segunda-feira, 30 de outubro de 2006

A profecia comunista e a realidade


A PROFECIA COMUNISTA E A REALIDADE


José Manuel Correia


Comentando o meu texto “Um novo projecto comunista? Para quê?”, Fernando Penim Redondo (FPR) teve a gentileza de me informar sobre as posições que vem defendendo desde 1990 acerca do socialismo real e das críticas que manifestou no XIII Congresso (Extraordinário) do Partido Comunista Português (PCP) às teses defendidas por este partido quanto à causalidade da grave crise e posterior derrocada do comunismo europeu. Depois de uma leitura, ainda que ligeira, da resolução política aprovada naquele congresso e da sua intervenção, permito-me retomar o tema, aliás, como havia prometido. Esta intervenção, devido à sua extensão, será dividida em três partes. Na primeira, abordo a análise do PCP, sem recorrer a pormenores excessivos, porque a resolução do XIII Congresso está transcrita neste fórum, e sem questionar directamente o tipo de causalidade apontada, por me parecer superficial em demasia e por não chegar ao âmago da questão; na segunda, abordo a posição de FPR e de outras correntes; na terceira, avanço com a minha própria crítica do projecto comunista (da sua utopia, da sua teoria revolucionária e da sua “relação de produção”).

1-A análise da crise do comunismo feita pelo PCP.

A análise feita pelo PCP à grave crise que na altura assolava o comunismo, e que prenunciava a sua total derrocada, identifica uma causalidade devida a “erros, atrasos e deformações em relação ao ideal comunista”. Recorrendo à tradicional verborreia descritiva e aos estereótipos laudatórios, características inconfundíveis do estilo de Álvaro Cunhal, a resolução aprovada naquele congresso extraordinário do PCP (por uma elucidativa maioria de 99% dos delegados presentes e com a oposição de apenas quatro suspeitos desmancha prazeres) caracteriza a crise como sendo “gerada por orientações e práticas que se afastaram dos objectivos, métodos e valores do ideal comunista”, e enumera “cinco traços negativos” que teriam infringido as “cinco características fundamentais de uma sociedade socialista em construção”.

O facto daqueles traços negativos terem atingindo todas as enumeradas cinco características fundamentais da construção da sociedade comunista, de estarem presentes na generalidade dos países então em crise, ao ponto de configurarem um “modelo”, o qual significava “não apenas um afastamento, mas o afrontamento do ideal comunista”, não motivou o PCP para qualquer análise mais profunda que pudesse vir a pôr em causa o projecto comunista, como chegaram a fazer outros partidos congéneres. Na perspectiva do PCP, o passado só poderia ser analisado pelos “erros, atrasos e estagnações”, e, ainda que constituíssem desvios, estes teriam de ser encarados com atenuantes, devido ao circunstancialismo em que tinham acontecido as revoluções e tinham sido edificadas as sociedades comunistas. Neste sentido, preservando a fé inabalável na ideologia comunista, apesar dos acontecimentos que contrariavam a glorificada supremacia do comunismo em relação ao capitalismo, o PCP manteve-se fiel à ortodoxia, contrariamente ao que ocorria com outros partidos comunistas, e merece justamente o epíteto de ter continuado um partido ortodoxo.

O que interessava ao PCP, perante aquela crise gravíssima, que alastrava e acabaria por promover a queda dos regimes comunistas, era encontrar uma causalidade que pudesse, de algum modo, ser plausível e aceitável para os militantes, demarcar-se dela pondo em evidência as suas características singulares quanto ao programa da revolução, às modalidades de organização e ao trabalho de direcção, elementos de garantia de que não cometeria erros idênticos ou similares, e, acima de tudo, fazer aceitar a crise como uma derrota, quem sabe se ainda reversível, embora isso fosse difícil. Esta primeira análise crítica — e também autocrítica, por “num ou outro momento e num ou outro aspecto da sua actividade” ter partilhado apreciações sobre a realidade dos países socialistas e ter reflectido concepções do modelo, “designadamente no que respeita a alguns traços negativos”, e por não ter informado convenientemente o partido — delimitava o campo admissível da análise e preparava o partido para a derrocada geral dos regimes comunistas, que já se prenunciava.

Reconhecendo erros e desvios na edificação do socialismo e do comunismo, mas restringindo o seu alcance e significado; demarcando-se do modelo, por rejeição dos traços negativos que identificava; reafirmando a validade do ideal comunista perante a manutenção do rol de iniquidades e de injustiças provocadas pela exploração e a opressão capitalistas e imperialistas, o PCP procurava responder à perplexidade e ao choque que os acontecimentos produziam no partido, prepará-lo para o descalabro que se adivinhava, fazendo aceitar a derrota do socialismo como coisa inerente à vida, porque nada está à partida garantido para todo o sempre, e procurava também, se possível, reforçar a sua combatividade perante a adversidade. Por isso, ao contrário de muitos outros partidos comunistas, que se preocupavam excessivamente com o passado, pondo quase tudo em causa, o “PCP procede(u) à sua análise com uma óptica necessariamente diferente: procurar alcançar um conhecimento mais rigoroso do mundo contemporâneo, da evolução da sociedade, das experiências e ensinamentos dos factos”, porque, apesar de tudo, “o ideal comunista da construção da nova sociedade mantém a sua validade”.

No fundamental, os objectivos do PCP foram alcançados. A descrença não se generalizou e a debandada geral não ocorreu, o partido no seu conjunto digeriu a derrocada do comunismo confortado com as justificações que lhe foram propostas, cimentadas pela autoridade analítica que atribuía a Álvaro Cunhal, seu líder indiscutível e que era a encarnação do próprio partido. As poucas vozes discordantes, que procuravam deslocar a análise da política e dos erros para o campo das condições objectivas necessárias para a construção da sociedade socialista e comunista, para além de esboçarem críticas muito limitadas e de não terem tido qualquer possibilidade de se dirigirem ao partido com os mesmos meios da direcção (nos partidos comunistas, em geral, monopólio reservado aos órgãos dirigentes), cometeram erros elementares, e as suas críticas não tiveram qualquer eco (que, de resto, também não é seguro que procurassem).

A desagregação social que se seguiu à queda dos regimes comunistas, a proliferação do saque por parte de oportunistas de todas as espécies e de máfias organizadas e o aumento da pobreza e a emergência da miséria nalguns daqueles países — devido a uma inflação galopante que desvalorizava impiedosamente os salários e as pensões de aposentação, ao desemprego provocado pela paralisação de boa parte do tecido produtivo obsoleto e à desorganização dos circuitos de distribuição estatais — conjugados com as investidas do imperialismo — ajudando à desorganização social, incentivando rivalidades étnicas e agudizando contradições nacionais, enfim, procurando tirar o máximo proveito duma situação que lhe caíra de bandeja, desejada, mas de que não suspeitava — contribuiu para fazer aceitar pacificamente a análise apresentada, que seria aprovada pelo congresso, e para reforçar a unidade do partido. Comparado com a miséria económica e o descalabro social que passaram a existir nos países onde outrora o comunismo dominara, apesar dos erros, atrasos e estagnações o comunismo havia sido um paraíso. Daí que as movimentações críticas que se seguiram no PCP, em geral, não tenham tido como pressupostos directos o questionamento do comunismo ou a análise da sua derrocada, mas razões de organização e de táctica.

Para além daquela primeira análise, passados que estão quinze anos, o PCP não fez qualquer outro aprofundamento do tema. Não teve necessidade, e tomar a iniciativa de aprofundá-lo poderia tornar-se perigoso. O seu líder decidira retirar-se da actividade executiva e dedicar-se a outras artes — reservando-se o papel de guardião da linha justa, para meter na ordem os dissidentes mais atrevidos que ousavam descaracterizar e apropriar-se do “seu” partido — enfraquecendo a capacidade de análise e de resposta do Comité Central (CC) às eventualidades que poderiam ocorrer; e os dados entretanto conhecidos sobre a realidade dos regimes comunistas, permitindo refutar a causalidade identificada na resolução do XIII Congresso, constituíam riscos acrescidos. Acima de tudo, havia combates mais urgentes e importantes a travar, nomeadamente, contra as vozes que se foram levantando questionando o excessivo centralismo e a táctica demasiado rígida do partido, para além, naturalmente, dos combates eleitorais, que são os que parecem interessar sobremaneira aos militantes.

Em boa verdade, na melhor tradição dos partidos comunistas, os militantes estiveram e estão borrifando-se para análises complexas, para as quais a esmagadora maioria não sente atracção, nem tem preparação, contentando-se com o que a direcção lhes oferece, e, além do mais, não desejam discussões que possam pôr em causa a ideologia e a utopia comunistas em que acreditam piamente. No seu entender, só os traidores ousariam empreender ou colaborar em discussões que pudessem fazer esboroar a fé no comunismo que tem orientado as suas vidas, fazendo perigar a existência do partido a que se dedicaram de-alma-e-coração e a que deram o melhor do seu empenhamento. Por vezes, os militantes não sabem por onde ir, mas pôr em causa uma parte significativa do sentido das suas vidas e fazer perigar a solidez do partido, por aí sabem que não irão. Até quando a fé resistirá aos embates da realidade é caso para ir vendo.

Em resumo, apesar de mais de setenta anos de prática de edificação do socialismo e do comunismo na Rússia, ou de quarenta e cinco anos noutros países europeus do chamado “campo socialista”, que produziram tanta coisa boa que os comunistas não se cansam de exaltar, aqueles regimes caíram de podres, uns a seguir aos outros, através de contra-revoluções pacíficas, sem que os trabalhadores, em nome dos quais o poder era exercido, mexessem uma palha para os defenderem. Se os regimes eram tão bons como é apregoado por quem está de fora, dá que pensar, no mínimo, que os supostos principais interessados não se tenham levantado a defendê-los, de armas na mão se necessário. Se os erros cometidos e os atrasos verificados eram tão graves e generalizados, é estranho, no mínimo, apenas terem sido detectados quando era tarde de mais. Se, apesar de tudo, o ideal comunista mantém a sua validade, como é repetidamente afirmado, não restam dúvidas de que para os comunistas a fé nas ideias se sobrepõe à maldita da realidade.

2-As posições de Fernando Penim Redondo (FPR).

FPR não poderia ter começado da pior forma a sua intervenção no XIII Congresso do PCP. Afirmar, logo de entrada, que as “teses do CC não constituem uma análise marxista” e que as “«cinco causas fundamentais», os «erros e desvios», nada têm a ver com os conceitos marxistas de modo de produção e de processo de transição entre modos de produção, à luz das quais as sociedades, e as tentativas de as modificar, devem ser encaradas” foi uma táctica ingénua, de militante dedicado, quiçá imbuído das melhores intenções, procurando o debate genuíno, mas que se entregava de bandeja em sacrifício às feras, consciente ou inconscientemente. Se as afirmações não despertaram alarido entre os delegados, devido à tradicional ignorância ideológica, elas certamente não passaram despercebidas aos dirigentes. A partir daí estaria catalogado e seria mantido debaixo de olho, rebatido e atacado, se necessário. É a tradição, mesmo que a tradição, por vezes, se manifeste com variações e pareça já não ser o que era. E a tradição diz também que nos partidos comunistas os congressos, as conferências, etc., pela forma controlada como são escolhidos os delegados e pelo desconhecimento prévio que têm de posições diferentes das dos órgãos dirigentes, não são instâncias onde ocorram grandes debates, mas instâncias de prática de rituais de consagração e de ratificação do que está previamente decidido.

Sustentava FPR que “nos países de Leste nunca se implantou o socialismo, que não se implantou um novo modo de produção”. Se a sua primeira tese, pondo em causa a capacidade e os instrumentos analíticos do CC, se conotava com a heresia, esta outra situava-se já na blasfémia. Levada às últimas consequências, se o modo de produção existente não era o socialismo (enquanto primeira fase do comunismo) só poderia ser o capitalismo, ainda que não identificado expressamente. De qualquer modo, a afirmação punha em causa a História dos últimos setenta anos, sugerindo que estaria toda muito mal contada. A Grande Revolução Socialista Proletária de Outubro de 1917 não teria passado duma Revolução Democrática, prolongamento da Revolução de Fevereiro, portanto, e o Outubro Vermelho, e tudo o que se lhe seguiu, seria apenas mero travesti duma revolução burguesa. Para a época, era uma tese audaz; apresentá-la num congresso do PCP, não pode deixar de se reconhecer, exigiu coragem.

Em meu entender, esta ainda é uma tese emocional de reacção à grande desilusão que constituiu o conhecimento das práticas totalitárias e das realizações sociais, técnicas e científicas do comunismo real, após se descobrir que durante tempo demasiado a propaganda nos fizera crer num logro, que ficaria constituindo a maior mistificação política do século XX, em total contradição com o que se idealizava ser o comunismo. Para um crente no comunismo marxista ou marxista-leninista, como eu fui, “aquilo”, o comunismo real, não poderia ser o resultado prático duma ideologia que se proclamava realizadora da abundância material, da igualdade entre os homens, da fraternidade universal e da liberdade plena. Um crente que se mantivesse ainda fiel a uma utopia tão bela, no fundo, um puro e verdadeiro crente, só poderia renegar “aquilo”, o comunismo real. E a rejeição não poderia abarcar apenas o período negro do estalinismo, em que proliferou o puro terror, mas todo o passado, desde Outubro de 1917.

A tese de FPR, distinta da tradicional tese trotskista do desvio burocrático estalinista, não era nova, nem original, e também entre nós tinha outros seguidores. Um promissor companheiro de Álvaro Cunhal no CC do PCP em 1961 — membro da Comissão Executiva, designação atribuída ao triunvirato que dirigia o partido no interior do país após três dos quatro membros do secretariado do CC terem passado a residir no estrangeiro — e depois seu crítico, Francisco Martins Rodrigues (FMR), defende-a igualmente, desde há alguns anos. FMR, baseando-se, como FPR, no fraco desenvolvimento das forças produtivas à época na Rússia, elabora-a um pouco mais e vai ao ponto de designar a Revolução de Outubro como uma revolução operária e camponesa, uma revolução popular, mas uma revolução burguesa de novo tipo, dirigida pela burocracia.

Quer na versão menos elaborada de FPR, quer na de FMR, esta é uma tese apenas mais radical do que a versão ortodoxa dos “erros, atrasos e estagnações” justificados pelo circunstancialismo, adoptada pelo PCP. Tem a seu crédito fazer uso de instrumentos analíticos como os conceitos de “modo de produção”, de desenvolvimento das “forças produtivas”, produtores associados, mas, se virmos bem, estes são igualmente conceitos teóricos, pertencentes ao campo das ideias, com os quais a prática não se pode comparar. A prática, na sua singularidade, enquanto produtora da realidade empírica, permite validar ou invalidar a teoria; a teoria, enquanto produto do pensamento, não pode validar ou invalidar a prática. E o que vimos com a Revolução de Outubro e com as revoluções levadas a cabo nos países da Europa de Leste foram tentativas, sérias, de levar à prática a utopia revolucionária proletária e de construir a sociedade comunista, baseando-se nos esboços teóricos produzidos pelos clássicos do marxismo. Ora, tanto a versão de FPR como a de FMR e a do PCP pretendem julgar a prática pelo recurso à teoria, o que constitui uma verdadeira inversão dos critérios da validação. A elaboração de FMR é um pouco mais caricata, porque acaba por remeter para o campo do maquiavelismo — a malvada burocracia, que realiza a política da burguesia em vez da política do proletariado — mas quer ela, quer a de FPR, são de muito difícil aceitação.

Tal como a dos ortodoxos, esta tese tem uma comodidade: permite manter a fé na utopia comunista. Se o comunismo não tivesse entrado em derrocada após a inglória tentativa gorbatchoviana de o reformar estou certo de que os ortodoxos, reconhecidos os “erros, atrasos e estagnações” postos a nu com a perestroika, se esforçariam a tentar corrigir os aspectos aparentemente mais arcaicos e supostamente causadores dos gravíssimos problemas de desenvolvimento que a URSS atravessava, e que eram afinal a ilustração da incapacidade do comunismo para competir com o capitalismo. Basta, aliás, ver as suas primeiras reacções de reconhecimento e de aceitação dos “erros, atrasos e estagnações” e a esperança que colocavam na perestroika para os corrigir (ainda que depois tenham renegado o aplauso inicial, acabando por culpar o seu líder Gorbatchov pelo funesto desenlace). Caído o comunismo, derrotadas as revoluções comunistas proletárias, os ortodoxos continuam a lutar pela revolução comunista (ou, pelo menos, a afirmá-lo). Tal como eles, também FPR e FMR continuam a lutar pela revolução comunista, porque em seu entender o comunismo, não tendo existido, há-de existir um dia. Distinguem-se entre si apenas por aspectos meramente tácticos e pela apreciação que fazem do passado — estes renegam-no, aqueles aceitam-no, ainda que criticando-o.

A argumentação de que o modo de produção comunista não foi implantado devido ao fraco nível de desenvolvimento das “forças produtivas”, em que se baseiam FMR e FPR, tem neste uma pequena clarificação, que ele também aborda num outro texto de sua autoria. Dizia FPR ao congresso que tal “como o capitalismo não se construiu sobre a base material do feudalismo, também o socialismo não se podia edificar, e não se edificou, sobre a base material do capitalismo, a grande indústria mecanizada”, pelo que “a experiência do Leste foi tecnologicamente prematura”. O conceito marxista de “forças produtivas” tem-se prestado a muitas confusões, mas FPR tem o mérito de usar outro mais claro, ainda que muito mais redutor: tal é o conceito de “base material”, que identifica com a “tecnologia”. Desta sua interpretação resulta que só da “tecnologia nova” “poderá nascer um novo mundo”, faltando “perceber que novas relações de produção resultarão da nova tecnologia”, ainda que o socialismo só chegue “tanto pela luta dos explorados como pelo desenvolvimento da tecnologia”.

Ao reduzir o conceito marxista “forças produtivas” à “base material” ou “tecnologia”, FPR, como outros, labora num erro de interpretação; e labora noutro erro ao pensar que as revoluções sociais resultam de revoluções tecnológicas completadas depois por revoluções políticas. Se assim fosse, tomando um exemplo próximo de nós, actualmente estaríamos numa época de nova revolução social, nomeadamente, devido à revolução científica e técnica que vivemos desde há algumas décadas, a qual necessitaria de uma nova revolução política para se atingir um novo modo de produção. Não parece, de todo, ser o caso; nem foi também o caso no passado, nomeadamente, com a revolução industrial, que ocorreu quando já existia um novo modo de produção, o capitalismo. As revoluções sociais encontram correspondência naquilo que se pode designar por novas formas de produzir (os modos de produção, na terminologia marxista), e essas novas formas de produzir respeitam ao tipo novo de relações sociais que os homens estabelecem na base económica da sociedade, na produção, em torno das formas de organização do trabalho e de repartição do produto, nas ideias com que as expressam, na ideologia, nas instituições com que as regulam, na política, e nas práticas com que as realizam, na realidade. Normalmente, estas novas relações sociais estabelecem-se na produção usando ainda tecnologia antiga, e o desenvolvimento tecnológico acontece na medida em que as necessidades de expansão da produção, colocando problemas produtivos que exigem solução, fazem com que a tecnologia existente deixe de corresponder às possibilidades de desenvolvimento da produção sob as novas relações sociais.

A emergência do modo de produção que designamos por capitalismo é um bom exemplo de como um novo modo de produção surge com expressões económica e ideológica relevantes através do desenvolvimento de relações de produção já existentes, mas minoritárias, o salariato, que se estendem para a generalidade dos ramos da produção social, e recorrendo ao uso da tecnologia do modo de produção dominante. O capitalismo autonomizou-se do mercantilismo, ramo específico do modo de produção tributário dedicado à circulação da parte da produção destinada ao mercado, pela expansão do comércio, que alargou o âmbito geográfico das trocas e diversificou os produtos trocados, e constituiu-se como modo de produção distinto através da sua expansão para a produção das mercadorias, porque a classe social dirigente desse tipo de relações de produção, a burguesia industrial (a burguesia capitalista propriamente dita, que se distinguia da burguesia mercantil e da burguesia corporativa, ainda que delas oriunda maioritariamente), passou a reaplicar produtivamente parte cada vez maior do produto de que se apropriava. A produção orientada exclusiva ou predominantemente para o mercado, ao invés da comercialização de meros excedentes, criando o mercado em ramos onde até então apenas existia a produção por encomenda, e a generalização do trabalho assalariado são marcos distintivos do novo modo de produção. As relações de produção que caracterizam este modo de produção, baseadas na compra e venda da mercadoria trabalho entre contraentes livres e iguais, consubstanciadas no contrato de trabalho assalariado, expande-se devido a múltiplas séries de relações causais, que fazem com que apareçam disponíveis uns actores sociais dispostos a vender e outros dispostos a comprar trabalho, mas, tanto na produção agrícola e pecuária como na produção utensiliaria, arsenalista e mineira, ela vai dar os primeiros passos e consolidar-se sobre a base das técnicas da produção artesanal que caracterizavam o modo de produção tributário (o modo de produção feudal, forma que tomou na Europa e assim referido na terminologia marxista).

A ascensão deste tipo de relações de produção exigiu igualmente rupturas concomitantes nas concepções ideológicas e políticas que entravavam a sua expansão e aperfeiçoamento, nomeadamente, a queda do monopólio das Corporações na produção artesanal oficinal ou da exclusividade do pagamento da renda fundiária em espécie, que substituíra as corveias servis aquando da transformação dos servos em camponeses livres, e a instituição da renda em dinheiro, dando lugar ao aparecimento de rendeiros capitalistas, ou ainda a ruptura com outras relações sociais tributárias, por exemplo, com a indivisibilidade da propriedade fundiária e com os privilégios reais, senhoriais, eclesiásticos e monásticos no que respeitava ao aproveitamento de fontes energéticas naturais ou à exclusividade produtiva de um ou outro ramo ou produto, nesta ou naquela região, que foram produzindo os seus efeitos na ideologia dominante e que haveriam de culminar, mais tarde, com transformações profundas do poder político, sob a forma de revoluções políticas. Não restam dúvidas, porém, de que a produção continuou a fazer-se na base da tecnologia antiga. Na manufactura capitalista, por exemplo, a nova relação de produção salarial coexistia com a tecnologia da oficina corporativa que a precedeu, e só mais tarde, com a grande transformação dos meios de produção (dos instrumentos e dos meios de trabalho) e das técnicas que caracterizou a revolução industrial, vieram a ocorrer desenvolvimentos tecnológicos substanciais com expressão na produção fabril, onde persistiu o salariato. As mudanças nas técnicas ocorrem para responder às necessidades da expansão da produção e do mercado possíveis sob uma determinada relação social estabelecida na produção; são, portanto, sua consequência, não são condição ou causa para o estabelecimento de novas relações de produção.

Embora o nível do desenvolvimento do capitalismo na Rússia, em 1917, fosse muito inferior ao dos países desenvolvidos de então, e no campo, devido à lenta penetração das relações de produção capitalistas, ainda persistissem formas transformadas de servidão, apesar de formalmente abolida pelo czarismo na última metade do século XIX, e a ortodoxia marxista comungasse do preconceito — não fundamentado, aliás, a não ser a partir da crença no famigerado desenvolvimento das “forças produtivas” — de que a revolução comunista eclodiria primeiro nos países de capitalismo desenvolvido, não parece haver dúvidas de que foi o partido comunista que desencadeou o golpe de estado insurreccional vitorioso que o conduziu ao poder, que acabaria por consolidar como vencedor da terrível guerra civil que se seguiu, e que foi também sob a sua direcção que num curto período a Rússia conheceu a transformação económica e política mais profunda da sua história. As vicissitudes que permitiram a instauração do comunismo não se repetiriam, e todas as revoluções comunistas posteriores se traduziram por rotundas derrotas pouco após a sua eclosão, salvo as que evoluíram de revoluções democráticas e nacionais ocorridas nos países ocupados pelo exército soviético no rescaldo da segunda guerra mundial e as desencadeadas noutros lados por lutas de libertação nacional.

O comunismo que existiu — no qual o pleno emprego, com que procurava assegurar a efectivação da sua bandeira do direito ao trabalho, e a fixação administrativa dos salários, mantendo-os em níveis baixos, assim como a ausência de concorrência entre unidades produtivas, constituíram travões para a inovação tecnológica e para o aumento da produtividade — demonstrou uma incapacidade intrínseca para desenvolver as “forças produtivas” de forma ilimitada, como apregoava a utopia, e em nenhum campo relevante para o desenvolvimento económico superou sequer o capitalismo corroído de contradições. Durante os quarenta e cinco anos posteriores ao fim da segunda guerra mundial, pelo menos na URSS, onde o regime se encontrava consolidado, se as novas relações de produção constituíssem um verdadeiro progresso, como predizia a teoria, elas deveriam ter implicado o desenvolvimento das ciências e das técnicas que proporcionariam crescimentos assinaláveis dos níveis da produtividade e do desenvolvimento económico, o que não aconteceu. Por esse facto, as revoluções comunistas pereceram, esgotaram as suas potencialidades de desenvolvimento social — apesar de tudo grandes, na Rússia, devido ao seu atraso, mas muito menores noutros países já industrializados, como era o caso da Checoslováquia, por exemplo — e foram jogadas para o caixote do lixo da História.

Uns crentes na utopia comunista marxista, como FPR e FMR, afirmam que o comunismo que existiu nada teve a ver com a verdadeira utopia comunista proletária marxista e renegam-no; outros, como os ortodoxos e os militantes do PCP, reconhecendo embora “erros, atrasos e estagnações”, consideram-se herdeiros dos seus feitos gloriosos em prol do progresso da Humanidade; todos eles, apesar da trágica experiência e do pouco honroso desfecho, permanecem imbuídos da fé cega de que o comunismo será o modo de produção destinado pelas cartas a suceder ao capitalismo. O facto de as revoluções comunistas não terem possibilitado qualquer desenvolvimento científico e técnico original assinalável confirma que as relações de produção comunistas, ainda que aparentemente diferentes, não constituíam qualquer progresso quando comparadas com as relações de produção capitalistas. Desse modo, a prática, a realidade social de facto existente, negando as previsões da teoria, determinou para o comunismo real um fim anunciado, ainda que sem prazo marcado.

Como todos os modos de produção baseados na apropriação privada de parte do produto social, o capitalismo é um produtor de desigualdades, de injustiças e de iniquidades; como todos os que o precederam, não será eterno, está condenado a perecer. Nada nele ou na História, porém, permite predizer que o comunismo será o seu sucessor, nem que o proletariado será a classe social que sucederá à burguesia como classe dominante. Deste modo, a utopia comunista proletária marxista não passa de uma predição idealista, parecida a tantas outras antes dela. Afirmando-se materialista e baseada na ciência, mas destituída de qualquer fundamento sólido, a utopia comunista marxista acaba constituindo uma autêntica profecia, proclamando a realização da suprema harmonia pela eliminação da contradição de interesses entre as diferentes classes sociais. Sonho vã, quando tudo o que existe, e enquanto existir, existe pela permanente e infinita superação de umas contradições dando lugar a outras. A utopia comunista, um axioma profético tido por verdade sem necessidade de demonstração, produto dum iluminado, qual profeta enviado pela providência, seguida como religião profana por milhões de fiéis, tem no proletariado o povo eleito, no Mundo a Terra prometida, no marxismo-leninismo as sagradas escrituras e nos partidos comunistas as suas aguerridas seitas de fanáticos.

Tem a utopia comunista marxista algo a ver com a ciência, como tem, por exemplo, a análise marxista do capitalismo e a sua crítica da economia política, apesar de limitada, errada e ultrapassada? Pode o comunismo marxista ser coisa diferente do que foi? É o que veremos, questionando a teoria com teoria.

3-Crítica do projecto político comunista.

Em linhas gerais, o projecto político que viria a possibilitar o aparecimento dos regimes comunistas baseia-se em sete pilares teóricos: numa proclamação panfletária idealista (Manifesto do Partido Comunista, 1848, de Karl Marx e Friedrich Engels); numa ligeira descrição da suposta evolução da Humanidade (Do socialismo utópico ao socialismo científico, 1880, parte autonomizada de uma outra obra mais extensa, de Friedrich Engels); numa interpretação das condições da eclosão da revolução social, traçada em grandes pinceladas num prefácio a uma primeira crítica da economia política (o célebre prefácio à Contribuição para a crítica da economia política, 1859, de Karl Marx) e num esboço da futura organização social comunista, elaborada como crítica a um programa partidário (Crítica do programa de Gotha, 1875-1891, de Karl Marx); numa concepção do partido comunista como partido de novo tipo, organização rigidamente hierárquica de revolucionários profissionais (explanada no não menos célebre Que fazer?, 1902, de Vladimir Ilitch Ulianov, Lenine); numa concepção de que o capitalismo havia atingido o seu estádio superior e caminhava para a decadência (O imperialismo, estádio superior do capitalismo, 1917, de Vladimir Ilitch Ulianov, Lenine); e numa crítica da economia política, até então a mais completa e bem desenvolvida, que constitui uma extensa narrativa das maleitas do capitalismo e uma demonstração aparentemente rigorosa e consistente das suas contradições intrínsecas, servindo de pano de fundo (O Capital, 1867-1894, de Karl Marx).

Desta amálgama de textos, a que se podem juntar outros, menores, sobre a conquista do poder na Rússia, em 1917, e a sua manutenção, e sobre as tarefas da edificação da sociedade socialista (primeira fase da sociedade comunista), de qualidade muito diferenciada, e da sua interpretação fiel, nuns casos, ou equivocada, noutros, resultaram as concepções que se podem designar por vulgata do marxismo e do leninismo, mais tarde baptizada por Zinoviev de marxismo-leninismo e depois adoptada e difundida por Estaline: que o capitalismo era o último dos modos de produção baseados na exploração; que o proletariado era a classe social destinada a suceder à burguesia na direcção da sociedade; que as relações de produção capitalistas entravavam o desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, o capitalismo esgotara as suas possibilidades de desenvolvimento social; que a função dos partidos comunistas, organizações de revolucionários profissionais, tidos por vanguarda do proletariado, era a conquista do poder político e a instauração da sociedade comunista, sob a ditadura do proletariado.

O comunismo implantado na Rússia e, depois, noutros países constituiu, portanto, uma aplicação prática da vulgata marxista e leninista. Como todas as aplicações práticas, sofreu das contingências, internas e externas, que constituíram o contexto em que ocorreu e se desenrolou a revolução russa. Alguns dos aspectos que assumiu derivam da cultura local, do fervor da guerra das classes e das dificuldades concretas com que os protagonistas se defrontaram; outros são fruto de concepções despóticas e policiais do exercício do poder, influenciadas pelas tradições políticas locais, que entendiam a ditadura do proletariado não como domínio económico, ideológico e político desta classe sobre as restantes, mas como exercício legítimo da violência e do terror para aniquilar os inimigos, os adversários e, até, os correligionários que cometessem o pecado da divergência, os quais eram classificados arbitrariamente como inimigos; outros, ainda, resultam das formas como a realidade possibilitou a aplicação do projecto no estabelecimento e na edificação da nova sociedade, também neste campo meramente esboçado.

É escusado procurar as causas do esgotamento do comunismo na personalidade perturbada dos líderes; nesse aspecto, não encontraríamos apenas laivos de paranóia (como é reconhecido em relação a Estaline), mas de boçalidade, rudeza e incompetência (como é notório em Khrushchov) e, até, de alucinação provocada pela dependência de drogas (como é referido em relação a Brejnev). Por muita influência que os líderes tenham exercido, o comunismo foi obra colectiva de milhões de indivíduos, não só de dirigentes como de trabalhadores, que acreditavam sinceramente estar construindo a sociedade do futuro e realizando a utopia. É também escusado detectar eventuais erros, quer tenham sido cometidos em relação ao catecismo da vulgata, quer em relação a um outro qualquer catecismo, mais impreciso, que resultaria por expurgo de algumas concepções do leninismo, e atribuir-lhes as culpas. Se alguns dos erros apontados não tivessem sido cometidos, eventualmente, o comunismo não teria alcançado os êxitos inegáveis que alcançou nalguns aspectos ou, até, nem teria existido. Não se pode, portanto, decidir arbitrariamente quais os erros responsáveis pelo fracasso do comunismo só porque eles configuram um desvio em relação a um qualquer catecismo, sem ponderar se esses mesmos erros não foram os responsáveis pelo seu sucesso. Porque, afinal, aquilo que ruiu, o comunismo que existiu durante setenta e quatro anos e a que se atribuiu a glória de ter estado construindo a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a abundância, enfim, a felicidade na Terra, foi possível precisamente com os erros que agora lhe são apontados.

O julgamento da realidade, da prática, pelo recurso à teoria é um vício de análise, que não tem qualquer sustentabilidade científica e não passa de expediente de ilusionista. A esta categoria, porque se baseia numa deformação idealista que nada tem a ver com o suposto materialismo dialéctico que orientaria a sua ideologia, pertence a análise da derrocada do comunismo que existiu feita pelos ortodoxos marxistas-leninistas. Eles acreditam que o marxismo-leninismo, a vulgata zinovievista-estalinista do marxismo e do leninismo, é ciência social, além do mais, ciência social certa, aferida pela prática, precisamente pelo facto de o comunismo ter existido. Ora, se o comunismo que existiu foi o aferidor da validade do marxismo-leninismo em que acreditam, não já só pela fé, mas pela evidência de se ter concretizado na realidade, o mesmo comunismo que existiu não pode passar de aferidor a aferido, isto é, a sua validade não pode ser aferida pelo marxismo-leninismo, a quem ele tinha aferido e conferido validade.

Um vício de análise do mesmo tipo é cometido pelos críticos mais radicais, que afirmam que o comunismo que existiu nada tem a ver com as suas versões do comunismo marxista-leninista ou do comunismo marxista, no fundo, com os seus próprios catecismos. Estes encontram-se numa situação mais delicada, no seu caso, porque ainda nenhuma realidade aferiu na prática o seu comunismo marxista-leninista ou o seu comunismo marxista, e, portanto, não dispõem de qualquer teoria aferida pela prática para servir de aferidor do que quer que seja. A crença na validade da sua teoria, por isso, é meramente do domínio da fé. Deste modo, ficam numa situação similar à dos ortodoxos quando julgam o comunismo que existiu. Com uma diferença: os ortodoxos, incorrendo numa contradição insanável, mas proveitosa, reclamam para seu crédito o bom do que o comunismo produziu; enquanto os radicais, igualmente sem disporem de qualquer instrumento válido para o fazerem, permitem-se rejeitar em bloco (ou aparentar rejeitar) o comunismo que existiu.

A prática, porque objecto real concreto, é o supremo critério da validade; ela, de facto, existe, e com base nela poderemos julgar a teoria; a teoria, objecto ideal, formal ou abstracto, fruto das representações mentais que construímos da realidade e que não tem qualquer existência real concreta fora do campo das ideias, não pode julgar a prática. Por esta razão fundamental, todos os julgamentos do comunismo que existiu feitos com base em hipotéticos erros e desvios em relação à teoria não têm qualquer validade. Pelo contrário, a derrocada do comunismo invalida a teoria em que se baseava, ou, pelo menos, induz a forte suspeita da sua invalidade. O comunismo que existiu, um objecto real concreto, só pode ser avaliado por outros objectos reais concretos do mesmo tipo, neste caso, pelo capitalismo que existe. Confrontando-os encontraremos diferenças, e eventualmente semelhanças, e consoante os nossos padrões de referência do que é bom, do que cada um deles nos proporciona e serve os nossos interesses éticos, morais, artísticos, económicos e políticos, com que definimos o critério da validade da prática social, poderemos julgar das causas que provocaram a derrocada do comunismo que existiu, assim como daquelas que permitem ao capitalismo ir existindo. Foi deste modo, aliás, que o comum das pessoas aferiu a validade do comunismo que existiu e o rejeitou, tanto aquelas que viviam nos países comunistas, como aquelas que eram seus adeptos vivendo noutros países.

A derrocada do comunismo confirma a invalidade da teoria que o suportava ou, pelo menos, induz-nos a forte suspeita da sua invalidade. Poderíamos ficar por aqui, e ponto final. Acontece, porém, que os comunistas, tanto os ortodoxos, como os radicais, continuam persuadidos, por crença pela fé, de que a sua teoria da revolução social é válida. Por este facto, convém questioná-la e demonstrar que é falsa, no sentido de inválida e não plausível, e fundamentar a sua refutação. Poderemos julgar a teoria do comunismo com outro objecto do mesmo tipo, por exemplo, a teoria do capitalismo? Poderíamos, se existisse uma teoria do capitalismo; como não há, porque o capitalismo é um modo de produção que se foi implantando pelas contingências da vida social e não foi produto de um acto revolucionário voluntarista fundado em qualquer projecto teórico idealista, resta-nos socorrermo-nos de outros objectos teóricos, esperando que eles sejam susceptíveis de identificar lacunas e erros na concepção da teoria do comunismo ou na sua interpretação. Para isto, nada melhor, para economia de esforço, do que submeter a teoria do comunismo ao crivo do método crítico.

4-A falácia da teoria marxista da revolução comunista proletária.

Julgo ser desnecessário discorrer sobre a predição idealista que afirma ser o comunismo o modo de produção que sucederá ao capitalismo. Refiro, apenas, que nada na História prenuncia que assim seja. A História permite-nos conhecer que uns modos de produção se foram sucedendo a outros, devido a múltiplas contingências que respondiam a necessidades objectivas. Por analogia, poderemos deduzir que o capitalismo há-de perecer e ser substituído por outro modo de produção, porque nada é eterno. Já quanto à predição de que o proletariado sucederá à burguesia na direcção da sociedade a História permite invalidá-la totalmente, nomeadamente, porque nunca a principal classe social explorada substituiu a sua classe exploradora. Um novo modo de produção tem novos protagonistas sociais, desempenhando novos papéis, e ainda que de início eles sejam oriundos dos anteriores protagonistas, porque não vieram de Marte, não é por isso que não são outros protagonistas. A predição do comunismo como necessário sucessor do capitalismo e a do proletariado como sucessor da burguesia constituem o que venho designando, desde há alguns anos, um axioma profético, uma verdade axiomática que não necessita de demonstração, totalmente idealista e do puro domínio da fé. Como já ouvi confessar alguém que respeito como investigador [1], e que apesar de crítico de algumas concepções do marxismo continua a afirmar-se comunista, a crença no comunismo, de facto, é uma questão de fé. Ora, estando a fé fora do campo da racionalidade, ela não é passível de qualquer questionamento racional.

Já a teoria marxista da revolução social, que se resume a um extenso parágrafo do prefácio da Contribuição para a crítica da economia política, resultante duma apreciação muito perspicaz de Marx acerca da forma como se processaria a transição entre modos de produção e ocorreria a revolução social, que os marxistas erigiram num dos fundamentos da sua teoria revolucionária do proletariado, pode ser objecto de crítica. Os conceitos-chave aí enunciados são os de “forças produtivas materiais”, de “relações de produção” (estrutura económica e superstrutura ideológica — jurídica, política, religiosa, artística e filosófica ou formas de consciência social da estrutura económica); e a evolução social resultaria da “contradição entre as forças produtivas materiais e as relações de produção”, da qual surgiria a “época de revolução social” em que as “relações de produção velhas” são substituídas por “relações de produção novas”, quando as condições materiais da sua existência se produzam no seio da velha sociedade.

O conceito mais ambíguo é o de “forças produtivas materiais”. Na sua crítica da economia política, Marx utilizou o conceito para significar os “meios de produção” e a “força de trabalho”; os marxistas, por seu lado, interpretaram-no como significando essencialmente os “meios de produção” e, mais modernamente, a “técnica” ou a “tecnologia” que utilizam. Ambas as concepções, tanto a de Marx como a dos marxistas, me parecem desajustadas, nomeadamente, porque os “meios de produção” e a “força de trabalho” são elementos constituintes das “forças produtivas”, mas estas só têm existência real concreta, no sentido de algo com capacidade produtiva, quando a “força de trabalho” se relaciona com os “meios de produção” para realizar efectivamente o processo produtivo. Os “meios de produção” e a “força de trabalho”, sem entrarem em relação, são elementos das “forças produtivas”, mas não são as “forças produtivas”. Se duas fábricas com diferente tecnologia instalada estiverem encerradas e, por esse facto, a “força de trabalho” não se relacionar com os “meios de produção” de que dispõem, uma das fábricas, por exemplo, dotada da tecnologia mais avançada, tem tanta capacidade produtiva social como a outra, dotada da tecnologia mais obsoleta, ou seja: nenhuma. E este relacionamento, por seu lado, processa-se sob relações sociais concretas, que organizam a sua reunião e os põem em interacção e que determinam a apropriação de parte do produto social.

Podemos conceder que Marx quereria significar com o conceito de “forças produtivas” a capacidade produtiva social, que ao atingir um determinado grau de desenvolvimento entraria em contradição com as “relações de produção” (cujo significado, para ele, é o de relações sociais de produção, que incluem as relações económicas, as relações ideológicas que as exprimem e as relações políticas que as regulam). Numa interpretação possível desta formulação, Marx atribuiria a existência das “forças produtivas”, ou capacidade produtiva social, a algo exterior às “relações de produção” (relações económicas, relações ideológicas e relações políticas), como se as “forças produtivas” resultassem do nada; numa outra, mais consentânea com o sentido das suas palavras, as “relações de produção” são designadas como sendo expressão das “forças produtivas” (“relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais”, como ele afirma no prefácio da Contribuição para a crítica da economia política). Qualquer que seja o sentido que atribuamos à relação estabelecida por Marx entre os conceitos “forças produtivas” e “relações de produção” ela é errada. Por um lado, as “forças produtivas”, sendo coisas, não são dotadas de capacidade autónoma de desenvolvimento; por outro, são as “forças produtivas materiais” existentes na sociedade, qualquer que seja o grau do seu desenvolvimento, que correspondem a determinados graus de desenvolvimento das “relações de produção”, e não o contrário. A relação estabelecida por Marx entre os conceitos “forças produtivas” e “relações de produção”, portanto, sofre de inconsistência, constituindo uma inversão da realidade.

Se seguíssemos à letra a interpretação de Marx de que as relações de produção correspondem a determinados graus de desenvolvimento das forças produtivas, sendo, portanto, aquelas dependentes destes ou sendo sua expressão, as relações de produção não poderiam entravar o desenvolvimento das forças produtivas, correspondendo as relações de produção existentes aos graus de desenvolvimento das forças produtivas. Mas se a corrigíssemos, fazendo depender o desenvolvimento das forças produtivas do desenvolvimento das relações de produção, não haveria entre elas qualquer contradição, já que o desenvolvimento das forças produtivas acompanharia o desenvolvimento das relações de produção. Por fim, se admitíssemos a não existência de qualquer relação de dependência entre as forças produtivas e as relações de produção elas não poderiam entrar em contradição. Qualquer que seja a interpretação que façamos da relação estabelecida por Marx entre as forças produtivas e as relações de produção dela não resulta nenhuma contradição que justifique a necessidade da revolução social. A causa da revolução social, portanto, não pode ser atribuída a uma suposta contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção.

A realidade social, contudo, é ainda um pouco mais complexa, porque, em geral, na sociedade não existe apenas um modo de produção, mas diversos, uns mais arcaicos, outros mais modernos, uns que poderão ser só resquícios, outro que domina a produção social e outros que procuram desenvolver-se, exprimindo-se cada um deles por um tipo diferente de relações de produção a que correspondem forças produtivas de diferente grau de desenvolvimento, formando no conjunto a diversidade das forças produtivas sociais. E o que caracteriza verdadeiramente as épocas de revolução social é o surgimento em cena de um novo modo de produção, com relações de produção próprias, revelando maior capacidade para desenvolver as forças produtivas, mas chocando-se com os entraves que as concepções ideológicas e políticas dominantes colocam à sua expansão e aperfeiçoamento. São esses entraves que espoletam as revoluções políticas, cujo objectivo é a sua resolução e a criação de condições ideológicas e políticas favoráveis à expansão e ao aperfeiçoamento das novas relações de produção.

A capacidade produtiva da sociedade, ou as suas forças produtivas, é função não só do tipo dos meios de produção, que poderemos designar simplificadamente por tecnologia disponível, mas, fundamentalmente, do tipo das relações de produção que presidem ao relacionamento dos meios de produção com a força de trabalho no processo produtivo [2]. De facto, ainda que usando a tecnologia disponível numa determinada época, o estabelecimento de novas relações de produção, ampliando e intensificando a produção pelo aproveitamento em maior escala dos meios de produção e da força de trabalho disponíveis, aumenta a capacidade produtiva social. Como, por outro lado, as novas relações de produção têm expressão em novas concepções ideológicas que visam o aumento da produção e da parte apropriada do produto, se estes desideratos forem entravados pela tecnologia existente os detentores dos meios de produção tudo farão para desenvolver a tecnologia, dentro das possibilidades permitidas pelo nível de desenvolvimento da ciência e pelos recursos disponíveis. Antes, porém, que o desenvolvimento tecnológico seja a solução para o desenvolvimento da capacidade produtiva social ou das forças produtivas — porque ele não é produto do mero desejo, mas está dependente do desenvolvimento da ciência e, depois, das técnicas — a classe social dirigente das novas relações de produção tratará de utilizar até ao limite as forças produtivas disponíveis, isto é, os meios de produção e a força de trabalho de facto existentes ou que se vão formando na sociedade.

O desenvolvimento substancial da capacidade produtiva social ocorre quando o processo produtivo passa a ser realizado sob a forma de novas relações de produção, não porque utilize ou necessite de técnicas muito diferentes, mas porque a nova forma social de que se revestem as relações de produção, por si só, promovendo o melhor aproveitamento das forças produtivas disponíveis, permite ampliar a produção e a parte apropriada do produto. As novas relações de produção emergem e coexistem com as relações produção até então dominantes, e desenvolvem-se na medida da maior eficácia produtiva social que revelarem. Para se desenvolverem, expandindo-se e aperfeiçoando-se, e com isso desenvolverem ainda mais a capacidade produtiva social, as novas relações de produção encontram entraves de toda a ordem nas concepções ideológicas e políticas dominantes, correspondentes às velhas relações de produção, e as suas concepções ideológicas e políticas entram em contradição com elas.

O que em determinado grau do desenvolvimento da capacidade produtiva social entrava o seu maior desenvolvimento não é a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, como afirmou Marx, mas a contradição entre diferentes tipos de relações de produção, ou, melhor, entre os interesses económicos e as concepções ideológicas e políticas das suas classes dirigentes. Enquanto a classe social dirigente das velhas relações de produção exerce o domínio ideológico e político, a classe social dirigente das novas relações de produção aspira a conquistar esse domínio ideológico e político. Para que tal aconteça, não só as novas relações de produção têm de existir de facto na sociedade como a sua classe dirigente tem de se ver confrontada com as dificuldades que as concepções ideológicas e políticas dominantes colocam às suas pretensões de desenvolvimento da capacidade produtiva social [3]. Este conflito de interesses económicos e de concepções ideológicas e políticas entre classes sociais dirigentes de tipos distintos de relações de produção é o que tem estado presente nas épocas de revolução social ao longo da História, e a sua resolução, por isso, tem assumido a forma de revoluções ideológicas e políticas.

Tomando como exemplo o modo de produção capitalista, verifica-se que a nova relação de produção salarial que lhe corresponde emergiu com expressão económica na sociedade ainda na presença da relação de produção tributária, e que o processo produtivo se desenrolou, sob aquela nova relação de produção, na mesma base técnica da relação de produção então dominante. Enquanto a relação de produção tributária foi definhando, por ter esgotado as suas potencialidades de desenvolvimento da capacidade produtiva social, a relação de produção salarial foi-se expandindo e desenvolvendo a capacidade produtiva social, devido à superior eficácia no aproveitamento dos meios de produção e da força de trabalho disponíveis na sociedade. O domínio ideológico e político, contudo, ainda continuava a ser a expressão da relação de produção tributária, o que provocava toda a sorte de entraves à expansão do capitalismo. Para ultrapassar esses entraves, à classe social dirigente desta relação de produção nova, a burguesia, não restou outro remédio se não lutar pelos seus interesses e ir conquistando fatias cada vez maiores do poder político, ainda que com as representações sociais mais díspares do que eram esses interesses e das formas de como lutar por eles, nomeadamente, porque os actores sociais, ou os seus ideólogos, não têm consciência clara nem plena de toda a complexidade da realidade social em que existem enquanto actores. De qualquer modo, este período de revolução social foi longo, tal como os que o antecederam e como os que lhe sucederão, porque a revolução social é um processo longo de transformação da estrutura económica da sociedade e de adequação da superstrutura ideológica e política, de modo a possibilitar o desenvolvimento da capacidade produtiva social.<

A inconsistência da concepção de Marx acerca da revolução social desaparece se atribuirmos o desenvolvimento das forças produtivas a um tipo novo de relações de produção que emirja e coexista com as relações de produção até então dominantes. A partir de determinada altura, o desenvolvimento das forças produtivas sob o novo tipo de relações de produção é entravado pelo domínio que as concepções ideológicas e políticas correspondentes ao velho tipo de relações de produção ainda exercem na sociedade. Este conflito transparece como contradição de interesses económicos e de concepções ideológicas e políticas entre as classes sociais dirigentes dos tipos de relações de produção existentes na sociedade, traduzindo-se por lutas diversificadas entre elas, e exige solução ao nível do domínio ideológico e político da sociedade. A realidade histórica confirma que a época de revolução social, portanto, começa, paulatinamente, com a revolução económica provocada pelo nascimento de um novo modo de produção, ou pelo desenvolvimento de um já existente, mas dominado, e culmina com a revolução ideológica e política tendente a resolver os entraves que o domínio ideológico e político do modo de produção antigo coloca ao desenvolvimento do novo modo de produção, ou ao desenvolvimento das forças produtivas que são a sua expressão material.

Ao pretenderem resolver a inconsistência da concepção de Marx acerca da revolução social, clarificando o conceito forças produtivas como significando a base económica da sociedade e identificando a revolução social como a resolução da contradição entre a base económica e a superstrutura ideológica e política, os marxistas apenas tornaram mais clara aquela inconsistência. Com esta interpretação, apresentam a revolução social como instrumento de resolução de um suposto conflito entre a base económica e a sua própria expressão ideológica e política, o que é um completo contra-senso que não tem qualquer correspondência com a realidade. Era, porém, a interpretação possível para evitar a rejeição da tese de Marx, e era também a forma de apresentar a revolução comunista proletária como correspondendo à resolução de uma qualquer contradição social, neste caso, a contradição entre as forças produtivas capitalistas e as relações de produção capitalistas! Nesta perspectiva, o comunismo justificar-se-ia para resolver a estupidez do capitalismo, que entrava o desenvolvimento das suas próprias forças produtivas, e a solução seria o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas! Que uma tal tese tenha persistido e sido aceite como conhecimento durante tanto tempo só pode ser atribuído ao carácter idealista da utopia comunista marxista, à passividade com que os adeptos aceitam esse idealismo e à ilusão apologética em que preferem existir.

Os comunistas apresentam também duas outras fundamentações, de uma completa ingenuidade, para justificarem a necessidade da revolução comunista: uma, a contradição entre o carácter social da produção e a apropriação privada de parte do produto; a outra, a contradição entre a organização e a planificação dos processos produtivos imediatos privados, de um lado, e a anarquia da produção social, do outro. Como o processo produtivo no capitalismo se desenrola sob formas de trabalho cada vez mais colectivas ou sociais, devido à crescente divisão do trabalho, exigindo uma muito maior cooperação dos trabalhadores — o que constitui uma das características que contribuíram para a sua maior eficácia produtiva em relação à produção artesanal do modo de produção tributário, que recorria a processos de trabalho pouco divididos ou até unitários — Marx e os comunistas apontam esta característica como constituindo uma contradição com a apropriação privada de parte do produto social. Acontece que o carácter cada vez mais colectivo da produção também tem a sua correspondência na forma cada vez mais colectiva de apropriação privada de parte do produto social, que já não é predominantemente individual, mas se efectiva por grupos cada vez mais numerosos de capitalistas, através das sociedades por quotas, das sociedades por acções e de outras formas de centralização do capital. Por outro lado, a organização e a planificação dos processos produtivos imediatos — constituindo um dos modos de minimizar o desperdício e de optimizar a eficiência produtiva, e assim de aumentar a lucratividade particular e, através dela, a lucratividade social — e a anarquia da produção — correspondente ao desenvolvimento do mercado que possibilita a satisfação da diversidade e da imprevisibilidade das necessidades sociais — e que no conjunto constituem os instrumentos para efectivação da eficácia na satisfação das necessidades sociais que permanentemente incentiva, não corresponderiam a características do capitalismo, mas a uma sua contradição. A partir destas fundamentações, no intuito de resolverem as supostas contradições, apontam como objectivos da sua revolução a instituição da propriedade social dos meios de produção e a planificação centralizada da produção social.

O modo de produção comunista não se sabe bem o que seja, porque não tem existência real na sociedade actual, na qual o único que se conhece existir é o modo de produção capitalista. E o que se ficou conhecendo da relação de produção comunista foi precisamente o salariato, similar à relação de produção existente sob o capitalismo e até mais coerciva do que ela, e as concepções ideológicas e políticas comunistas quanto à propriedade dos meios de produção, concebida como propriedade social, referida à forma jurídica, não passaram, de resto, da propriedade privada de um grupo social restrito, o partido comunista e os seus membros, mediada pelo Estado, e, portanto, de uma variante da propriedade privada típica do capitalismo. A dita propriedade social dos meios de produção, conjugada com o salariato, não constituiu qualquer relação de produção verdadeiramente nova, nem evidenciou maior potencialidade de desenvolvimento da capacidade produtiva social, nem maior eficácia social. A teoria marxista da revolução social e a proclamação profética do comunismo suceder ao capitalismo, portanto, não devem nada à História. Estão ambas, aliás, em total desacordo com a História, e a sua justificação só pode ser encontrada nas cartas.

Não existindo na sociedade novas relações de produção comunistas ansiando expandirem-se para desenvolverem a capacidade produtiva social chocando-se com os entraves que a dominação ideológica e política capitalista lhes coloque, não existem, igualmente, protagonistas novos para a revolução social. Não correspondendo à necessidade de resolução de qualquer contradição, a revolução comunista só pode assentar no voluntarismo insurreccional, produto de um acto da vontade para a tomada de assalto do poder político, não para remover quaisquer entraves ao desenvolvimento da capacidade produtiva social, mas para acabar com a injustiça da exploração de que é alvo a classe dominada do “velho” modo de produção capitalista. Não tendo por base novas relações de produção, nem novos protagonistas, a revolução comunista resume-se à pura ilusão idealista de almejar acabar com a exploração do proletariado através da socialização da propriedade dos meios de produção, sob a forma de propriedade estatal e, deste modo, do partido comunista e dos seus membros. Como o comunismo que existiu demonstrou, nem isso ela conseguiu.

A utopia comunista proletária marxista não encontra na História qualquer fundamento que a valide, e a revolução comunista proletária também não corresponde a qualquer necessidade histórica de resolução de uma hipotética contradição entre as relações de produção comunistas, que além do mais nem sequer existem, e as concepções ideológicas e políticas capitalistas. Pretendendo corresponder à resolução de uma absurda contradição, que o marxismo imaginou existir, entre o “desenvolvimento das forças produtivas” e as “relações de produção” capitalistas, ela funda-se, afinal, na revolta exaltada e apaixonada contra a exploração de que é alvo o proletariado [4], contra a série de injustiças e de iniquidades geradas pelo capitalismo, e assemelha-se a outras utopias e a outras revoltas operárias do passado, quando a fase industrial e fabril do capitalismo dava os seus primeiros passos e transformava radicalmente as formas de produzir e de viver. Como o comunismo que existiu demonstrou, a utopia comunista proletária marxista não correspondeu a qualquer necessidade histórica de ultrapassagem do capitalismo, nem constituiu qualquer progresso social assinalável em relação àquele. Apesar de tudo, as revoluções comunistas proletárias desempenharam uma função histórica sem paralelo, trazendo para a modernidade capitalista vários países atrasados no desenvolvimento social, realizando em muitos deles uma acumulação sem precedentes em tão curto prazo, obra da abnegação dos muitos milhões de trabalhadores que por elas se sacrificaram.

A experiência prática do comunismo, em termos humanos, foi uma tragédia, nomeadamente, para os muitos milhões que pereceram num tão curto período histórico sob o seu despotismo totalitário. Para muitos outros que a viveram, acreditando que realizavam uma utopia ímpar, permanentemente proclamada, mas continuamente adiada, mesmo assim constituiu a concretização do sonho das suas vidas, a que o comunismo concedeu a dignidade. Para os das gerações mais novas, que já não dispunham da memória do que fora a autocracia feudal nem das condições miseráveis da existência que ela possibilitava e puderam ir constatando a diferença entre o desenvolvimento económico proporcionado pelo comunismo e o proporcionado pelo capitalismo, foi talvez um sonho mau, do qual acordaram sem vontade de o suportar por mais tempo. A desorganização que se seguiu à derrocada deixou muitos outros perplexos e desiludidos, porque afinal o Estado os abandonava à sua sorte e o próprio capitalismo desenvolvido parecia esquecer-se deles. Surpreendentemente, hoje, os adeptos comunistas encontram-se em maior número entre aqueles que nunca o experimentaram, para os quais o sonho mau é a queda do comunismo. Persistindo os comunistas na mesma interpretação errada acerca da génese da revolução social, e continuando a resumir as “relações de produção comunistas” à socialização dos meios de produção, o comunismo a que ainda aspiram, a concretizar-se, não poderia ser coisa diferente do que foi. Ainda que a História não se repita, se o comunismo que existiu constituiu uma tragédia, um novo comunismo só poderia resultar numa farsa.

A crença na utopia comunista proletária marxista nada tem a ver com o conhecimento da realidade empírica. Como muitas outras crenças, trata-se de uma questão de fé, cujo objectivo é transformar um Mundo iníquo num outro de abundância, de liberdade, de igualdade e de fraternidade universal, aspirando até à criação de um Homem novo. Não surpreende, por isso, a grande similitude que esta utopia comunista proletária, como outras, apresenta com o puritanismo cristão na sua explicação do Mundo e do sentido para a vida, nos seus propósitos de promoção da harmonia universal, na sua singular orientação ecuménica, na sua pregação a favor dos pobres e dos desfavorecidos, nos seus valores de fraternidade e de amor ao próximo, na sua intenção de produzir um Homem novo, no ascetismo e no exemplo virtuoso recomendado para os seus membros, na sua organização em igrejas e em seitas e no fanatismo manifestado pelos seus militantes mais fervorosos. Apesar das diferenças, o comunismo constitui como que a versão profana daquela religião sagrada, baseando-se numa organização totalitária da vida social. Um dirigente comunista de certa nomeada [5] disse-me um dia que o cristianismo era o principal inimigo do comunismo, porque disputavam o mesmo universo. Passado algum tempo, compreendi o alcance e a inteira justeza da sua afirmação.

Na sociedade actual, devido ao impulso que nela teve a produção de conhecimento e a sua aplicação no desenvolvimento de novas tecnologias e de novos produtos, a informação resultante do conhecimento aparece como produto de grandes potencialidades futuras, hoje apenas imagináveis. Em torno da produção de conhecimento e da sua transformação em informação despontam novas formas de produção, ainda incipientes, nalgumas das quais os produtores associados são simultaneamente produtores e proprietários do que produzem. Poderemos apenas especular se o imprevisível futuro virá a confirmar como novo tipo de relação de produção dominante alguma das que já emergem na sociedade confundindo-se com a relação de produção capitalista. Se for o caso, é previsível que nada tenha a ver com os fundamentos da utopia comunista, e que o seu desenvolvimento não será fruto da revolução proletária. De qualquer modo, uma coisa é certa: a nova revolução social não irá ter como protagonista o proletariado do modo de produção capitalista, ainda que ele, como os explorados de todas as épocas, seja um dos beneficiários da revolução.

Almada, Julho de 2005.

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NOTAS:

[1] Refiro-me a João Bernardo, um investigador português que há mais de trinta anos vem desenvolvendo uma análise crítica heterodoxa do marxismo. Ouvi o desabafo no decurso de um colóquio sobre o maoismo realizado em 1995, organizado pela Biblioteca-Museu da República e da Resistência.

[2] As “relações de produção” designam a forma de organização do trabalho ou do processo produtivo e a forma de repartição do produto social ou de apropriação duma parte desse produto, quer ao nível dos processos produtivos privados, quer ao nível da sociedade.

[3] Na sua crítica da economia política, Marx não considerou a existência da troca desigual. Talvez por isso, não pôde compreender o meio através do qual o modo de produção capitalista pôde emergir e desenvolver-se, e, depois, desenvolver-se desigualmente nas diversas formações sociais. Toda a sua argumentação acerca da emergência do capitalismo parte de factos sem causa económica fundamentada — a criação de força de trabalho livre por expropriação do campesinato (independente e servil) e a acumulação primitiva pelo esbulho e pela pilhagem dos povos coloniais — como se eles se devessem a manifestações de maldade intrínseca, absolutamente necessária para a emergência de uma nova classe social, e não constituíssem formas objectivas criadas pela necessidade de escoamento e, depois, de aumento da produção social, que acabariam por conduzir ao declínio do velho modo de produção; e o seu desenvolvimento, após a acumulação primitiva, é concebido como provindo exclusivamente da acumulação oriunda da exploração dos trabalhadores assalariados.
Mas também acerca da exploração ele não produziu muito mais do que alguns economistas clássicos. Até a sua concepção da origem do lucro como mais-valia é errada; o lucro não representa qualquer valor produzido pela suposta mercadoria força de trabalho acima dum seu suposto valor, o que constituiria um paradoxo, mas é tão só o resultado duma troca desigual de trabalho entre o trabalhador assalariado e o proprietário capitalista: a diferença entre o trabalho fornecido pelo trabalhador e o menor trabalho por ele recebido como pagamento. O que acaba por distingui-lo, nesta questão, é ter fundado o fim do capitalismo na incapacidade da burguesia para continuar a extrair a suposta mais-valia na quantidade necessária para a manutenção da taxa de lucro, o que, no seu entender, acabaria por conduzir ao pauperismo do proletariado e, inevitavelmente, à revolução comunista.
Esta concepção da inevitabilidade da revolução proletária comunista perante a impossibilidade da exploração rentável dos trabalhadores assalariados pela burguesia constitui a assunção de que para Marx a revolução social ocorre essencialmente na superstrutura política. Tal como já havia fundado a emergência do capitalismo na revolução política — que teria promovido a expropriação do campesinato servil e independente e produzido o aparecimento da força de trabalho livre — Marx não concebe o processo da revolução social a iniciar-se na estrutura económica da sociedade, através da emergência de um novo modo de produção, ou do desenvolvimento de um já existente, que aproveita a capacidade de produzir trabalho desperdiçada, porque disponibilizada da produção, e se desenvolve pela realização de trocas desiguais com a classe social que explora e com a classe social dirigente do velho modo de produção.
Na perspectiva marxista, a determinação necessária da transformação social seriam as lutas das classes, nomeadamente, as lutas pelo poder político entre a classe exploradora e a classe explorada de um determinado modo de produção. Esta constitui outra concepção errada de Marx. Para que as classes se constituam é necessário que já existam desempenhando uma função concreta na estrutura económica da sociedade os indivíduos que as integrarão; para isso foi necessário a ocorrência de uma revolução na estrutura económica da sociedade e a implantação de novas relações de produção. Só depois de novas relações de produção atingirem expressão económica com algum relevo, e dos indivíduos que as protagonizam terem adquirido consciência dos seus interesses colectivos, constituindo-se em classe social, existem as condições para serem desencadeadas as lutas das classes em que os indivíduos se agrupam. As lutas das classes, portanto, nas suas múltiplas formas e na diversidade de protagonistas, constituem uma realidade enquanto disputas pelo aumento do produto social e pela apropriação de parte dele; elas manifestam-se em todos os campos da vida social, seja no campo económico, seja no campo ideológico e político, e envolvem lutas entre classes exploradoras e classes exploradas, assim como lutas entre diversas classes exploradoras ou entre suas fracções; não se restringem às lutas políticas e, muito menos, às lutas entre uma classe explorada e a classe que a explora. As lutas das classes concebidas pelo marxismo apenas como lutas pelo poder político entre a classe dos explorados e a dos exploradores não exprimem o que ocorre como determinante na sociedade e, por isso, não podem constituir o factor genético da revolução social.
A emergência de um novo modo de produção ocorre na estrutura económica da sociedade pelo aproveitamento da capacidade produtiva entretanto disponibilizada pelo modo de produção dominante, que já não consegue utilizá-la como dantes, através da instauração e do desenvolvimento de relações de produção que se mostrem socialmente mais eficazes, baseadas noutras formas sociais de organizar o trabalho e a produção social e de repartir o produto. Neste sentido, a revolução social começa com a revolução económica, através das lutas entre uma classe exploradora existente e uma classe exploradora emergente, disputando o desenvolvimento da produção e a apropriação de parte do produto social, e prolonga-se com a revolução ideológica e política que consolida o domínio económico de uma nova classe social emergente; pelo meio desenrolam-se outras lutas, neste caso entre explorados e exploradores, que fundamentalmente determinam as proporções da repartição do produto social.
A troca desigual não faz parte das concepções de Marx acerca do desenvolvimento económico-social. A sua concepção da exploração reduz-se ao aproveitamento duma suposta utilidade da força de trabalho para “criar” um hipotético valor suplementar além daquele que constituiria o seu próprio valor. Está assim longe do que o lucro é de facto: a diferença entre o trabalho que o trabalhador fornece e o menor trabalho que recebe como pagamento. Por outro lado, na perspectiva marxista, as lutas das classes restringem-se às lutas entre explorados e exploradores, e a revolução social restringe-se à revolução política, através da revolta do proletariado organizado em classe revolucionária. Nenhum outro modo de produção poderia suceder ao capitalismo, aproveitando o trabalho que vai sendo disponibilizado na sociedade, a não ser o comunismo. Com a apropriação das forças produtivas desenvolvidas pela burguesia, que seria delas expropriada, o proletariado transformava-se no explorador de si próprio, terminando com a exploração. Como é sabido, este guião já foi transposto para filme, o qual já passou em estreia e não deixou saudades que justifiquem a sua reposição.

[4] Até a teorização marxista da exploração não assenta em qualquer iniquidade ou trapaça resultante da troca desigual entre capitalistas e trabalhadores assalariados, mas é tão só devida à circunstância “natural” de o trabalhador vender uma suposta mercadoria (a força de trabalho) cuja utilidade seria produzir mais valor do que aquele que contém, de que o capitalista, como seu comprador, “naturalmente”, se aproveitaria. A concepção marxista do valor das mercadorias, portanto, baseia-se numa suposta utilidade, o trabalho vivo, duma suposta mercadoria, a força de trabalho, e não no custo da sua produção; e o valor apropriado pelos capitalistas constituiria o valor a mais que a suposta utilidade da força de trabalho criaria, constituindo um valor suplementar para além do que teria sido necessário para produzir a força de trabalho. Só por artes mágicas, de facto, uma quantidade de alguma coisa poderia transformar-se numa quantidade maior, no caso, uma determinada quantidade de capacidade de produzir trabalho, de força de trabalho ou de trabalho potencial, poderia produzir mais trabalho efectivo do que aquele que conteria como trabalho potencial. Ao designar a força de trabalho como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador, pode-se dizer que Marx resolveu as contradições e os impasses dos economistas clássicos com um passe de magia!

[5] Diógenes de Arruda Câmara, dirigente do Partido Comunista do Brasil, entretanto falecido, e que durante parte do seu exílio europeu, após o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 que derrubou a ditadura fascista em Portugal, actuou como conselheiro junto da direcção do PCP(R), um pequeno partido comunista de orientação albanesa.

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Descriminalização do aborto


O texto que se segue está datado. Infelizmente, nos seus fundamentos permanece ainda actual, razão por que o publico. Enviado, na altura, para o jornal Público, com o pedido de publicação, não foi aceite. De então para cá, a situação alterou-se um pouco: a maior visibilidade social do aborto fez com que mulheres que o praticaram fossem levadas a tribunal, tendo sido ilibadas umas, condenadas outras, obrigando os juízes a fazerem interpretações folgadas da legislação em vigor para que não fossem sujeitas a penas de prisão efectiva; a pílula abortiva é já uma realidade e a pílula contraceptiva de emergência foi introduzida no mercado em regime de venda livre.

Apareceram na imprensa ou noutros meios de comunicação, entretanto, duas ou três reflexões muito interessantes sobre o assunto. O mais importante, contudo, foi a cínica rejeição sistemática de resolução da questão através da iniciativa legislativa parlamentar, com o argumento de que havia que respeitar o resultado do referendo, para mais, tratando-se de um referendo que pela insuficiente votação, para além do escasso resultado, não era vinculativo, não obrigando a ninguém. Pelo meio, situações hilariantes, por surrealistas, em que excelsos parlamentares surgiram a defender a manutenção da criminalização e, simultaneamente, a não aplicação da lei por parte dos juízes. Mais uma vez, o PCP se destacou, defendendo a única posição correcta sobre o assunto, batendo-se para que o Parlamento usasse legitimamente do poder que dispõe para a resolução duma situação arcaica e degradante.

Aprovada que foi a realização dum novo referendo — com o voto contra do PCP, num erro táctico totalmente desnecessário — assistimos a uma situação caricata: a do Ministro da Saúde a defender a descriminalização do aborto, não na qualidade de cidadão, mas na de Ministro, e a confirmar a realização dos abortos voluntários — que podendo ser actos médicos não são propriamente cuidados de saúde inevitáveis — através do serviço nacional de saúde, quando tem andado a cortar despesas e a eliminar serviços indispensáveis, piorando as condições de assistência a velhos e a doentes em regiões carenciadas.

Esperemos que desta vez a campanha de esclarecimento consiga mobilizar para a participação referendária — porque é disso que se trata e não do esclarecimento do óbvio, nem da discussão da ética ou da moral — uma população displicente, de entre a qual a maioria das mulheres, que constituem o grosso dos que têm direito a voto e a quem o assunto deveria interessar directamente, se está borrifando para que a lei mude ou fique na mesma, seja porque a lei da vida já lhe levou a possibilidade de emprenhar, seja porque uma primeira mezinha cómoda e eficaz se encontra acessível no mercado, na farmácia do bairro, seja ainda porque não está para sacrificar um Domingo de lazer ao incómodo duma votação.

Conviria que os opositores do aborto, para bem da sua sanidade mental, usassem como argumentação coisas simples e claras — como sejam as consequências físicas e psicológicas que poderão advir para a mulher pelo recurso ao aborto como método de planeamento familiar e os perigos acrescidos que a sua banalização e repetição poderão acarretar — que lhes dão todo o direito de rejeitarem o aborto e de tentarem persuadir as mulheres para a sua não realização, em vez de continuarem a persistir na mais falaciosa fé religiosa e em arcaicas concepções sobre o momento em que o embrião se transforma em feto e em ser humano. Só lhes ficaria bem deixarem de pretender alcançar os seus legítimos objectivos através da criminalização e da repressão penal de quem o praticar. Ao menos, poderiam conceder às mulheres o direito de decidirem, tentando atingir os seus objectivos pelo conselho e pela persuasão. E, se não conseguissem demovê-las, deveriam comportar-se como bons cristãos, perdoando-lhes. Insistirem em pretender castigá-las conduz ao mal maior do aborto clandestino e constitui um duplo pecado, que o seu Deus dificilmente lhes perdoará.

A bênção da sensatez nos agracie a todos.



DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO:
ENTRE FÉ E RACIONALIDADE A FRONTEIRA DA LIBERDADE



José Manuel Correia



O recente referendo sobre o aborto trouxe ao de cima uma série de questões interessantes, merecedoras de reflexão, sobre as representações que os portugueses, meros cidadãos ou políticos, têm da política num campo em que interesses de grupo se confundem com as crenças culturais.

Durante a campanha, ficou claro que para os partidários da opção “não” do referendo estava em causa não uma mera despenalização do aborto até às dez semanas, antes se traduzia na sua liberalização até àquele prazo, tratando-se neste caso de uma verdadeira descriminalização e da aquisição de um direito. Sendo contra o aborto, localizaram a sua argumentação no campo dos princípios, da ética, e transformaram a campanha do “não” numa campanha contra o aborto, mesmo o aborto nalgumas das situações já admitidas pela legislação actualmente em vigor (ressalvando apenas o aborto em caso de perigo de vida para a mulher grávida). “Em defesa da vida”, lema de que comungavam os vários movimentos cívicos dos partidários do “não”, traduz com clareza o que para eles estava em jogo.

Ficou também claro que para os partidários da opção “sim” do referendo estaria em causa essencialmente despenalizar, para eliminar um problema de saúde pública (as sequelas de abortos mal sucedidos) e acabar com a prática do aborto remetida à clandestinidade (que embora de impossível contabilidade teria a sua gravidade reflectida nos milhares de casos de abortos mal sucedidos atendidos nos estabelecimentos públicos de saúde). Estes acabaram, assim, por localizar a sua argumentação no mesmíssimo campo em que Álvaro Cunhal o fez há cinquenta anos atrás, quando o tomou como tema de uma tese académica — um mero problema de saúde pública, eventualmente grave. Afirmando-se, em geral, também contrários ao aborto, mas admitindo-o como último recurso e um mal menor para evitar o nascimento de filhos não desejados, principalmente, por quem não os poderia sustentar dignamente, a designação que adoptaram — “sim, pela tolerância” — espelha bem o campo do compromisso da sua opção.

Aos argumentos dos partidários do “sim”, os partidários do “não” responderam sempre com alternativas (viáveis umas, ilusórias outras). Dizendo compreender e perdoar as mulheres que abortavam, afirmavam não poder despenalizar o seu acto, mesmo se a inacção policial e judicial corrente, reflectindo a tolerância social à prática do aborto, se traduzem numa efectiva despenalização. Um pouco paradoxalmente, os partidários do “sim” afirmaram-se contrários à prática do aborto (aparentemente, só o defenderiam para os outros...), e os partidários de cada uma das opções mostraram concordância quanto à necessidade da educação sexual dos jovens e do planeamento familiar gratuito — os do “não” para evitar o aborto, os do “sim” para evitar a necessidade de recurso ao aborto como método de planeamento (!) familiar.

Para além de alguns excessos de linguagem ou de fundamentalismo intolerante, este mais por parte de membros do clero católico, algumas das correntes dos partidários do “não”, até então contrárias à mera contracepção (e é conhecida a oposição da hierarquia católica mais conservadora e dos seus seguidores ao uso do vulgar preservativo), declararam agora aceitá-la. Esperemos que a novidade não tenha sido um mero expediente oportunista ou que não se resuma à hipocrisia da reafirmação das prescrições tradicionais: abstinência, coito interrompido ou o coquetail temperatura corporal+boa dose de fé+q.b. de resignação.

Interessantes foram também as posições expressas por alguns técnicos (biólogos, médicos, farmacêuticos, juristas) e políticos da nossa praça acerca do que estaria em causa no referendo. Invocando as dificuldades da ciência para classificar o embrião de oito semanas, tudo se resumiria a um problema de consciência pessoal do domínio do foro íntimo de cada um, que a uns legitimava a opção pelo “não” e a outros a opção pelo “sim”. Confundindo liberdade com o seu exercício, escolheram o facilitismo oportunista para ficarem bem consigo próprios e com os outros. Mas pode um crime, se disso se tratar, ser uma questão de consciência pessoal?

Por fim, de entre os argumentos marginais, ouviram-se algumas vozes, indignadas, que se escudavam na atribuição exclusivamente à mulher da decisão sobre o aborto para legitimarem a sua opção pelo “não”, enquanto outras afirmavam, desinteressadas, não compreender porque eram os homens chamados a pronunciarem-se sobre uma questão que respeitava exclusivamente às mulheres. Estas indignações e perplexidades contraditórias sobre o que poderia parecer uma questão menor espelhavam o que era talvez o cerne da questão — a liberdade da mulher decidir sobre o seu próprio corpo e sobre a sua capacidade singular para a gestação. Apesar de só as mulheres engravidarem, enquanto uns parecem pacificamente reconhecer-lhe essa singularidade e o direito de dispor dela, outros persistem em negar-lhos, como se a condição de parceiro na cópula e na fecundação dela resultante permitisse ao homem invocar direitos quanto à gestação!

Deve o aborto até às dez semanas de gravidez, praticado sobre um embrião que em termos médios terá oito semanas de gestação, ser considerado crime ou direito? Esta a questão que se decidia no referendo, independentemente dos matizes dos argumentos invocados pelos partidários das diferentes opções. Que é um embrião com oito semanas de gestação? Um ser humano, como o consideravam os partidários do “não”, ou apenas um ser vivo a caminho de se tornar num ser humano? A esta questão os partidários do “sim” apenas responderam com evasivas, quando era ela que permitiria clarificar o debate e ajudar a decidir com a razão. Em que critérios nos devemos basear para classificar aquele ser, em grande parte com formas humanas, como invocaram também os partidários do “não”? Na crença, pela fé, de que é já um ser humano, ou pela razão, que por analogia nos permite desligar as máquinas que mantêm vivo na sala de um hospital um corpo humano no qual o tronco cerebral deixou de funcionar? A razão, escudada na ciência, diz-nos que a vida ou a morte do tronco cerebral decide a vida ou a morte dos seres humanos (embora não dos corpos humanos), por muita dor que nos cause, por muita esperança que tenhamos na fé que professamos. O que decide a existência de um ser humano é não só a actividade eléctrica do tronco cerebral, mas a sua capacidade para regular as funções vitais. Não pode haver duplicidade de critérios para decidir da morte ou da vida de um ser humano, e a ciência permite afirmar com segurança que com oito semanas de gestação um embrião humano ainda não é um ser humano.

Se este embrião sobre o qual se exerce o aborto ainda não é um ser humano não deve ser-lhe conferida qualquer protecção jurídica, e o aborto até às dez semanas só pode ser considerado um direito da mulher grávida, não um crime. Os partidários do “não” compreenderam perfeitamente que era a conquista deste direito que se jogava no referendo. Alguns esforçaram-se denodadamente por equiparar o embrião de oito semanas, e de menos, a um ser humano, e por reclamar para ele a protecção jurídica (por isso, sempre lhe chamaram bebé). Não custa admitir que muitos de entre estes o tenham feito com profunda e genuína convicção de que a variabilidade do ritmo do desenvolvimento contínuo do embrião não permite à ciência classificá-lo com precisão, em cada caso, senão por meios sofisticados, custosos ou que poderão acarretar perigo para o próprio embrião — embora, para aumentar a segurança e conquistar o apoio dos mais cépticos ou enduvidados, o promotor da lei tenha baixado o limite máximo do prazo geralmente admitido (as doze semanas de gravidez). Mas argumentos confundindo vida humana, que existe em qualquer célula humana e, obviamente, no ovo e no embrião de oito semanas que a partir dele se desenvolveu, com vida de um ser humano são produto da ignorância ou de crenças mágico-religiosas que engrossam o caldo cultural. Talvez por reconhecerem o excesso, outros partidários do “não” optaram por se referir ao embrião apenas como forma de vida humana, mas nem por isso deixaram de reclamar para ele a mesma protecção jurídica concedida ao ser humano, crentes na vida como dádiva divina de um qualquer Deus que vedaria ao homem destruir o que ele criara. Só que para escaparem a umas contradições acabavam por cair noutras ainda mais radicais, que os levariam, em coerência, a rejeitar o aborto em quaisquer situações, ónus que não quiseram assumir.

São essas mesmas crenças mágico-religiosas que estão na base da rejeição da contracepção, entendida como ilegítima interposição humana, que perverte a sagrada função procriativa da sexualidade em profanos prazeres carnais, e na do paradoxo da atribuição à mulher da culpa do pecado original da procriação (a tal ponto que para mãe de um dos seus deuses mais humanos tiveram de encontrar uma virgem imaculada, que concebera sem pecado). E são nelas também que parecem escudar-se os que recusam aceitar a necessidade de outros instrumentos para lidarmos com uma realidade social mais complexa — em que a maturidade sexual cada vez mais precoce, concomitante com uma mais tardia maturidade psíquica, e a crescente justificação da existência pela realização do desejo pessoal através do consumo fazem com que a sexualidade seja vivida de forma mais despreconceituosa e, quiçá, mais banal — de onde resultam muitas gravidezes indesejadas, que não são fruto apenas da falta de educação sexual. Daí que por detrás da sua oposição ao aborto estejam também outras inquietações sociais, atribuídas ao que designam por degradação dos costumes, que julgam poder travar através de arcaicas e desajustadas concepções conservadoras (nomeadamente, a repressão legal, que em seu entender constituiria um dissuasor bastante para evitar condutas motivadas por forte necessidade). Bastaria tão só olharem para o passado para perceberem que a moderna e crescente prática do aborto, em detrimento do infanticídio e do abandono dos nascituros, acompanha a valorização do ser humano, e que apesar das proibições legais, implantadas em grande parte para salvaguarda das taxas de natalidade exigidas pelo desenvolvimento económico, é a defesa da vida, e da vida com um mínimo de qualidade para os filhos, que a justifica para muitas mulheres que a ela recorrem, mesmo arrostando com o ónus da culpa e do pecado a que as suas próprias crenças as mantêm prisioneiras. É que mesmo nesse mundo irreal mágico-religioso de crime ou pecado elas sabem que é preferível não deixá-los vir à luz, e esperam que o julgador, seja quem for, comungue da sua dor absolvendo-as.

A prática do aborto é uma questão política da maior relevância, visto o seu objecto ser um ente em processo de desenvolvimento que levaria à formação e ao nascimento de um ser humano (e este é o aspecto da questão com que todos concordamos), que envolve três domínios: o da ética, o da moral e o da técnica. No domínio da ética, a ajuda da ciência permite demonstrar que um embrião de oito semanas que se desenvolveu numa gravidez de dez semanas ainda não é seguramente um ser humano. Assim sendo, a prática do aborto até às dez semanas de gravidez não pode constituir qualquer crime e deve ser entendida como um direito da mulher grávida. Após este prazo, embora no período das dez às doze semanas possivelmente ainda não estejamos perante um ser humano, mas porque diminui esta segurança, é legítima a sua criminalização. A definição de um prazo não é, assim, um aspecto despiciendo, visto tratar-se de um ser em desenvolvimento que a cada instante adquire novas qualidades. Embora tenham centrado a sua campanha no domínio da ética, os partidários do “não” iludiram não só as novas qualidades que o embrião vai adquirindo ao longo do seu desenvolvimento, atribuindo ao próprio ovo a qualidade de ser humano, como escamotearam também os restantes domínios da questão. E se nos domínios da ética e da moral pública o aborto até às dez semanas só pode ser classificado como um direito, no domínio da moral privada esse direito pode não ser exercido por parte daqueles cujas crenças pessoais, pela fé mágico-religiosa ou pela aceitação das tradições, lhes dêem outro entendimento. Por fim, no domínio da técnica, o aborto até às dez semanas é, já hoje, uma intervenção de pequena cirurgia (ou nem isso), e, num futuro próximo, constituirá uma intervenção ao alcance da química hormonal com eficácia e segurança (através da pílula do dia seguinte e da pílula abortiva, que preservam o anonimato e melhoram a comodidade, embora possam não dispensar eventualmente a receita e o acompanhamento médicos). No domínio da técnica, é até previsível que os seus reflexos negativos na saúde pública tendam a diminuir de incidência e de gravidade, à medida que se generalizem novos métodos.

A clarificação ética permitiria localizar as opções pessoais baseadas na moral onde elas devem estar, no domínio do exercício de um direito; decidir de forma mais pacífica, desdramatizando a consequente descriminalização; favorecer o desenvolvimento das técnicas susceptíveis de limitar as suas repercussões na saúde pública; repensar seriamente o aborto eugénico e o aborto por violação até às dezasseis semanas (como previstos na lei em vigor); questionar se o aborto voluntário, nos casos em que não haja perigo para a vida da mulher, deve ser custeado pelo serviço nacional de saúde; e aliviar a auto-culpabilização das mulheres que a ele recorrem com criminalização ou sem ela. A manutenção da criminalização do aborto nas condições da lei vigente vai continuar a permitir que à sombra da tolerância judicial para com o aborto de embriões de poucas semanas se pratiquem impunemente abortos de fetos de quatro e de cinco meses.

A questão não se encerrou com este referendo, porque se as crenças individuais ou de grupos nos hábitos, nas tradições ou nas religiões, por muito que colidam com o conhecimento racional dos factos ou com o mero cepticismo, devem ser respeitadas como legítimas e não apenas toleradas, o mesmo valor deve ser dado ao conhecimento racional. A lei não pode legitimar a fé e proibir a razão, e, no caso do aborto até às dez semanas, não pode proibir a liberdade. Legitimando o direito ao aborto até às dez semanas, a lei deixaria à consciência moral e religiosa de cada um o seu exercício em plena liberdade.

A frontalidade dos partidários do “não” sobre o cerne do que estava em jogo no referendo foi a que os partidários do “sim” não souberam ou não quiseram assumir. Se o movimento “sim, pela tolerância”, que albergava correntes heterogéneas, defensoras desta opção pelas motivações mais diversas, teve um discurso susceptível de alargar a abrangência a personalidades mediáticas e se ficou pelo compromisso da tolerância e da compreensão, sem atacar a questão de fundo, o mesmo não era de esperar das esquerdas partidárias — principalmente do PCP, que sempre se distinguiu pelo pioneirismo neste campo. Reclamando-se do progresso, o PCP mostrou continuar, afinal, agarrado a velhos estereótipos ultrapassados, tanto na táctica como nos princípios, e preferiu o discurso da tolerância para com os pobres e os desfavorecidos, susceptível de não afrontar as consciências mais conservadoras e as crenças mais tradicionalistas, à defesa intransigente da liberdade. Porque o que se travava era um combate pela liberdade e não pela tolerância.

Sendo múltiplas as motivações para o recurso ao aborto, quer como método de controlo da natalidade, quer para a interrupção de uma gravidez indesejada — mas mal prevenida, apesar dos meios cómodos e eficazes já disponíveis — em geral ele foi e continua um fenómeno marcadamente moderno e urbano, praticado por quem vive do salário e sabe que este não cresce com o aumento da família, e para quem o aparecimento de mais uma boca para alimentar é sinónimo de mais pobreza e de redobradas preocupações. São as mulheres dessas famílias que o praticam por razões económicas, mesmo arrostando com a culpa e o pecado das suas próprias crenças; são elas que a ele se sujeitam sobre a mesa da cozinha de uma qualquer habitação, às mãos de curiosas e de parteiras anónimas, porque mesmo o mercado clandestino tem os seus preços diferenciados; e são elas também que preferem o anonimato, porque conhecem bem o peso da crença religiosa na censura popular. Ora, elas são parte da base sociológica natural de apoio do PCP, e seria suposto que na sua campanha autónoma este usasse em sua defesa a racionalidade para lutar pela liberdade, não se quedando pelo problema de saúde pública gerado pelo aborto clandestino. Além do mais, porque o aborto clandestino continuará existindo, apesar da descriminalização, quer pela pressão da crença pessoal e da censura popular, quer para matar fetos, casos em que só a clandestinidade poderá assegurar o anonimato e a impunidade.

Mas, para além de um combate pela liberdade no domínio da ética, a descriminalização do aborto tem mais vastas repercussões políticas e sociais. Juntamente com o direito à contracepção, entretanto conquistado, ela insere-se na luta pela conquista da efectiva igualdade de direitos entre os sexos e pela libertação da mulher do fatalismo da subalternização social a que as suas singularidades biológicas a têm condenado através dos tempos. Se a evolução da produção dos meios de subsistência e das condições de existência têm permitido a libertação dos seres humanos de muitos dos instrumentos de dominação social, verifica-se que apesar delas persiste uma notória desigualdade social entre os sexos, independentemente da sua pertença de classe. Esta discriminação baseada no sexo, que remete a mulher para papéis secundários e é transversal a toda a sociedade, tem sido legitimada pelos mais variados instrumentos ideológicos, que só muito lentamente têm caído na obsolescência. E, qual paradoxo, a sua singular capacidade para a gestação, ao invés de merecedora de qualquer forma de reconhecimento social, é usada, através da negação do direito de dispor dela, precisamente como um dos últimos argumentos dessa velha panóplia ideológica legitimadora da dominação social de que é alvo.

Era também por este aspecto de luta pela libertação social da mulher que a descriminalização do aborto até às dez semanas de gravidez deveria ter sido abordada, eventualmente noutros meios de comunicação, que não os tempos de antena da campanha, e para outros públicos, mesmo correndo o risco de ser mal interpretada. Surpreende, por isso, que um movimento cívico feminino que tem por objectivo a emancipação da mulher — a UMAR — não tenha tomado a iniciativa de levantar pelo menos a ponta do véu, já que os partidos políticos, enquanto organizações maioritariamente masculinas, são eles próprios atravessados por interesses contraditórios mal resolvidos no que respeita à igualdade de direitos entre os sexos. A luta política pela defesa coerente do progresso social pressupõe uma vasta luta ideológica, que a alicerce e impulsione com audácia para a ruptura com os interesses mais recônditos que fundamentam a discriminação, mesmo com o risco da perda temporária da harmonia entre aliados. Embora os contornos sociais resultantes da complexidade da luta de classes não se possam conhecer antecipadamente, na ausência de luta ideológica consequente, neste campo, não será de estranhar se o progresso tecnológico inevitável, movido pelo lucro, acabar por fazer mais pela libertação da mulher do que as inconsequentes lutas políticas, com o inconveniente de naturalizar as novas práticas sociais escamoteando os interesses de classe e de grupo que retardaram ou impediram a sua legitimação.

Pese embora as limitações da abordagem e da clarividência do discurso, o PCP revelou-se a única força partidária que fez jus a essa qualidade, não enjeitando as dificuldades do combate político pela transformação cultural e pela modernização das mentalidades, contra a influência do tradicionalismo e da fé mágico-religiosa. É, por isso, da mais elementar justiça reconhecer os seus méritos. Ele foi a única força das esquerdas partidárias que se empenhou nesta batalha com pioneirismo e persistência, desde a iniciativa que conduziu à aprovação da legislação actualmente em vigor, aos esforços desenvolvidos para a manutenção desta nova iniciativa legislativa confinada ao parlamento e a recusa do referendo, até à realização de uma campanha autónoma pelo “sim”.

Algum mérito, apesar das mesmas limitações, é também devido ao proponente desta iniciativa legislativa para a descriminalização do aborto, Sérgio Sousa Pinto, já que o partido a que pertence, o PS, confirmou os piores prognósticos que seriam de esperar da sua caminhada firme do centro-esquerda para o centro-direita do espectro político, desde a liderança guterrista. É que apesar do vociferar surdinoso dos mandaretes, da intriga das facções ou do protesto genuíno, pouco alegre e já sofrido, das personalidades de esquerda que por lá definham, na hora da verdade todos parecem vergar-se ao reconhecimento de que os lugares que desfrutam, e a sua conservação à sombra do poder, o devem a este personagem estranho — um leigo católico praticante, que tem um frade confessor por conselheiro, e cuja concepção da política como dever de servir lembra irónicas, quanto incómodas, semelhanças entre um novo e afável zambujeiro viandante e uma antiga e sisuda oliveira sedentária, apesar das inevitáveis diferenças nas opções, na solidez cultural e na perspicácia política — que parece revelar-se susceptível, por si só, de atrair mais votos do que toda a máquina partidária.

Se no tempo de Mário Soares como secretário-geral — a quem, curiosamente, esta nova orientação política faz parecer uma personalidade de esquerda — o PS abandonou o marxismo como inspiração e meteu o socialismo na gaveta, na era de António de Oliveira Guterres é a própria conotação com a esquerda que é jogada borda fora, emergindo em seu lugar uma retórica fluente, embora oca — baseada no pragmatismo, na necessidade do consenso para o “bem comum”, no apoio efectivo aos grandes grupos económicos e na caridade cristã para a correcção das desigualdades — servida na oratória por cândida prosódia de entoação levemente clerical, que baloiça ao sabor dos ventos da popularidade. Não admira, por isso, que o actual PS, tão distante daquele que nas suas origens se afirmava apostado na transformação social, ao ponto de levar militantes a interrogarem-se publicamente sobre a natureza do partido, não pudesse esconder o embaraço que lhe causou a iniciativa legislativa da descriminalização do aborto, que apesar da inconveniência não pôde conter, e haja optado por ceder ao referendo e por não participar na campanha (nem mesmo para esclarecer o significado, os efeitos e a importância de um instrumento político da democracia participativa, que era usado pela primeira vez, e apelar ao voto, ainda que veiculando a posição do líder, que remetia a opção para a consciência de cada um).

A incomodidade foi também notória nos partidos da direita do espectro político, mas neles era compreensível. Derrotados na votação parlamentar que aprovou na generalidade o projecto legislativo, usaram, com a aquiescência do PS, a alternativa referendária, na esperança de que a votação popular lhes fosse favorável. Tal como o PS, não se envolveram na campanha, deixando aos militantes a liberdade de se integrarem nos diferentes movimentos cívicos, de acordo com a opção pessoal, e, também como ele, não se dignaram a apelar à participação cívica no referendo. Feitas as contas, bastaria o “não” de 25% dos eleitores inscritos, score possível pela mobilização dos seus adeptos mais tradicionalistas, para saírem vitoriosos, e pouco mais de 50% de abstenções, qualquer que fosse o resultado de cada uma das opções, para usarem o desinteresse dos cidadãos como argumento contra a prossecução do processo legislativo no parlamento. A derrota da descriminalização do aborto estava, portanto, previsivelmente ao seu alcance, como veio a confirmar-se, e bastou para isso, perante quase 70% de abstenções, a opção pelo “não” de pouco mais de 16% do eleitorado.

Mais do que a pequena diferença da votação no ”sim” e no “não”, o que parece ter surpreendido toda a classe política foi a grande taxa da abstenção, a mais elevada até ao presente em qualquer votação, precisamente no primeiro acto referendário desta novel 3.ª República, que ironicamente fora reivindicado e defendido pela direita parlamentar como forma aceitável de democracia participativa. A surpresa, porém, não a impeliu para qualquer reflexão, preferindo justificar a abstenção com grotescas e mirabolantes hipóteses sobre as motivações dos abstencionistas, quando bastava olhar para o primeiro e mais simples dos seus significados — a inconsciência cívica — para tirar umas quantas ilações necessárias.

Por confusa que fosse a pergunta referendária, os eleitores sabiam perfeitamente o assunto que se referendava; por muitas que fossem as dúvidas, os eleitores dispunham de quatro opções; por grande que fosse o cepticismo quanto à eficácia do referendo como instrumento de poder, os eleitores sabem que não lhes concedem mais do que a legitimação, pelo voto, do poder estabelecido. Elogiar o desinteresse pela participação na votação do referendo como manifestação inequívoca da sabedoria popular, e assim desvalorizá-lo, pode convir de momento a fracções populistas da classe política, mas pode custar-lhes caro se esta apatia vier a consolidar-se no ancestral alheamento dos portugueses face à res pública e a pôr em causa a legitimidade do próprio sistema de legitimação eleitoral instituído.

Seria suposto que as elites políticas compreendessem que a ética, e os direitos e deveres que dela decorrem, não se pode referendar, e que a elas caberia contribuir para a transformação dos padrões culturais vigentes. Infelizmente, o nível cultural e político das elites institucionalizadas é o que é, e, ao demitirem-se das suas responsabilidades legislativas usando o referendo como recurso minimizador de derrotas parlamentares, no jogo do taticismo partidário do “perdes tu, ganho eu”, elas passaram a si próprias um atestado de menoridade, que desacredita ainda mais a prática da política à portuguesa.

Almada, 16 de Julho de 1998.