segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Pelo SIM à descriminalização do aborto


O comentador Marcelo Rebelo de Sousa é um vivaço de primeira apanha e um pensador de finíssima sagacidade, com uma tendência inata para a originalidade e a traquinice. Para além de lhe provocarem uma constante ânsia de protagonismo, que o faz catapultar-se para a ribalta dos meios de comunicação para ser o centro de muitas atenções, estas suas qualidades fazem dele também um mestre da intriga política e um exímio fabricante de "bicos de obra".

É conhecida a sua felicidade por ter engendrado, de conluio com o seu amigo, o beato Guterres, esta esperteza saloia do referendo sobre a descriminalização do aborto, forma com que procurou impedir a revisão da actual legislação em sede parlamentar (a qual, juntamente com as despesas decorrentes das complicações de saúde dos abortos clandestinos, tem custado ao país mais do que custarão os abortos legalizados dos próximos dez anos); e já nos fez saber do seu contentamento com a originalíssima opção que arranjou para esta nova edição do referendo, coisa do mais puro cinismo. Melhor do que o próprio a apresentá-la só a inteligente e hilariante representação caricatural que dele fez o Ricardo Araújo Pereira na comédia televisiva do Gato Fedorento.

Diz o comentador, conceituado professor de direito, que defende a não penalização das mulheres grávidas que pratiquem o aborto, seja até às dez ou às trinta e seis semanas de gravidez. A sua atabalhoada argumentação não me permitiu compreender ainda se o abalizado comentador vota NÃO porque defende a descriminalização do aborto, o que seria uma interessantíssima novidade, e o referendo apenas o descriminaliza até às dez semanas de gravidez; ou porque defende apenas a despenalização das mulheres que se façam abortar, o que não é manifestamente o que está em referendo.

Pelo que conhecemos do malabarista das palavras, coisa que ele não defenderá é a descriminalização do aborto. Resta então a cereja no bolo ou o realce do fino recorte da urdidura tecida: a prática do aborto deve continuar criminalizada; as mulheres que mandem fazerem-lhes o aborto não serão penalizadas; as malvadas parteiras e os sinistros médicos que pratiquem o crime deverão malhar com os costados na prisão. A mandante, coitada, não é do crime culpada, e não terá pena, sendo que os verdadeiros assassinos, aqueles que de facto praticam o aborto, serão alvo de pena adequada, digamos, bem mais gravosa do que a actualmente prevista. Com dez anos de pena mínima, quem se arriscará em tão criminosa empreitada? Eis o que seria o remédio santo do comentador para acabar de vez com o aborto!

Seria de esperar, com esta original opção, que para os crimes de aborto não encomendados, aqueles que o divino criador se lembra de efectuar por sua conta, causando ainda maior dor e mágoa às mulheres cuja gravidez era tão desejada, o abalizado comentador defendesse igualmente a sua dura penalização: digamos, os mesmos dez anos de prisão, mas por cada acto tão sádico. Atendendo à divindade do criminoso, e à constante reincidência, que a pena fosse cumprida na mais recôndita das profundezas do Inferno.

Vem este apontamento a propósito da tibieza dos defensores do SIM no referendo. Parece terem aprendido pouco com a experiência do primeiro referendo, e mais uma vez não assumem com a clareza devida o que está em jogo: a descriminalização do aborto até às dez semanas de gravidez e não apenas a sua despenalização. Será que julgam conquistar os indecisos passando-lhes atestados de tolos? O que a sociedade deve decidir é a atribuição à mulher do direito de opção sobre a sua singular capacidade para a gestação, concedendo-lhe a liberdade de poder abortar até às dez semanas de gravidez em condições de segurança. As mulheres não necessitam de compreensão nem de tolerância nem de despenalização: exigem que a sociedade lhes reconheça o direito de decidirem em plena liberdade. E isto precisa ser dito com clareza. É que já vai sendo tempo, caramba!

Adenda 1.

No DN de hoje (31.01.007), Vicente Jorge Silva afirma: “Defender o "sim" é infinitamente mais difícil, a não ser para os fundamentalistas de sinal oposto aos integristas do "não", ou seja, para quem pretende que o acto de abortar representa uma bandeira libertadora e identitária da mulher”. Estranha dificuldade, quando o que está em jogo com a descriminalização do aborto até às dez semanas de gravidez é apenas reconhecer à mulher o direito de poder optar em liberdade entre abortar ou não abortar. Só e apenas isso. O que cada uma fizer com a sua liberdade, o significado com que o fizer e as razões porque o fizer apenas a ela dizem respeito. Pode acontecer que para algumas mulheres, eventualmente uma minoria, “abortar representa uma bandeira libertadora e identitária” e para muitas outras não. Teremos o direito de criticar as razões da sua opção? Ou sequer de as conhecer? Com que fundamento? Pelos vistos, o que parece ser difícil é reconhecer direitos, neste caso, à mulher.

Exemplo de fundamentalismo criminoso foi o slogan usado na campanha do anterior referendo “na minha barriga mando eu”, assim, sem mais nada, estivesse lá dentro um embrião de oito semanas ou um feto de quatro ou de seis meses. Felizmente, até ao momento, os movimentos pelo SIM no referendo não têm descambado para semelhantes tolices. Mas, de certo modo, têm demonstrado algumas reiteradas fraquezas. Pretendendo alargar a abrangência, usam e abusam da hipocrisia, tal como alguns dos seus contrários, e algumas figuras públicas têm aparecido a afirmar não defenderem o aborto. Então, se não defendem a possibilidade das mulheres poderem abortar, defendem o quê? Assim como parece terem receio de atacar o argumento dos defensores do NÃO de que a vitória do SIM representa a liberalização do aborto até às dez semanas de gravidez. Então, se o direito de optar em liberdade não é a liberalização do aborto, o que é?

Estas e outras tibiezas podem fazer pensar algumas almas caridosas de que os direitos se conquistam com subterfúgios e não com a clareza e a frontalidade, mas também podem fazer correr o risco de mais uma derrota referendária. Neste aspecto, os defensores do NÃO têm o mérito de se apresentarem a defender com clareza as suas convicções, por mais retrógradas que sejam. E é a defender convicções que as disputas se ganham.

Ganhando o SIM, esperemos que estes rabos de palha não conduzam os redactores da lei para a veleidade de pretenderem que nos eventuais gabinetes de aconselhamento se venham a fazer pressões ilegítimas sobre o direito das mulheres poderem fazer as suas opções com inteira liberdade.

Adenda 2.

Com lucidez e clareza, Helena Matos (aqui) aponta o que para muitos constitui o verdadeiro nó górdio do que está em jogo: "Pois agora temos o problema do 'livre arbítrio da mulher'. Alguém imagina uma discussão sobre o livre arbítrio do homem? O livre arbítrio do homem aparece como algo natural. O da mulher está no paradigma do anti-comunista primário.
O Homem pode ter livre arbítrio. O homem também pode ter livre arbítrio. A mulher tem de ter mediadores".

É que nem sobre uma capacidade que só "elas" possuem, "eles" lhes querem outorgar direitos.

31.01.2007

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Relembrando a guerra de agressão contra o Iraque


A GUERRA DE AGRESSÃO CONTRA O IRAQUE


José Manuel Correia


A não descoberta das famosas “armas de destruição massiva” (ADM) que o Iraque teria, em grande parte justificadoras da guerra de agressão movida pelos EUA e por um punhado de aliados seus contra aquele país, tem avivado nalguns comentadores a indignação face à utilização da mentira mais descarada para justificar a guerra. Alguns desses comentadores têm abordado este assunto nos seus blogues na Internet, espaço de liberdade que ainda persiste perante a censura que impera na imprensa.

Admiro, sobretudo, a sua persistência em esgrimir argumentos contra as falácias e os sofismas esfarrapados usados pelos apoiantes da invasão e ocupação do Iraque pelos EUA e seus acólitos para a defenderem e legitimarem. Julgo, porém, que essa é uma batalha inglória, porque, por um lado, vai contra o pensamento dominante nos meios políticos e comunicacionais e, por outro, mais tarde ou mais cedo as famosas ADM poderão acabar por aparecer, para lavar a face dos políticos. Situando os seus argumentos sobre a ilegitimidade da invasão e ocupação ao nível da retórica política — neste caso, as mentiras usadas pela administração dos EUA e pelos dirigentes da coligação pró-americana — aqueles comentadores arriscam-se a ter de se calar se uma nova mentira (a “descoberta” de ADM no Iraque) for fabricada para branquear a primeira.

Ao nível político, os defensores da guerra de agressão encontrarão sempre razões legitimadoras da flagrante violação do direito de soberania e da agressão militar, a começar pela desculpabilização dos mentirosos, gente cheia de boas intenções enganada involuntariamente por informações insuficientes dos serviços secretos, e a acabar no deve e haver do balanço da guerra, a todos os títulos "positivo", porque livrou o povo iraquiano de um sanguinário ditador. A este nível, os comentadores indignados ficarão sem argumentos e, no mínimo, serão titulados de comentadores maniqueístas.

Face à estratégia política americana do pós-guerra-fria, perfilhada não apenas pela ala neo-conservadora, mas, com ligeiros matizes de compreensão e talvez com menor agressividade de propósitos ou de meios, por toda a classe dirigente norte-americana, esta nova guerra contra o Iraque era vital para os EUA. Muito mais importante do que a incursão no Afeganistão — que a pretexto da retaliação pela acção terrorista do 11 de Setembro e da perseguição do Ben Laden e da Al Qaeda, visou o derrube do regime talibã, permitindo desbloquear de vez a passagem dos gasodutos (e lembremo-nos do chorrilho de mentiras propalado pela administração — sobre o antraz, a varíola, etc. para fomentar o clima de medo e de insegurança entre a população americana propício para facilitar a aceitação da necessidade da acção retaliatória) a guerra contra o Iraque visava eliminar um inimigo que representava um perigo efectivo para a manutenção da posição dominante da economia americana no contexto mundial, tanto no curto como no longo prazo.

Perante uma situação de tal gravidade para o funcionamento da economia, tornava-se necessário transformar o Saddam Hussein e o seu regime num inimigo político credível ao nível da opinião pública. Nesta operação de transfiguração de inimigo económico em inimigo político todos os pretextos serviram, e pouco importa se alguns vieram a revelar-se descabeladas mentiras se entretanto a guerra permitiu o derrube do regime e a neutralização do perigo económico que representava.

Dos três eixos argumentativos usados nessa ampla campanha de propaganda — posse de ADM, ligações à organização terrorista Al Qaeda e ditadura sobre o povo iraquiano — apenas o último tinha consistência real, e o primeiro, mesmo que fosse real, não constituía qualquer ameaça credível para os EUA ou para os seus acólitos na coligação, mas tão só para os aliados americanos vizinhos do Iraque; foi este, porém, que a administração americana mais usou. Esta opção, lembre-se, foi justificada por ser a que lhe permitia obter melhores e mais rápidos resultados, quer ao nível das opiniões públicas, quer ao nível da diplomacia (dado que na ONU prosseguiam as inspecções para o desarmamento do Iraque), e foi também a base da argumentação de muitos dos nossos abalizados comentadores políticos.

Não há dúvidas de que a propalada posse de ADM, agravada pelo perigo que a sua operacionalidade representaria, produziu os efeitos pretendidos. Ainda que uma parte da opinião pública mundial não se tenha deixado ir ao engodo (apesar das exaustivas e persistentes campanhas de intoxicação empreendidas pelos órgãos de comunicação), esta frágil oposição foi também ultrapassada, porque os dirigentes integrantes ou apoiantes da coligação guerreira pura e simplesmente se marimbaram para as suas opiniões públicas nacionais.

A relativa escassez de petróleo no mercado internacional desde a guerra contra o Iraque, em 1991, e o consequente aumento dos preços, colocava como necessidade o fim das sanções decretadas pela ONU contra aquele país, para a oferta poder aumentar e possibilitar a baixa dos preços e, deste modo, para facilitar o relançamento da economia a nível mundial. As razões de ordem humanitária invocadas para permitir o recomeço de uma parte da produção iraquiana, se bem que reais, foram o prenúncio do que viria a seguir para responder às necessidades da economia mundial.

No quadro previsível do fim das sanções, os EUA seriam a potência que mais ficaria a perder, tanto do ponto de vista político, já que haviam sido os proponentes das sanções, como do ponto de vista económico, dado que as empresas americanas se encontravam afastadas das concessões da exploração por força da degradação das relações iraqui-americanas a partir da guerra de 1991 e porque entretanto o regime iraquiano se virara para outros parceiros e se vira na necessidade de aceitar outros meios de pagamento.

Sem pretender ser original ou, sequer, exaustivo, julgo que no tabuleiro do Iraque se jogavam a eventual nova forma de concessão da exploração petrolífera (integração de uma parte das reservas como activos das empresas exploradoras, modo de as motivar para o investimento na renovação das suas arcaicas e degradadas instalações e para o aumento da produtividade, que o Saddam anunciara intentar), deixando de fora da redistribuição de uma das maiores reservas da principal matéria-prima estratégica e da nova modalidade da concessão as empresas americanas (afastadas pelo embargo proposto pelo pai Bush), e com repercussões no seio da OPEP na forma tradicional da concessão; a eventual diversificação, por parte da OPEP, das divisas de pagamento do petróleo (que o Saddam, por força do embargo, já aceitava em euros das empresas europeias), função hoje quase exclusivamente reservada ao dólar, com os inerentes perigos para a cotação da moeda americana (que, reduzida a sua função de meio de pagamento quase exclusivo, levaria a que muitos activos fossem lançados no mercado) e para a economia americana (cujo boa parte do astronómico défice encoberto é mascarado pela emissão de papel moeda para girar como meio de pagamento na economia mundial ou como activos imobilizados de muitos bancos centrais); a eventual necessidade de encontrar, através do estabelecimento no Iraque de um regime amigo, uma alternativa viável, política e estrategicamente mais favorável, para as bases militares em território saudita, fundamentais para o policiamento do Médio Oriente e da Ásia Central e das imensas reservas petrolíferas da região; a eventual correcção de um erro de cálculo político cometido pelo pai Bush, que na altura da primeira guerra contra o Iraque optou pela manutenção do Saddam no poder, na falta de substituto credível disponível (que agora a longa preparação permitiu construir) e com receio da ameaça fundamentalista xiita, julgando que o embargo e a pressão militar e diplomática seriam susceptíveis de fomentar a queda do ditador; e o eventual ataque às potências concorrentes, umas, a Europa e a Rússia, cada vez com maior influência no Iraque e a quem os neo-conservadores não se eximem de apontar claramente como inimigos estratégicos dos EUA, e, outra, a China, cada vez mais carente de petróleo, vital para garantir os seus elevados ritmos de desenvolvimento.

Interesses tão profundos, vitais mesmo, não poderiam fazer vacilar na opção guerreira a administração americana. Quando estão em jogo interesses vitais vale tudo, até tirar olhos, e, neste caso, a começar nas trapaças para justificar a guerra de agressão, intermediando com a condução da guerra em clara violação das convenções internacionais e acabando na despudorada campanha de propaganda veiculada pela generalidade dos meios de comunicação de massas designando por terroristas os resistentes às forças agressoras e ocupantes, parece valer mesmo de tudo.

Mesmo para os padrões habituais da política norte-americana, em muitos aspectos esta foi uma guerra inovadora. Foi declarada através duma espécie de ultimato concedendo ao Chefe de Estado do país agredido quarenta e oito horas para o abandonar; começou com um bombardeamento de instalações civis onde presumidamente estaria reunido o governo do país agredido, com o intuito declarado de o eliminar fisicamente (prática que se repetiria amiúde, com o bombardeamento dos palácios governamentais e das habitações sumptuosas do Chefe de Estado e da sua família); no seu decurso, foram bombardeadas intencionalmente instalações governamentais civis, mercados, habitações, restaurantes, universidades, estações de rádio e de televisão, estações de abastecimento de água; o cerco de cidades carentes de água e de bens de primeira necessidade, não sendo uma inovação lembrou longínquas práticas medievais; os civis (homens, mulheres e crianças) que se deslocavam em carros e se aproximavam das forças invasoras foram considerados hostis e abatidos como qualquer militar inimigo; até um hotel, referenciado como albergue de jornalistas de todo o mundo, e uma habitação onde funcionavam os escritórios duma estação televisiva dum país terceiro — que difundiria notícias e imagens não convenientes, consideradas propaganda inimiga — foram intencionalmente bombardeados.

Quando a resistência militar praticamente cessou, na ausência de representantes do poder que capitulassem e o entregassem aos invasores, foram emitidas ordens para a captura dos principais dirigentes do regime, vivos ou mortos, tendo as suas efígies sido apresentadas sob a forma de baralho de cartas, para as tropas terem facilmente à mão as cinco centenas de cartazes dos alegados facínoras. No entretanto, na falta de autoridades civis, o caos instalou-se, com a proliferação do saque e da destruição de bens públicos ou particulares, perante a indiferença (ou a complacência…) das forças invasoras. Tudo indicava que quanto maior fosse a destruição (das notas de banco americanas, aos edifícios e instalações), maiores seriam as necessidades de reconstrução, através das quais as potências agressoras esperavam branquear os proventos imediatos do saque desta guerra de pilhagem!

Depois de declarado oficialmente o fim da guerra, aquando começaram as acções guerrilheiras de resistência às forças agressoras e ocupantes não tardaram as acções retaliatórias e punitivas contra hipotéticos suspeitos, sem olhar a meios e aos efeitos mortíferos sobre populações civis indefesas, e o recurso à prisão arbitrária de milhares de pessoas. Atacadas quase diariamente por acções de guerrilha ou por atentados bombistas, sofrendo um número de baixas inusitado, que em muito excede o que sofreram durante a invasão, as forças de ocupação parecem procurar com a brutalidade e a punição indiscriminada aplacar a sua ira e desmobilizar a resistência dos nacionais iraquianos. Também na forma como se desenrola a ocupação, esta está sendo uma guerra inovadora.

Não tendo resultado de qualquer reacção de legítima defesa, esta foi uma guerra de agressão, eufemisticamente designada por “guerra preventiva”; não tendo os agredidos cometido qualquer hostilidade que ameaçasse os agressores, eles foram equiparados a facínoras criminosos (pelas atrocidades cometidas internamente e pelo hipotético perigo das suas intenções de agressão externa). Tal como acontecera aquando da invasão do Afeganistão, a criminalização do inimigo foi usada para justificar a agressão como punição legítima e para obnubilar as arbitrariedades e as violações das convenções cometidas no seu decurso. A acção justiceira seria justificada porque exercida por Estados democráticos contra um Estado ditatorial, como se aquela qualidade — derivada do uso da democracia representativa como instrumento de legitimação do poder no interior de um país — conferisse qualquer fundamento para justificar uma guerra de agressão contra outro país.

Neste contexto, a violação da ética, do direito internacional ou do direito de soberania, ou a campanha de propaganda orquestrada para justificar a guerra com base na mentira mais descabelada, por muito que nos indignem, é questão que preocupa pouco os estrategos (ou os nossos abalizados comentadores políticos pró-americanos de serviço), nomeadamente, se à sombra da mentira foram atingidos os intentos: derrubar o regime do Saddam e colocar no poder no Iraque um regime amigo. O facto consumado sempre foi um instrumento da acção política; mais uma vez, a tradição confirmou-se.

Com o derrube do Saddam, algo irá mudar para a economia americana: os proventos dos contratos para a reconstrução do Iraque destruído, a entrada das empresas americanas na concessão do petróleo iraquiano e a garantia da manutenção do dólar como moeda de pagamento. Mas muito mais não irá mudar, e o que não mudará é, quiçá, o mais importante. Do ponto de vista político, o Iraque irá ter uma leve hipótese de democratização (veremos se viável ou se o futuro será um novo Saddam amigo). E, do ponto de vista geo-estratégico, as melhores mudanças estão para vir, quando a tropa americana assentar arraiais, apaziguadas que estejam as facções e contida ou desmantelada a guerrilha, e construídas que sejam as novas bases militares.

Todas as guerras, as justas e as injustas, têm os seus apologistas e os seus críticos. Pelos interesses envolvidos, pelas convicções ideológicas, por oportunismo ou por simples ignorância ou estupidez, as opiniões são as mais diversas. Qualquer discussão frutuosa sobre a guerra de agressão movida contra o Iraque e a actual ocupação neo-colonial deste país não pode, porém, dispersar-se pela diversidade infundamentada nem resumir-se à questão da hipotética existência de ADM ou à ainda menos verosímil ligação do Iraque ao terrorismo fundamentalista islâmico, antes deve debruçar-se sobre o essencial: os fortes interesses económicos e políticos que a determinaram. Desse tipo de discussão séria, porém, afastam-se, como gato escaldado, os nossos abalizados comentadores políticos pró-americanos de serviço, incluindo essa interessante parelha José Manuel Fernandes-José Pacheco Pereira, que tanto se esforçou na propaganda e na legitimação da guerra de agressão.

Almada, 19 de Dezembro de 2003.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

A execução do Saddam Hussein e a "justiça" do agressor


Saddam Hussein acabou os seus dias mandado assassinar. Morreu tal como as suas vítimas, também elas mandadas assassinar, umas através de simulacros de julgamentos, outras através de retaliações bárbaras. Ditadores sanguinários não podem esperar destino diferente daquele que traçaram para as suas vítimas. Não surpreendem, portanto, a altivez do Saddam perante os juízes nem a sua aparente serenidade perante os carrascos e a iminência da morte. Tendo mudado o poder, ele, que entendia a justiça apenas como fruto da relação de forças, compreendera que era chegada a sua hora.

Ninguém ficou surpreendido com a morte do Saddam Hussein; ela estava previamente decidida, muito antes do início da guerra, e o julgamento que a decretou só teve lugar como um mal necessário para os vencedores, desde que ele escapou aos bombardeamentos cirúrgicos que procuravam deliberadamente a sua eliminação física e foi capturado. Assim como não surpreendeu ninguém que o Saddam tenha sido executado logo após o julgamento do primeiro do rol dos crimes que lhe eram imputados, cujos processos lhe estavam instaurados. Toda a gente se apercebeu de que o julgamento não visava o exercício da justiça para com o ditador, mas a obtenção de um instrumento de legitimação para a eliminação física de um inimigo dos Estados Unidos da América e dos seus aliados; e também não passou despercebido que a pressa na execução denota a necessidade, para os ocupantes, de o eliminarem quanto antes, tendo em vista a associação que fazem entre a sua manutenção vivo e a difícil situação militar e política com que se debatem.

A morte do Saddam Hussein, contudo, incomoda-nos. Não apenas pelo destino do condenado, que contraria os valores humanistas de salvaguarda da vida até dos criminosos mais ignominiosos, em que acreditamos. Isso poderia ser ultrapassado e aceite, apesar da divergência, compreendendo que a cultura local tem outros padrões para as penas. Incomoda-nos, acima de tudo, porque não foi uma decisão tomada pela justiça exercida em nome da soberania dos povos iraquianos, para reparação dos danos infligidos aos milhares de vítimas do ditador, mas porque foi uma decisão duma potência estrangeira, que desencadeou uma guerra de agressão tomando-o por alvo e que ocupa o país.

Os milhares de vítimas do ditador Saddam Hussein mereciam que o seu carrasco fosse condenado como reparação moral dos danos irremediáveis que lhes causara. Segundo os padrões da cultura local, eventualmente, a condenação à morte seria a pena justa. Quem somos nós para nos sobrepormos à vontade dos familiares dos mortos ou das vítimas ainda vivas? As vítimas, porém, não mereciam que o Saddam Hussein fosse executado por ordem dos Estados Unidos da América, a potência que deu cobertura a muitos dos seus crimes enquanto serviu os interesses norte-americanos na região; os povos iraquianos também não mereciam que a execução fosse determinada pela potência imperialista que lhes infligiu tantos danos com os demorados embargos, os continuados bombardeamentos e, por fim, com a guerra de agressão e de ocupação colonial, usados como retaliação por o Saddam não se vergar aos seus interesses, e que no conjunto produziram mais vítimas do que todas as vítimas reais e imaginárias do ditador.

A História é o relato dos acontecimentos segundo a versão dos vencedores; do mesmo modo, também a justiça tende a ser ditada segundo os interesses dos vencedores. Se os vencedores actuam em auto defesa, como resposta a agressões; se a justiça que aplicam tem como objectivo reparar danos de que foram vítimas; e se as regras com que a aplicam têm do seu lado valores éticos e morais maioritários, aqueles atropelos não nos perturbam a consciência e parecem-nos justificados. Mas é justiça a imposição da vontade do vencedor quando este actua como agressor? É a pena reparadora de danos quando aplicada por quem é causador de danos maiores ou, neste caso, é apenas vingança? Devem os agressores ficar impunes dos danos e das atrocidades que cometem?

Perante tantas desgraças que se têm abatido sobre eles, os povos iraquianos estão divididos, confusos e sem norte. Digladiam-se entre si, servindo os interesses do agressor e ocupante estrangeiro, e nem a morte do Saddam parece ser um meio susceptível de pôr termo às suas lutas fratricidas. Para uns ele continuará sendo um tirano, enquanto para outros, além do herói que já era, acabou de se transformar num mártir. De qualquer modo, unidos ou separados, o seu forte sentimento nacional acabará por derrotar os agressores e ocupantes estrangeiros, que na perspectiva da derrota tratam já da retirada. Mesmo com a balbúrdia da violência incontrolada, eles acabam por dar lições ao Mundo no que respeita à luta pela soberania nacional.

Os cidadãos do Mundo, que denunciaram a ignomínia da guerra de agressão e de ocupação dos Estados Unidos da América e dos seus aliados contra o Iraque, deveriam também denunciar a “justiça” do agressor e exigir que os mandantes da guerra de agressão movida aos povos iraquianos sejam julgados. Se é que a vida humana tem valor, a derrota militar e política não é pena suficiente para quem provocou tantos milhares de mortes entre os iraquianos. Se nada fizermos, o simples silêncio será seriamente comprometedor, e o esquecimento tornar-nos-á cúmplices.


NOTA. Posteriormente à publicação deste texto, dei-me conta da filmagem da execução do Saddam, entretanto divulgada. A referida filmagem confirma, se dúvidas restassem, que a execução visou a vingança, eliminando um inimigo, e não a aplicação da justiça, penalizando um culpado. Os pormenores da execução — a escolha do dia de feriado religioso, a atribuição da sua realização à facção xiita governante, assim como a ausência de dignidade manifestada pelos assistentes, dirigindo impropérios e insultos ao condenado até ao instante da morte — tornaram ainda mais claro que com a eliminação física do Saddam Hussein os norte-americanos pretenderam também atingir e humilhar a comunidade sunita a que ele pertencia, que desde o início da invasão tem sido a principal combatente contra o exército dos agressores. Não é o facto de terem encarregado da execução os seus aliados xiitas que iliba os norte-americanos de serem os principais interessados na eliminação do Saddam Hussein.

Abalizados comentadores, defensores da guerra de agressão dos Estados Unidos da América e seus aliados contra o Iraque e que atribuem a resistência ao domínio colonial, assim como a situação de caos criada pela luta entre facções, a erros de programação da agressão, afirmam que as vicissitudes da execução do Saddam se terão ficado a dever à ingenuidade dos agressores norte-americanos; e que aquilo, o ódio entre facções que alimenta a surda guerra civil, já lá estava antes da invasão. À enxurrada de falácias com que enfeitam o seu argumentário, caberia retorquir simplesmente: atribuir ingenuidade a profissionais experimentados é demasiada candura; e, sim, muito daquilo lá estava, latente, sob a ditadura do Saddam; o que não estava, e passou a estar, são as centenas de milhar de mortes provocadas pelos agressores, as destruições provocadas pelos agressores, as empresas petrolíferas e de reconstrução dos agressores, os exércitos dos agressores, etc., etc.

É claro que esta gente não tem um pingo de vergonha, nem sabe o que tal seja, e por isso tem cara de pau suficiente para assumir tamanha desfaçatez. É o que lhes proporciona a comodidade de escolherem estar do lado do mais forte. Para eles, basta a qualidade de vencedor; acabou a distinção entre agredido e agressor. Longe vão os tempos em que ainda se permitiam condenar as guerras de agressão!

Almada, 04.01.2007