Os comunistas portugueses comemoram alegremente os noventa anos que no próximo dia 7 de Novembro passam sobre a revolução comunista na Rússia em 1917. Fazem-no, dizem eles, em nome da defesa dos interesses dos trabalhadores assalariados que o comunismo representaria. Estranho modo de defender os interesses dos trabalhadores o de uma revolução que implantou o capitalismo sob a forma de capitalismo de Estado monopolista e de regime político bárbaro e totalitário, que eliminou milhões de operários e de camponeses, que exercia uma ditadura repressiva e não lhes concedia sequer as mais elementares liberdades, que nunca lhes proporcionou um nível de vida comparável ao existente nas sociedades de capitalismo privado concorrencial de mediano desenvolvimento e à qual, por todas essas razões, os trabalhadores assalariados deram um piparote. Estes comunistas são mesmo tontos!
*
O MARXISMO E A REVOLUÇÃO SOCIAL
José Manuel Correia
As teorias sobre a transformação social não são passíveis de validação pela experimentação dedicada: por um lado, a sociedade não é objecto de que se possa dispor para experimentação, e, por outro, as transformações que vai sofrendo ocorrem durante períodos muito longos. A validação destas teorias, se de males evidentes não padecerem, por isso, tem de ser procurada na História, no passado conhecido, ainda que interpretado. A teoria marxista da revolução social pretende ser baseada na História. O chamado “materialismo histórico”, assim designado por Engels, que os adeptos apelidam de “teoria científica da história” e a que atribuem o qualificativo de componente fundamental do marxismo, afirma que a história da Humanidade tem sido uma constante luta de classes sociais pela conquista do poder político, através da qual umas classes sociais se sucedem a outras na direcção da sociedade. Uma tal constatação, porém, não constitui fundamento que dê consistência à teoria marxista da revolução social; nem esta é entendida pelos adeptos como uma teoria da revolução social em geral, mas como a teoria da revolução social proletária. De facto, a teoria marxista da revolução social nem chega a ser uma nem outra coisa. Como teoria da revolução social em geral não passa de um esboço — muito mal desenvolvido pelos adeptos, diga-se de passagem — conceptualmente errado; e como teoria da revolução social proletária não passa de uma proclamação panfletária sem qualquer fundamento.
Não é difícil reconhecer que a história da Humanidade tem sido uma constante luta de classes sociais. Seria até mais correcto afirmar-se que a história da Humanidade tem sido constituída por uma variedade de relações sociais de dominação, as quais determinam uns e condicionam outros tipos de relações de produção (as relações estabelecidas entre as pessoas na produção das condições de existência, ou modos de produção, sobre as formas de organização do trabalho e de repartição do produto) que em cada fase histórica coexistem na sociedade, cuja sucessão ou substituição de umas por outras tem sido levada a cabo por lutas de classes sociais distintas. Mas também não é difícil constatar que a revolução social, o processo de substituição de umas relações de dominação por outras, não se confina às lutas de classes pela disputa do poder político, que caracterizam as revoluções políticas, e que mesmo estas fases da revolução social não têm sido constituídas por lutas travadas entre classes sociais dirigentes e classes sociais dirigidas, mas por lutas travadas entre classes dirigentes dos tipos diferentes de relações de produção que coexistem na sociedade, em inter-relação, sob o domínio da relação de produção principal.
Entre classes sociais dirigentes e dirigidas, e até entre extractos de classes, categorias e grupos sociais os mais diversos, desenrolam-se também lutas económicas, ideológicas e políticas, por disputas as mais variadas; tais lutas, porém, não têm por objectivo promover ou favorecer a substituição do modo de produção dominante, mas acautelar interesses particulares dessas classes, e desses extractos de classes, categorias e grupos sociais, dentro do que entendem ser necessário e possível no estádio de desenvolvimento em que se encontra; em geral, não visam a conquista do poder político, a não ser para corrigirem um ou outro aspecto do modo como é exercido. As classes sociais dirigidas, por seu lado, não protagonizam a direcção de qualquer tipo de relações de produção, não necessitando, por isso, da conquista do poder político para melhor o expandirem e aperfeiçoarem e com isso realizarem uma sua pretensa revolução social. Mesmo que uma qualquer ideologia messiânica atribua a uma classe social dirigida e explorada a missão da conquista do poder político, se chegar ao poder uma tal classe mais não poderá fazer do que desenvolver as relações de produção de que é protagonista secundária, ainda que corrigindo aspectos concretos em seu favor. Com isso poderá julgar estar levando a cabo uma nova revolução social, mas a realidade se encarregará de desfazer-lhe o equívoco.
Como a História tem mostrado, uma classe social dirigida e explorada de um determinado modo de produção não ascende à condição de nova classe dirigente do modo de produção que lhe sucede; nem os escravos, a classe dirigida e explorada do modo de produção esclavagista, constituíram a nova classe dirigente do modo de produção tributário que lhe sucedeu, nem os servos, a classe dirigida e explorada do modo de produção tributário, constituíram a nova classe dirigente do modo de produção capitalista que lhe sucedeu. Apesar de ser bem real, a existência da luta de classes, portanto, não confere qualquer fundamento sólido à pretensão marxista de que o proletariado, a classe dirigida e explorada do modo de produção capitalista, constituiria a nova classe dirigente que sucederia à burguesia após o capitalismo. O que a História tem mostrado acerca da transformação social é precisamente o contrário da pretensão marxista de atribuir o protagonismo revolucionário na época actual à classe dirigida e explorada do modo de produção capitalista. Esta é mais uma das facetas caricaturais do marxismo: reivindicando o carácter de teoria científica válida não apresenta qualquer consistência; pretendendo fundar-se numa interpretação “materialista” da História encontra nesta a base para a sua refutação.
Uma intuição interessante de Marx — a de que no apogeu do seu desenvolvimento um determinado modo de produção (um tipo de relações de produção) esgota as suas possibilidades de continuar a desenvolver as forças produtivas da sociedade, entrando de seguida em decadência e passando a confrontar-se com a revolução política — que ninguém antes dele constatara, é depois erradamente fundamentada. Pelo que se pode depreender do ligeiro esboço de poucas linhas que Marx lhe dedicou no prefácio à Contribuição para a crítica da economia política, de 1859, a concepção marxista da revolução social está formulada como contradição entre o “desenvolvimento das forças produtivas” — que os marxistas abreviaram para “forças produtivas”, e que significam os meios de produção e o trabalho com que são produzidos os produtos diversificados que satisfazem as necessidades sociais — e as relações de produção, isto é, as relações estabelecidas entre as pessoas na produção, em torno da organização do trabalho e da repartição do produto. Uma tal concepção, porém, não resiste minimamente à crítica cuidada. As forças produtivas não passam de coisas, e só desempenham essa sua função de forças produtivas quando as pessoas se relacionam com elas sob determinadas relações de produção que estabelecem entre si. Assim sendo, é pelo menos estranho que as coisas tenham capacidade para se desenvolverem e possam entrar em contradição com as pessoas, a não ser como produto fantasioso da imaginação.
Tomando como exemplo a revolução social que conduziu a burguesia à condição de classe dominante, verifica-se que em determinada altura do desenvolvimento económico a produção agrícola e utensiliária deixou de poder continuar a ser desenvolvida como até então, com base nas diversas formas do tributo que caracterizavam o modo de produção tributário. A causalidade para o facto é múltipla e muito variada: o aumento substancial da produção pela extensão da área cultivada e pela melhoria das técnicas culturais; a escassez de terra arroteável de qualidade e de fontes de matérias-primas que se seguiu, motivando disputas territoriais, destruições, pilhagens e a instauração de pesados tributos; a substituição das corveias servis pela renda e do pagamento em espécie pelo pagamento em dinheiro, desejada por senhores com consumos mais sumptuários e luxuosos e por servos com poupança suficiente; o arrendamento de propriedades incultas, devido à expulsão ou à fuga de servos e de colonos, procurado por mercadores e por mestres artesãos com ganhos esperando aplicação noutras oportunidades de negócio; a insolvência de senhores endividados e a dação em pagamento das rendas ou a venda da propriedade fundiária a usurários, assim como a mercadores e a mestres artesãos endinheirados, buscando títulos nobiliárquicos para mais fácil ascensão social; o endividamento das realezas junto de mercadores abastados e de usurários prestamistas para fazerem face a despesas militares e de obras públicas, proporcionando a reprodução ampliada de cabedais acumulados; a apropriação privada de terrenos comunitários ou baldios, impedindo a sua tradicional utilização pelas comunidades aldeãs, piorando as suas condições de existência; a substituição de cultivos agrícolas pelo pasto para a criação pecuária destinada ao mercado; etc.
E as suas consequências também são diversas: desde logo, concomitante com o aumento populacional derivado da melhoria das condições de vida após as grandes razias provocadas por epidemias, a disponibilização ou a fuga de muitos servos e suas famílias, que para sobreviverem vagueavam sem rumo mendigando e pilhando ou se acolhiam às aldeias e às cidades em desenvolvimento; depois, o aumento do número de rendeiros e de pequenos proprietários na produção agrícola e pecuária, assim como o de trabalhadores independentes na produção artesanal utensiliária no domicílio nos campos ou nas aldeias e cidades; e, por mudança de condição de antigos servos supérfluos, o aumento do número de trabalhadores tornados livres e submetidos às relações de produção salariais na prestação de serviços domésticos, nas actividades ligadas ao comércio em expansão, na exploração mineira, na construção de meios e de vias de transporte, na invenção e na produção armamentista, na produção agrícola mercantil e na produção artesanal utensiliária na oficina corporativa em transformação ou na manufactura capitalista que a substituía.
Devido à intersecção de múltiplas séries de relações causais, de facto, a produção social não pôde continuar a ser desenvolvida com base nas relações de produção tributárias; o desenvolvimento das forças produtivas estagnou e entrou em regressão sob este tipo de relações de produção, passando a ocorrer na base das relações de produção salariais ou capitalistas, que integravam o crescente número dos novos trabalhadores livres. Apesar das mudanças que foram acontecendo na base económica, correspondendo ao lento desenrolar da revolução durante a qual as relações de produção tributárias gradualmente perdiam importância e eram substituídas pelas relações de produção salariais, pouco mudara na dominação política da sociedade. As forças produtivas não deixaram de ser desenvolvidas, para responderem às necessidades crescentes da procura social, ainda que uma eventual estagnação e regressão temporárias, próprias dos períodos de transição, possam ter acontecido; o seu desenvolvimento, porém, não ocorria já sob a forma de relações de produção tributárias, mas sob a forma de relações de produção salariais ou capitalistas. Neste cenário, as forças produtivas não entraram em contradição com as relações de produção sob as quais haviam sido desenvolvidas; pura e simplesmente, passaram a ser desenvolvidas sob outro tipo de relações de produção.
Aparentemente existe uma contradição entre o “desenvolvimento das forças produtivas” e as relações de produção em nome das quais é exercido o poder político. Mas o que existe na realidade é uma contradição de interesses entre a burguesia, a classe social dirigente das relações de produção salariais ou capitalistas, sob as quais passou a processar-se o “desenvolvimento das forças produtivas”, e a aristocracia senhorial, a velha classe social dirigente das relações de produção tributárias. A revolução social começara com a revolução económica correspondente ao desenvolvimento das relações de produção salariais na circulação das mercadorias, recorrendo aos capitais acumulados com a intensificação do comércio e com a exploração colonial, e estendera-se para a produção artesanal utensiliária, agrícola e pecuária. Durante essa longa e surda revolução económica emergiram com pujança na sociedade duas novas classes sociais — a burguesia e os trabalhadores assalariados — cuja importância social fora até aí secundária. As novas relações de produção emergentes, contudo, deparavam-se com os maiores entraves ideológicos e políticos para se expandirem e aperfeiçoarem e assim melhor promoverem o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Quando a classe dirigente das novas relações de produção salariais adquiriu consciência dos seus interesses e ganhou a capacidade de lutar por eles abriu-se o período da revolução política, através da qual se resolveu a contradição de interesses entre a nova classe emergente na economia e a velha classe ainda dirigente da política.
O exemplo apresentado em traços muito gerais serviu para ilustrar que a revolução social não é redutível à revolução política (e outros exemplos permitiriam comprovar que esta também não é redutível a formas insurreccionais), compreendendo uma fase de revolução económica a que se seguem outras de revolução ideológica e de revolução política; e que os protagonistas da revolução social são classes sociais dirigentes: uma nova classe dirigente, que estabelece, expande e aperfeiçoa um novo tipo de relações de produção sob o qual são desenvolvidas as forças produtivas, e a velha classe dirigente das relações de produção que perderam a capacidade de continuarem a desenvolver as forças produtivas. De qualquer modo, o nosso exemplo, no qual a revolução social é concebida como ascensão e queda de tipos de relações de produção que vão mostrando capacidade para desenvolverem as forças produtivas sociais, começando pela base económica da sociedade e estendendo-se para a superstrutura ideológica e política, e que apresenta a revolução política como luta entre classes sociais dirigentes, é muito mais plausível, porque consentâneo com o passado histórico, do que a concepção marxista.
Concebida como resolução de uma suposta contradição entre o “desenvolvimento das forças produtivas” e as relações de produção no seio das quais ele ocorreu, a concepção marxista da revolução social apresenta-se desprovida de qualquer consistência. Apenas na cabeça de alguém as forças produtivas — que sejam o que forem não passam de coisas, de trabalho, de terras, de ferramentas, de instrumentos, de máquinas, de fábricas, de técnicas, etc. — poderão ter capacidade para se desenvolverem e para entrarem em contradição com as relações de produção que lhes deram origem — as relações estabelecidas entre as pessoas, sob as quais são produzidas, usadas e desenvolvidas as forças produtivas. Com base nesta linha conceptual, talvez viéssemos a conhecer a revolução social levada a cabo pelas máquinas inteligentes, esses expoentes modernos das forças produtivas. É até surpreendente que durante tanto tempo uma tal concepção fantasiosa da revolução social tenha sido aceite como conhecimento científico. A credibilidade concedida à concepção marxista da revolução social só se compreende pela apologia acrítica da tralha idealista em que se fundamenta, e a subsistência do marxismo como “ideologia científica” do proletariado tem sido possível, acima de tudo, pela reverência prestada aos mitos.
Contra toda a evidência histórica — que mostra a revolução social como ascensão de novos modos de produção para substituição de outros que estagnaram e entraram em decadência, tornando-se obsoletos, e a sua componente de revolução política como forma de resolução da contradição entre os interesses de uma nova classe social emergente, sob cuja direcção se estabeleceram novas relações de produção com capacidade para desenvolverem as forças produtivas, e os da classe social dirigente das velhas relações de produção cuja capacidade para desenvolverem as forças produtivas entrara em declínio — a concepção marxista atribui a revolução social à necessidade de resolução da suposta contradição entre o “desenvolvimento das forças produtivas” e as relações de produção que o possibilitaram, e redu-la à sua componente de revolução política. Tão paradoxal contradição viria a ser transformada na contradição de interesses entre a burguesia, a classe social dirigente e exploradora do modo de produção capitalista, e o proletariado, os trabalhadores assalariados, a classe social dirigida e explorada deste modo de produção. Uma absurda contradição entre coisas e pessoas, portanto, acabou sendo transfigurada numa contradição de interesses entre classes sociais; não numa contradição de interesses entre classes sociais exploradoras, dirigentes de tipos de relações de produção existentes na sociedade, mas na contradição entre uma classe explorada e a classe que a explora, no caso do modo de produção capitalista, na contradição entre o proletariado e a burguesia.
Estando a causa da revolução social ligada à decadência do modo de produção dominante devido à sua incapacidade para continuar a desenvolver as forças produtivas sociais — no caso presente do modo de produção capitalista, devido à sua incapacidade para assegurar a continuidade da acumulação, por impossibilidade da transformação dos lucros em novos capitais, através do emprego como trabalho assalariado de parte crescente do produto da capacidade de produzir trabalho disponível na sociedade, que assim é mantida inactiva — é paradoxal que o protagonismo revolucionário seja atribuído a uma classe social do modo de produção em decadência, também ela em processo de declínio da sua relevância social. Conferir o protagonismo da revolução social a uma classe social do modo de produção em decadência, por si só, constitui um absurdo; atribuí-lo à classe social dirigida e explorada desse modo de produção, que por essa sua condição não detém qualquer direcção sobre as forças produtivas e, por isso, está desprovida de capacidade para as desenvolver, representa outro absurdo ainda maior. É esta concepção mirabolante que constitui a teoria marxista da revolução social. Uma tal teoria foi formulada para conferir alguma réstia de credibilidade à profecia messiânica da revolução comunista proletária, anunciada na proclamação panfletária Manifesto do Partido Comunista, de 1848, mas isso é insuficiente para dotá-la de qualquer consistência.
Mesmo que uma classe social explorada leve a cabo revoluções políticas, como foi o caso das revoluções comunistas proletárias que ocorreram em diversas sociedades atrasadas no desenvolvimento social — económico, ideológico e político — tal não é sinónimo de que esteja realizando uma nova revolução social. Novas relações de produção não se inventam por actos voluntaristas; elas surgem na base económica da sociedade para desempenharem uma função social concreta, e expandem-se se corresponderem a formas profícuas de aproveitar as oportunidades que forem surgindo para desenvolver as forças produtivas da sociedade face ao declínio da capacidade de as desenvolver que a partir de determinada altura as relações de produção até então dominantes comecem a evidenciar. As revoluções políticas não criam e, por isso, não implantam novas relações de produção; a sua função é a conquista do poder de Estado para favorecer a expansão e o aperfeiçoamento de relações de produção já existentes na base económica da sociedade. Ao tempo da proclamação panfletária, o modo de produção capitalista ainda não perdera a capacidade para desenvolver as forças produtivas, e mesmo hoje não convive, pelo menos de forma ameaçadora, com novas relações de produção cujas necessidades de expansão e de aperfeiçoamento coloquem na ordem do dia a revolução política protagonizada por uma nova classe social emergente.
O proletariado, por seu lado, não constitui uma classe social emergente, muito menos é a classe dirigente de quaisquer novas relações de produção que tivessem passado a existir em concorrência com as relações de produção salariais ou capitalistas. As revoluções políticas proletárias que ocorreram, portanto, não corresponderam à necessidade de desenvolvimento de qualquer tipo novo de relações de produção que existisse na sociedade, distinto das relações de produção salariais ou capitalistas e em concorrência com elas, e, por isso, não implantaram qualquer tipo novo de relações de produção, diferente das relações de produção salariais ou capitalistas. O que o comunismo fez nas sociedades onde foi implantado foi trazê-las para a plenitude da modernidade capitalista, à custa do sacrifício de operários e de camponeses e da sua ilusão de que estavam construindo um mundo novo que superava o capitalismo. Como os regimes comunistas mostraram, o salariato capitalista manteve-se, ainda sob formas mais coercivas de trabalho compulsivo, por muito verniz ideológico com que tenham sido cobertas as relações de produção comunistas para dele se diferenciarem, assim como se manteve a apropriação privada duma parte do produto social, embora travestida de apropriação social, através de um grupo social privado, o partido comunista.
Porque não corresponderam a qualquer nova revolução social, mas apenas a revoluções políticas levadas a cabo em sociedades atrasadas, os regimes comunistas saídos dessas revoluções só puderam basear-se nas relações de produção salariais ou capitalistas e desenvolvê-las, rompendo com os entraves políticos que bloqueavam a sua expansão e aperfeiçoamento. Devido às características específicas que a ideologia comunista previa para a organização económica e política, expropriando os capitalistas individuais e reservando para o Estado a função de organizador colectivo da produção social, sob a forma de capitalismo de Estado monopolista, o desenvolvimento capitalista promovido sob os regimes comunistas não poderia ultrapassar o nível do desenvolvimento já alcançado nos países de capitalismo privado concorrencial. Primeiro, porque as forças produtivas não podem ser desenvolvidas à vontade dos actores sociais; depois, porque é necessário reservar uma parte do produto para acumulação, para o crescimento das forças produtivas e para a investigação e o desenvolvimento de novos meios de produção e de novos produtos; e, acima de tudo, porque é necessário existir liberdade individual para permitir a iniciativa de aproveitar todas as oportunidades, reais ou imaginárias, para experimentar novas respostas às necessidades sociais que forem surgindo, estabelecendo tipos novos de relações de produção ou formas novas de organizar o trabalho e de repartir o produto, correndo os inerentes riscos do fracasso. Como se viu, nem a parte do produto disponível para acumulação nem a liberdade de iniciativa foram ingredientes que existissem em quantidade suficiente nas sociedades totalitárias comunistas.
A propriedade estatal dos meios de produção, constituindo um monopólio total, e a planificação centralizada da economia, determinando administrativamente o investimento, a produção, o consumo, o emprego e os preços, que em vez da regulação dos mecanismos do mercado os subvertia; a ausência de concorrência entre unidades produtivas internas, e destas com o exterior, que não impulsionava a inovação; a escassez de capitais externos, que não facilitava o investimento em sectores prioritários; as limitações no acesso comercial à tecnologia mais moderna, devido ao bloqueio imposto pelos países capitalistas mais desenvolvidos; o reduzido volume de trocas desiguais vantajosas com mercados externos, devido à falta de competitividade e às restrições comerciais adoptadas por muitos países, confinando-se as trocas, durante muito tempo, a alguns países comunistas e a outros não-alinhados, em vias de desenvolvimento, e praticamente a matérias-primas, a armamentos e a umas poucas mercadorias convencionais; a ausência de liberdade sindical, de reivindicação salarial e de participação na organização dos processos de trabalho e nas decisões da gestão empresarial, permitindo a persistência dos salários baixos, que assim não pressionavam os custos de produção e não incentivavam ao aumento da produtividade, conduzindo ao desperdício de trabalho disfarçado de pleno emprego, tudo isto, resultante das características do modelo e da sua conjugação com o contexto político internacional da sua aplicação, não possibilitaria aos regimes comunistas suplantarem os níveis de desenvolvimento dos regimes de capitalismo privado concorrencial de mediano nível de desenvolvimento.
Apesar das elevadas taxas de acumulação conseguidas inicialmente com o recurso a duras condições de exploração — as quais lhes permitiram recuperarem grande parte do atraso de que partiam, mas que ficaram muito aquém da capacidade de centralização de capitais do capitalismo privado concorrencial, que afluíam das poupanças e dos sítios mais díspares, e das potencialidades de renovação dos meios de produção e de promoção da inovação que proporcionavam — o desenvolvimento das forças produtivas dos regimes comunistas foi o que se sabe: permanente dependência tecnológica dos países de capitalismo privado concorrencial, com a tecnologia mais avançada a ter de ser comprada no mercado negro ou a ser surripiada pela espionagem de adeptos ou de companheiros de jornada que traíam os seus países, devido aos bloqueios comerciais; poucas ou nenhumas inovações científicas e tecnológicas de relevo, assim como desaproveitamento das invenções provenientes da criatividade individual, por desconfiança em relação à inovação e por receio do risco; aplicação da tecnologia mais actual quase exclusivamente na produção militar, sem aproveitamento noutros ramos, consumindo recursos vultuosos que não eram reproduzidos; baixa produtividade do trabalho, realizando-se o aumento da produção principalmente pela manutenção da jornada e pelo aumento do emprego e dos ritmos do trabalho; penúria e má qualidade de muitos bens essenciais, escasseando até os bens de luxo mais modernos ambicionados pela oligarquia, o que originava um florescente mercado paralelo e o alastramento da corrupção, etc., etc.
A redução da revolução social à sua componente de revolução política, concebendo-a como o motor do desenvolvimento das forças produtivas, através duma pretensa propriedade social dos meios de produção configurada pela propriedade estatal, não tem qualquer fundamento sólido que a justifique. Devido à crença nesta errada concepção da revolução social, os adeptos marxistas continuam persuadidos de que a conquista do poder de Estado é condição suficiente para a levar a cabo. É condição necessária, mas não suficiente; e é necessária para concluí-la, não para iniciá-la. A conquista do poder de Estado, a revolução política, é necessária para que uma classe social emergente na base económica da sociedade, dirigente de novas relações de produção que aí se estabeleceram, promova melhor a expansão e o aperfeiçoamento dessas novas relações de produção, removendo os entraves que as concepções ideológicas e políticas correspondentes às velhas relações de produção permanentemente lhe colocam. A revolução social desenrola-se, antes de mais, na base económica da sociedade, onde emergem novas relações de produção e as novas classes sociais que as estabelecem e protagonizam; e, depois, na superstrutura ideológica e política, enquanto a classe dirigente das novas relações de produção adquire consciência dos seus interesses e, ganhando a capacidade de lutar por eles, disputa o poder político, o conquista e o mantém.
Os protagonistas da revolução social, nas suas componentes económica, ideológica e política, portanto, são classes sociais dirigentes; e, na fase de revolução política, os principais contendores são a nova classe que entretanto já conquistou, ou aspira a conquistar, a posição dominante na economia e a velha classe que tendo perdido o domínio económico, ou estando em vias de perdê-lo, ainda dirige a política. A componente política da revolução social não se caracteriza pela disputa do poder de Estado entre a classe explorada e a classe exploradora de um determinado modo de produção social; a classe explorada de um modo de produção, por essa sua condição, não constitui uma classe dirigente; e se for protagonista de um modo de produção já dominante não o é de relações de produção representativas de um qualquer novo modo de produção que tenha passado a existir na sociedade, distinto e em concorrência com aquele de que é a classe dirigida e explorada. Quando um modo de produção, atingido o auge do seu desenvolvimento, inicia o declínio cria as condições propícias para o surgimento de um novo modo de produção — ou para a expansão de um já existente, mas dominado — que irá disputando com ele as oportunidades produtivas que forem surgindo para satisfazer as necessidades sociais. É o que há-de acontecer com o modo de produção salarial ou capitalista quando as suas possibilidades de aproveitar a capacidade de produzir trabalho disponível na sociedade, pela compra de trabalho em troca de salário, entrarem em declínio.
A decadência dos modos de produção ocorre quando o aumento da produtividade do trabalho, ao invés de proporcionar a redução do tempo de trabalho individual, é usado para reduzir o número dos trabalhadores activos, lançando no desemprego persistente cada vez maior número, que não encontra ocupação estável. Nessas situações, apesar da crescente capacidade produtiva existente, cada vez maior número de pessoas vê-se arredado da produção e tem os seus padrões de consumo reduzidos, passando a viver da caridade pública ou particular, da poupança ou do desperdício de outras. Crises cíclicas de sobreprodução, e a destruição de meios de produção excedentários, ou a sua inactividade deliberada, que as acompanha, tendentes a adequar a produção à procura solvente, e que constituem a resposta recorrente das classes exploradoras para a manutenção dos níveis dos seus rendimentos ou para a salvaguarda dos seus patrimónios, produzem efeitos agravados. Nas formações sociais mais desenvolvidas, cresce o número dos inactivos permanentes e o daqueles que apenas encontram ocupação temporária, aumentando a instabilidade e a precariedade do emprego. Os insolventes não desaparecem, a não ser que sejam exterminados, e necessitam de trabalhar para continuarem vivendo com um mínimo de dignidade. Então, com muito sofrimento das gerações apanhadas no turbilhão das épocas de transição entre modos de produção, surgem forçosamente outras formas de aproveitar o trabalho humano, esse bem essencial que as sociedades humanas detêm e que constitui o principal componente das suas forças produtivas, e de repartir o produto social. Com a decadência do modo de produção actualmente dominante, pelo declínio da venda de trabalho por salário, talvez os produtores de trabalho passem a vender produtos do seu trabalho, tornando obsoletas as relações de produção salariais ou capitalistas. A adivinhação como forma de previsão do futuro e o voluntarismo como instrumento de transformação social, contudo, são totalmente infrutíferos e, portanto, escusados.
A História está por fazer, e quando a fazem transformando a realidade social os homens não têm a consciência de a estarem fazendo. Em cada momento, pura e simplesmente, os homens tratam de governar as suas vidas o melhor que podem. A todo o instante, as diferentes classes, extractos de classes, categorias e grupos sociais podem lutar, ao nível da economia, da ideologia e da política, pelo acautelamento dos seus interesses segundo as representações que deles têm e as possibilidades que lhes permitem as relações de forças; a revolução social, contudo, não se restringe a ajustamentos conjunturais nos instrumentos económicos, ideológicos e políticos de regulação e de reprodução das relações estabelecidas na produção das condições materiais de existência, caracterizando-se pela transformação do que é a essência dessas relações, pela instituição de novas formas de organizar o trabalho e de repartir o produto social.
Almada, 07 de Setembro de 2007.