoria. Isto quer apenas dizer que o produto útil garrafão de vinho, não sendo trocado, não adquiriu a qualidade de mercadoria, aquilo que se merca, que se compra e vende. Neste caso, o seu valor de custo de produção transformou-se em mero desperdício.

Mas, se for vendido, continua a ter o seu “valor do custo de produção” e adquire “valor de troca”. O erro do Marx foi pensar que este valor de troca das mercadorias expressava fielmente o seu valor do custo de produção, erro decorrente da aceitação duma falácia da ideologia dominante que afirmava que as mercadorias se trocavam pelos seus valores e que a troca era uma troca equitativa. Daí que, se as mercadorias se trocavam pelos seus valores, o chamado “valor” tenha passado, para o Marx, a ser a mesma coisa que o “valor de troca”. Isto, de facto, é o que se passa, em geral, nas trocas entre os capitalistas (verificável pela similaridade das taxas de lucro), e não admira que eles assim vejam o mundo, mas não é o que se passa nas trocas entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados. Doutro modo, como seria originado o lucro?

Para sair da trapalhada, e poder explicar a génese do lucro, o Marx inventou a “força de trabalho” (que, como o Engels muito bem afirma, foi a sua única originalidade em relação à economia política clássica) como sendo a mercadoria vendida pelos trabalhadores assalariados, ao contrário do trabalho, tido até então como sendo a mercadoria [por eles] vendida. Uma mercadoria muito especial, diga-se de passagem, pelas capacidades que lhe foram conferidas, com a qual o Marx resolveu, de uma penada, todas as dificuldades em que esbarrara a economia política clássica.

Eu chamo-lhe “mercadoria mágica”, tão irreal é a suposta mercadoria. Para encurtar caminho, uma tal mercadoria, como todas, sendo vendida pelo seu suposto valor (o valor das mercadorias compradas pelo salário), tem a faculdade de fornecer mais valor do que esse seu suposto valor, como se alguma coisa pudesse fornecer mais do que contém, seja do que for que contenha, numa clara violação das leis da física. Esse suposto valor a mais que teria a faculdade de fornecer (a famosa mais-valia) não era mais do que o lucro. Assim se resolvia o maior dos quebra-cabeças.

O maior virtuosismo da “força de trabalho” estaria ainda para vir (mas desse o Marx talvez não se tenha apercebido). Sendo as mercadorias produtos do trabalho humano, e o seu valor criado pelo trabalho humano vivo (num mecanismo também muito engraçado), esta especialíssima mercadoria, afinal, escapava a mais uma das condições: ela não tem o seu valor criado pelo trabalho vivo, visto este não entrar na sua produção, não constituindo seu factor produtivo, mas constituir somente o seu produto. Deste modo, em coerência, a “força de trabalho” não teria valor. É claro, seria um absurdo não atribuir valor a uma tal mercadoria. Daí que o Marx lhe tenha atribuído como valor o seu “valor de troca”, o trabalho morto constituinte das mercadorias compradas pelo salário.

O efeito da exploração, o valor a menos atribuído na troca à mercadoria vendida pelos trabalhadores (fosse ela qual fosse), era confundido com a sua causa, passando a constituir o valor a mais (a famosa mais-valia) que a “força de trabalho” tinha a faculdade mágica de fornecer. Também não é engraçado? E aqui temos a famosa mercadoria mágica, cujos “dons” especiais de que está possuída permitiram ao Marx ultrapassar as dificuldades até então não ultrapassadas para a explicação da génese do lucro.

Por esta razão lhe perguntei o que é que criava o tal valor das mercadorias e o valor desta tão especial mercadoria “força de trabalho”. Você não respondeu e preferiu remeter-nos para uma suposta direcção em que eu pareceria apontar (de sua inteira imaginação), a de um hipotético futuro longínquo de ”uma linha de montagem inteiramente automatizada”, quando eu lhe colocara uma questão bem real, existente desde os primórdios do capitalismo. Seria melhor ter tentado desvendar o mistério, retirando as conclusões que o Engels não soube tirar. Mas os marxistas parecem mais interessados em imaginarem o futuro do que em desvendarem os mistérios do presente. Para eles, a verdade foi já revelada.

Não se prenda com as minhas supostas leituras apressadas do Marx. Prenda-se com as minhas ideias. Dê-me troco. Refute-as. Se faz favor. Porque eu gostaria de saber a sua consistência.


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Se preferir, poderemos interromper aqui o debate e retomá-lo noutra altura que lhe pareça mais adequada. Com tempo, poderá encontrar em O Capital, logo à entrada do Livro I, as citações do Marx que me pede. Não sou muito dado a citações; parto do princípio de que os marxistas conheceriam suficientemente bem a obra do Marx para não necessitarem de citações para relembrarem as ideias em causa. Este método é também um pretexto que uso para que os menos conhecedores, que aprenderam por cartilhas de divulgação, passem a ir à fonte e, aí, não se fiquem por citações desgarradas e fora do contexto. Sei que a matéria é complexa, que exige grande capacidade de abstracção, e que o estilo do autor é denso e repetitivo, reflexo das suas próprias dificuldades, mas só tendo compreendido as ideias do Marx é possível discuti-las. E tê-las compreendido é coisa que falha à generalidade dos marxistas, que apenas as papagueia.

Sei também que é talvez exigir demasiado, porque se tivessem compreendido as ideias do Marx os marxistas ter-se-iam apercebido das ambiguidades e dos (e de alguns dos) erros e já teriam, ao menos, contribuído para saná-los e para as melhorarem com contributos originais. Constata-se, ao fim destes 143 anos desde a publicação do Livro I de O Capital, que cada geração de marxistas anda a tentar compreender o Marx e morre sem que o tenha conseguido; quando algum o consegue, abandona o marxismo, por ter percebido o logro. Nem calcula as exclamações que eu próprio fui proferindo, à medida que a cada releitura compreendia um pouco melhor a coisa (cujo espanto está reflectido nas anotações à margem e em outros meios). Por isso, nenhum deu qualquer contributo que superasse o próprio Marx. É surpreendente, mas é assim. Isto é revelador de quanto é difícil apreender e reconstituir conceptualmente a realidade social, mesmo partindo duma boa base, como é O Capital (que é o que mais importa da obra do Marx); de quanta capacidade de abstracção e dose de espírito crítico são necessárias para nos interrogarmos acerca de cada conceito que nos parece óbvio e de cada significado que nos parece plausível.

Não vou comentar a sua resposta. Não julgue que é por menor consideração. É por achar que não seria profícuo. Acontece que ela tem muitas confusões, mesmo em relação às ideias do Marx, e algumas contradições e passagens incompreensíveis, o que me faz pensar que terá sido uma resposta apressada e que este poderá não ser o momento adequado para continuarmos a debater. Deixo-lhe, sem qualquer sublinhado, apenas um parágrafo da sua resposta que justifica o que digo, para que possa reflectir um pouco melhor: ” Quanto ao trabalho como fonte do valor. Não há, parece-me, qualquer mistério no processo. O valor de troca da mercadoria trabalho é inferior ao seu valor de uso. Ele produz mais do que recebe e a palavra "produz" é mais indicada do que a que você emprega - "contém". A reprodução da força de trabalho também envolve trabalho vivo, a não ser que fora do seu horário de trabalho o trabalhador ainda vá cultivar a terra e cardar a lã. Mas então seria preciso compreender (por que) razão iria trabalhar. Você pretende captar as várias componentes do ciclo do capital isolada e detalhadamente, mas elas só são compreensíveis no seu movimento geral e não uma de cada vez”. Mas se preferir continuar a debater por minha parte estarei disponível, ainda que tenha de usar respostas extensas.


Almada, 20-23 de Julho de 2010.