domingo, 17 de março de 2019

A memória da gente é curta. A do PCP também.

Como era de esperar, os efeitos da greve dos enfermeiros ainda estão começando a fazer sentir-se. O comentador diário de serviço que ocupa a presidência da república já lançou os avisos necessários aos sindicatos para que se cuidem. E as campanhas mediáticas do governo acerca desta greve, da requisição civil que contra ela ilegalmente decretou e do acórdão do tribunal administrativo que rejeitou o recurso sindical que pretendia suspendê-la, atingiram um nível tal de deturpação dos factos e de manipulação, amplificado pelos media, que não prenuncia um futuro promissor para o direito de greve.

Isto não surpreende, porque o PS tem sido o motor do ataque aos direitos que os trabalhadores conquistaram nos dois anos a seguir ao 25 de Abril de 1974. Lembremo-nos do lançamento da Carta Aberta e da criação da central sindical amarela que acode por UGT, visando destruir o movimento sindical, até aí unitário, e das alterações mais gravosas da legislação laboral, para não falar da santa aliança que estabeleceu com a direita mais reaccionária, do spinolismo fascizante ao clero ultramontano, e com o imperialismo americano, agitando o papão do comunismo, para pôr cobro à “desordem” e às “reivindicações desmedidas” de quem pretendia conquistar alguma da dignidade a que se sentia com direito.

A memória da gente é curta, e após quarenta e cinco anos aquele passado nada recomendável do PS parece ter-se esfumado da memória colectiva, mesmo que a sua prática persistente ao longo dos anos, ainda que aos tombos, o comprove e não abone qualquer crédito a hipotéticas mudanças de rumo. Esta desmemoriação é facilitada porque o PPD e o CDS são bem piores, como comprovaram uma vez mais com a roubalheira descarada durante a última bancarrota. E também porque à conta disso o partido que deveria guardar sempre viva a memória desse passado de ódio disfarçado aos trabalhadores, às suas lutas e aos poucos direitos que foram conquistando, o PCP, também perdeu a memória.

Em tempos que já lá vão, a opção pelo mal menor (o mal maior era a patranha de que com o Freitas do Amaral na presidência vinha aí o fascismo) levou o PCP a engolir sapos vivos para ajudar o artista-mor do oportunismo político, Mário Soares, a subir ao pedestal da glória da presidência da república, o supremo prémio ambicionado pela sua avantajada vaidade e a que ele se julgava com direito pelo seu relevante papel na destruição da esperança numa vida melhor que o 25 de Abril trouxera. E, nos tempos que correm, a política oportunista que vem adoptando contribuiu decisivamente para recolocar no poleiro o partido do centro com queda para a direita, e para aí o manter ao longo destes últimos quase quatro anos.

O PCP mantém a memória de um imaginado futuro radioso, mas enleia-se num presente que não entende e com isso perde a clareza do rumo a tomar. Ao oferecer o governo ao PS, salvando-o de entrar numa merecida decadência, o PCP, numa situação que de algum modo lhe era favorável, esqueceu-se de englobar no pacote do acordo a eliminação do Código do Trabalho das regras mais gravosas para os trabalhadores e a contratação colectiva. Isto, e não a camuflagem do fim da austeridade pela substituição de impostos directos por impostos indirectos e pela degradação dos serviços públicos essenciais, seria a pedra de toque para aquilatar qualquer mudança no PS, mesmo que conjuntural, para além da demagogia e da ambição pelo poder do seu novo líder.

Uma tal orientação do PCP não surpreende, visto ser expressão do que de há muito era desejado pelo partido, mesmo no tempo do Cunhal. Apenas se esbateu o nível da exigência, agora restrito a interromper a continuação do governo PPD/CDS e a pouco mais. Por muito que pinte a manta com a bondade do que terá sido obtido, esta direcção acabou a fazer o que os grupos “renovadores” preconizavam, e que apenas por preconizarem foram expulsos. Mas a orientação pretensamente revolucionária – meramente retórica, por mais ortodoxo e estalinista que seja o revivalismo ornamental, como se o PCP tivesse qualquer património revolucionário a que devesse regressar – que alguns críticos contrapõem ao “oportunismo” deste “reformismo operário” é ainda mais confrangedora.

A opção pelo mal menor cada vez maior, a lamúria cada vez mais choradinha e a mendicidade por migalhas cada vez mais miudinhas são ilustrativas da indigência política a que conduz a crise ideológica que o PCP atravessa. Embora seja apenas um observador interessado, custa-me ouvir o Jerónimo a cada vez que ele pede isto ou aquilo ao “Sr. Primeiro-Ministro” quase implorando. Uma tristeza, reveladora dos tempos conturbados que correm…